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27 dezembro 2010

O seminarista, de Rubem Fonseca

"Para um matador profissional a pior coisa do mundo é ter uma consciência (…)" (p. 9)

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Depois de voltar do shopping center com o DVD do filme Sete anos no Tibet nas mãos (filme belíssimo, talvez mereça um artigo aqui), eu sentei na minha querida poltrona da varanda do apartamento e finalizei a leitura de O seminarista (2009) – presente de um amigo meu, o grande Marco.

O livro foi escrito por um renomadíssimo contista brasileiro, Rubem Fonseca, 85 anos, já agraciado com diversos prêmios que dão inveja a muitos escritores, como é o caso do Prêmio Camões (recebido por ele em 2003), tido como o maior troféu literário da língua portuguesa.


Sinopse: Para o protagonista de 'O seminarista', matar não causa remorso, mas também não causa prazer. É apenas seu trabalho que lhe permite se dedicar àquilo que realmente ama – livros, filmes e mulheres. 

Quando, no entanto, decide que já é hora de abandonar a profissão, descobre que não é tão imune aos efeitos de seus trabalhos e de suas escolhas como acredita ser, e tem que enfrentar fantasmas de um passado que pensa ter superado.


O meu plano inicial era ficar mais ou menos uma semana lendo O seminarista, dia após dia; mas, no fim das contas, só precisei de uma terça e uma quarta-feira. Se duvidar, é possível ler este romance de Rubem Fonseca em um único dia.

Obviamente, isso reflete o caráter dinâmico do livro. O narrador, em primeira pessoa, conta a história totalmente desprovido de rodeios, e assim o enredo avança como uma água turbulenta impelida pela correnteza, sem obstáculos, fluindo acelerada. Eu acho isso agradável quando o livro se propõe basicamente a entreter o leitor, o que é o caso de O seminarista – e ele consegue entreter muito bem.

Portanto, não se pode esperar muita coisa do romance em matéria de reflexões ou filosofia, porque Rubem Fonseca não se compromete a tecer conjecturas a esse nível. Aliás, é difícil encontrar um romance-policial que se comprometa a fazer isso. Eu diria que a ordem primordial é entreter a pessoa que está lendo.


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Rubem Fonseca naquilo que eu imagino ser a sua biblioteca particular


Não sei se o que vou dizer agora é um defeito ou uma parte integrante da história – para mim foi uma mistura das duas coisas –, então vou tentar falar apenas como mero comentário: muita coisa acontece aleatoriamente durante o enredo. Eu entendo que algumas coisas são assim porque devem ser assim na história, como por exemplo o encontro "acidental" de Kirsten com José Kibir. (Nada do que eu digo aqui é spoiler.)

Mas outros acontecimentos, como o surgimento do personagem Gralha, são tão aleatórios que parecem estar ali apenas para ajudar o escritor a encontrar uma saída rápida para o problema do desenvolvimento da história. Fiquei com essa impressão, que pode ser equivocada; todos os fatos estarão ali contados sob o comando de um mosaico maior? Decidir isso fica a cargo do leitor.


Não dou muita bola para essa coisa de natureza, prefiro rua, casas, gente andando nas calçadas para lá e para cá, carros trafegando no asfalto, mas tem duas coisas que eu gosto: árvore e pôr do sol. Nascer do sol, também. (p. 95)


Muitos leitores que conheço ficaram aborrecidos com o fato de que o protagonista vive citando provérbios em latim ao longo do texto (lembrando que, como ex-seminarista, ele estudou latim na academia). De minha parte, ao contrário, achei isso um ponto bacana do livro, porque tais frases em latim sempre vêm acompanhadas da tradução e, como foram proferidas por sábios no passado, são sempre belas frases.

Aliás, as frases mais filosóficas do livro são essas. Uma de que gostei bastante foi do Luís de Camões: mudam-se os tempos, mudam-se as vontades.

Por fim, resta dizer que o leitor de O seminarista terá uma dura tarefa pela frente: desvendar um enigma que Rubem Fonseca não se deu ao trabalho de desmistificar. Inevitavelmente, o leitor vai se deparar com um fato absurdo e evidente que promete pôr em parafuso a cabeça de muito neguinho e que o autor, pairando acima de nós e sorrindo, se recusa a explicar.


Conclusão: ótimo passatempo. Se você estiver com a lista de livros por ler em dia (e com uma vaga a preencher), vale a pena conferir o trabalho de um famoso escritor nacional.

20 dezembro 2010

Não há silêncio que não termine, de Ingrid Betancourt

"(…) o apaziguamento por ter reencontrado minha liberdade não podia nem de longe ser comparado com a intensidade do martírio que vivi." (p. 38)

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Agora que o inverno finalmente chegou em Fortaleza, posso fazer aquilo que adoro, e pelo qual eu substituo qualquer outro programa: ler na poltrona da varanda do meu apartamento, acompanhando com a vista as pesadas nuvens cinzas que vão na direção leste-oeste, sopradas pelo vento frio que vem da praia.

Foi assim que finalizei hoje a leitura de Não há silêncio que não termine (Même le silence a une fin, 2010). Este fascinante livro escrito pela ex-candidata à presidência da Colômbia, Ingrid Betancourt, é o relato dos quase sete anos que a refém política passou na selva amazônica, junto com outros prisioneiros, nas mãos da guerrilha narcotraficante intitulada Farc.


Sinopse: Este livro conta a história da ex-senadora colombiana Ingrid Betancourt, que passou 6 anos como prisioneira na selva amazônica. Capturada pelas FARC, uma guerrilha colombiana, ela sofreu humilhações e passou por momentos difíceis. Aqui, Ingrid conta como foi seu cativeiro nas mãos dos guerrilheiros de uma das mais perigosas facções do mundo. 

Leia capítulos do livro aqui.


O livro conta a história de Ingrid desde umas poucas semanas antes do seqüestro, em fevereiro de 2002, até o dia em que foi finalmente resgatada pelo Exército colombiano, em julho de 2008. Temos aí, portanto, seis anos e cinco meses condensados em 550 páginas e 82 capítulos.

Duas coisas me estimularam a ler Não há silêncio que não termine. Primeiro, sempre me interessei por este tipo de história, em que pessoas são submetidas a situações extremas e passam um longo tempo fora do contato com o mundo como o conhecemos (me interesso tanto que basta dizer que tenho na minha estante Milagre nos Andes, Os sobreviventes, Na natureza selvagem e, porque não, Sete anos no Tibet).

Essas provações pelas quais as pessoas passam me fascinam porque sempre adorei acompanhar as mudanças que se operam dentro de cada indivíduo protagonista da história em questão. Para mim, existe algo de mágico em extrair as lições que eles aprenderam, a trilhar os caminhos que eles trilharam e, até mesmo, a sofrer tudo o que sofreram. Milagre nos Andes talvez seja o exemplo mais categórico disso que estou falando. O único aspecto inconveniente desse tipo de história é que, quando o relato é contado em primeira pessoa, sem dúvida ele está correndo o risco de ser parcial.


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Ingrid Betancourt poucas horas antes do seqüestro, em fevereiro/2002


Bem. O segundo fator que me estimulou a ler o livro de Ingrid foi o seu estilo de escrita: assim que peguei o volume nas mãos, observei que os parágrafos eram a um só tempo enxutos e minuciosos, elegantes, claros, poéticos e acima de tudo cativantes. É o estilo de escrita que eu sempre elogio nos livros e do qual mais gosto. Não são todas as pessoas que conseguem escrever assim.

Aliás, a habilidade de Ingrid com as palavras é tão grande que eu não me surpreenderia se ela tivesse decidido seguir a carreira de escritora, em vez de atuar na política. Assim como não me surpreenderia se, como escritora, ela fizesse bastante sucesso no mundo todo.

Uma das coisas mais agradáveis do livro é que ele é narrado em forma de thriller de aventura, e freqüentemente encontramos passagens de ação, mesmo, como nos capítulos em que Ingrid é obrigada a arrumar suas coisas às pressas para fugir pela selva dos helicópteros do Exército que rondam o acampamento guerrilheiro. Todas essas cenas seriam muito mais empolgantes, claro, se o sofrimento da autora não tivesse sido real, mas apenas um romance.

O ritmo de thriller do livro faz com que os capítulos sejam curtos, mal chegando a 10 páginas cada um. Além disso, a linearidade dos capítulos torna o relato mais parecido ainda com um romance, com início, desenvolvimento e desfecho. Em suma, quem quiser ler Não há silêncio que não termine como uma ficção (coisa impossível, para dizer a verdade), vai acabar encontrando um prato cheio.


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Foto mais conhecida de Ingrid no cativeiro. Ela foi batida durante uma filmagem divulgada em 2008, que mostrou que ela ainda estava viva


Um dos fatos que mais surpreendem durante a leitura é a constatação de que os filhos da autora cresceram bastante enquanto ela era feita prisioneira e passava dificuldades na selva. Mélanie, por exemplo, tinha 16 anos quando sua mãe foi capturada, e só voltou a vê-la aos 22 anos.

Por fim, fiquei extremamente surpreso também ao ler a seguinte passagem, que não deixa de ser curiosa. Tomei a liberdade de reproduzi-la na íntegra. Ingrid estava deitada em sua rede, abatida, ouvindo rádio no acampamento das Farc, até que…

"Tive o prazer de escutar, por acaso, uma reprise das melhores músicas do Led Zeppelin, e chorei de gratidão. 'Stairway to heaven' era o meu hino à vida. Ouvi-la me fez lembrar que eu tinha sido criada para ser feliz. Entre os que me eram próximos, quem quisesse me agradar me dava um disco do Led Zeppelin de presente. Eu tinha todos. Tinham sido o meu tesouro no tempo em que se ouvia música em discos de vinil.

Sabia que, entre os fãs, era malvisto gostar de 'Stairway to heaven'. Tinha se tornado demasiado popular. Os entendidos não podiam partilhar os gostos das massas. Mas nunca reneguei meus primeiros amores. Desde os catorze anos, tinha certeza de que aquela música havia sido composta para mim. Quando tornei a ouvi-la naquela selva impenetrável, chorei ao redescobrir a promessa que desde muito ela me trazia: And a new day will dawn / for those who stand long / and the forest will echo with laughter."

Nem preciso dizer que me senti muito mais próximo dela depois dessa página, não é?


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Ingrid Betancourt (segunda à esquerda em primeiro plano) ao lado de sua mãe e onze militares responsáveis por seu resgate


Conclusão: Não há silêncio que não termine foi uma das melhores aquisições que fiz esse ano. Embora se trate de uma história dramática, é um livro extremamente prazeroso de se ler, cativante, instigante, emocionante. Sem dúvida nenhuma, muitíssimo recomendado.


A seguir, disponibilizei a entrevista de Jô Soares com a autora. Vale a pena conferir!

Todos os direitos reservados
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13 dezembro 2010

As 100 maiores personalidades da história, de Michael H. Hart

"(…) cada pessoa incluída é um dos verdadeiros personagens monumentais da história mundial." (p. 33) 

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Para não deixar o blog entregue às moscas, abandonado e esquecido no tempo, passei hoje a tarde a pensar em um assunto que pudesse constituir um texto com o objetivo de suprir a pausa de duas semanas nos artigos daqui.

Eis que decidi, no último instante, escrever alguma coisa sobre As 100 maiores personalidades da história (The 100: a ranking of the most influential persons in history, 1978, revisado em 1992), escrito pelo astrônomo norte-americano Michael H. Hart, portador de um currículo invejável que mostra sua formação e especialização tanto em ciências humanas quanto em ciências exatas.


Sinopse: As 100 Maiores Personalidades da História apresenta as biografias, a maioria delas acompanhada de fotos e ilustrações, das pessoas que mais influenciaram a nossa história e a formação do mundo.

Tudo com base na pergunta: "Dos bilhões de seres humanos que viveram sobre a Terra, quais os que mais influenciaram o curso da História?" O autor apresenta um desfile cronológico de homens e mulheres que conduziram o destino da humanidade.


As 100 maiores personalidades da história foi um livro que herdei de meu avô, não como herança propriamente dita, mas mais como fruto de um legado acidental. Nas semanas que precederam sua morte, ele me emprestara o livro e, quando finalmente morreu, não me restou alternativa senão ficar com o volume de lembrança. Até hoje, guardo a impressão de que, através de um mecanismo genético desconhecido, eu nasci com o seu amor incondicional pela leitura.

Isso aconteceu há muitos anos e eu ainda era muito novo, mas lembro que o livro de Hart me atraiu porque se ousava a fazer uma lista das 100 mais importantes pessoas que já passaram por este mundo; e a sensação de polêmica ficou mais inflamada ainda quando vi que Isaac Newton havia ficado na frente de Jesus Cristo – ou seja, a "ciência" estava na frente da "religião".

É lógico que todas as personalidades da lista foram selecionadas arbitrariamente, e suas posições não são nem de longe definitivas. Aliás, cabe deixar claro que as posições ocupadas por certas figuras na relação não devem ser encaradas como pano de fundo para polêmicas, tanto mais porque o próprio autor tem consciência de que seu ranking é seu ranking, e tem o objetivo de apenas suscitar reflexões nos leitores, e não de lhes impor uma hierarquia de celebridades.

O resultado é que, em vez de tirar o atrativo do livro, essa arbitrariedade na seleção e nas posições só faz aumentá-lo, porque você pode organizar as personalidades a seu bel-prazer e até mesmo incluir outras, ausentes da lista. No fundo, a compilação de Hart está ali mais para instruir o leitor acerca da importância das figuras históricas do que para mostrar um ranking "competitivo".


A maioria dos cristãos considera a regra Amai seu inimigo – no máximo – ideal a ser alcançado em algum mundo perfeito, mas preceito racionalmente impraticável para a conduta neste mundo. (…) O ensinamento mais proeminente de Jesus permanece, portanto, como sugestão instigante, mas basicamente não praticada. (p. 65)


Basicamente, o que um livro com um tema tão intelectual como esse poderia ter de especial para atrair a atenção de um pirralho como eu? Sem dúvida nenhuma, a linguagem usada por Hart. Ela não traz nada daquela rigidez dos textos acadêmicos históricos, e mostra-se bem fluida, leve, instrutiva – quase como um texto de revista. É bom lembrar que essa linguagem não quer dizer que o livro seja superficial; é, antes de tudo, acessível, gostoso de ler.

E a leitura de suas 600 páginas não se torna cansativa também por conta de outro fator: cada personalidade tem a sua "biografia" resumida em quatro ou cinco páginas, no máximo. Hart se preocupou apenas em tecer a idéia central da contribuição de cada figura, além de algumas curiosidades e o porquê de sua presença na lista. Bem bacana. Dessa maneira, os "capítulos" acabam ficando bem curtos.


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As 100 maiores personalidades da história faz parte de um grupo de livros escritos por pessoas diferentes, mas com o mesmo objetivo: fazer uma lista das 100 maiores "coisas" da humanidade. A Editora Difel, responsável pelo lançamento dos livros aqui no Brasil, já publicou alguns títulos interessantes, como esses da imagem de cima. Há também um que compila os 100 livros mais influentes da história, cuja capa eu não encontrei na internet para compartilhar aqui (não sei se ele oficialmente faz parte dessa coleção).


Todos os títulos da coleção:

- As 100 maiores catástrofes da história;

- As 100 maiores invenções da história;

- Os 100 maiores mistérios do mundo;

- Os 100 maiores líderes militares da história;

- As 100 maiores personalidades da história;

- Os 100 maiores cientistas da história.


Conclusão: leitura leve e prazerosa, além de instrutiva. Recomendado.

30 novembro 2010

Música: Echoes, do Pink Floyd

"Lá em cima os albatrozes se mantêm imóveis no ar…"

Meddle

"Meu pai tem esse vinil lá em casa. Com a música Echoes", disse-me Natália, ontem, enquanto almoçávamos no campus da universidade. Eu tinha dito a ela que estava pensando em escrever algo no blog sobre Pink Floyd, especialmente sobre um dos álbuns mais reverenciados pelos fãs da banda: Meddle.

Não perdi a chance que se desenhou à minha frente, de modo que fomos hoje à casa de Natália e conversamos com o pai dela, um sessentão forte e desenvolto, bronzeado. Como eu suspeitara que a nossa conversa seria não menos que boa, levei o meu gravador e o deixei ligado à vontade, enquanto bebíamos xícaras de café.


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Wright, Waters, Manson e Gilmour: formação definitiva


Num determinado ponto da conversa, descobri que, quem é fã de Pink Floyd e tem mais de 40 anos de idade, certamente se deparou com uma coisa muito curiosa na época: ao adquirir o álbum Meddle, os floydmaníacos viram na setlist que o Labo B do bolachão continha apenas uma única música, isolada totalmente das 5 outras que compunham o Lado A. Coisa idêntica havia acontecido apenas um ano antes, quando Atom Heart Mother fora lançado e, dessa vez no Lado A, havia apenas uma única faixa.

Isso pareceu esquisito demais para a maioria das pessoas (o pai de Natália, por exemplo, achou que o Pink Floyd faria isso em todos os álbuns posteriores), até elas descobrirem que Echoes tinha um pouco mais que 23 minutos de duração, tal como a primeira música de Atom Heart Mother. As pessoas não tinham como saber que aquela era apenas mais uma das mais longas músicas de Rock Progressivo de todos os tempos. Atom Heart Mother Suite e Echoes eram tão grandes que só mesmo um lado inteiro de vinil poderia comportá-las.


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Capa de Atom Heart Mother e o Lado A: apenas uma música


De toda a vasta preferência do pai, Natália herdou apenas o gosto por The Dark Side of The Moon, o álbum posterior a Meddle, que provavelmente alavancou o Pink Floyd às nuvens da consagração em 1972. Mas, como eu, o pai da minha amiga acha que foi Meddle o verdadeiro motor propulsor do que mais tarde viria a ser a mais emblemática banda de Rock Progressivo de nosso tempo. E, como eu, ele tem toda uma interpretação particular de Echoes.

Como toda boa música do gênero, Echoes possui o que chamamos de "compartimentos", ou seja, "ritmos instrumentais" diferentes contidos dentro da mesma música, que passa então a ser chamada de suíte. Um compartimento sucede o outro, e o ouvinte é levado a acompanhar os seus diferentes embalos ao longo de toda a suíte – cada um dura cerca de 5 minutos em Echoes. Desse modo, a faixa não possui uniformidade, mas é constituída de recortes.

O primeiro recorte começa com uma única nota do teclado de Richard Wright, que, soando vez após vez, lembra sons de pingos em água. Pouco depois, surge a voz suave da guitarra de David Gilmour, até que entram a bateria de Nick Manson e o baixo de Roger Waters.


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Capa de Meddle e o Lado B: mesma coisa


A descrição de cada "compartimento" da suíte não é interessante aqui, porque qualquer tentativa de transformar Echoes em palavras é fracassada. De qualquer modo, meu trecho preferido na música é aquele entre os 14:30 e os 18:45 minutos. Como o pai da minha amiga disse (faço minhas as palavras dele):

"Tudo parece se renovar aí. Sempre que ouço esse trecho, vem à minha mente a imagem de tudo se regenerando, do sol saindo por trás das nuvens, da névoa se dissipando, das flores desabrochando, de alguém prestes a atingir o topo de uma montanha, da iminência de algo grandioso e inevitável…"

Quando a guitarra de Gilmour "explode" numa mixórdia de acordes aos 18:14, eu, particularmente, imagino uma sucessão de imagens totalmente aleatória. Imagens de todos os tipos, retratando todas as coisas. Se existe algo parecido com um orgasmo em uma música, é provavelmente nesse trecho de Echoes que a gente o encontra. Eu acho.

Por fim, o pai de Natália, meu mais recente amigo floydiano, disse que tinha o costume de ouvir essa música quando estava deprimido. Eu disse que coisa parecida ocorre comigo. Echoes acalma o espírito; as coisas parecem se encaixar no mundo; tudo encontra o seu lugar no plano da existência. E isso não é apenas por falar: é um sentimento genuíno, que de fato mexe com as essências.

22 novembro 2010

O Ponto de Mutação, de Fritjof Capra

"Uma das coisas mais difíceis de serem entendidas pelas pessoas em nossa cultura é o fato de que se fazemos algo que é bom, continuar a fazê-lo não será necessariamente melhor." (p. 38)

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Na semana passada, depois de voltar do sufoco do centro comercial da cidade, sentei na minha poltrona predileta e finalizei a leitura do livro O Ponto de Mutação (The Turning Point, 1982), ensaio bastante famoso escrito pelo físico austríaco Fritjof Capra, autor do também best-seller O tao da Física.

Capra é muito conhecido no mundo todo por sua visão holística da realidade, visão essa que condena todos os paradigmas fragmentados da Ciência e abraça uma concepção inter-dependente dos fenômenos que a própria Ciência estuda.


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Sinopse: Neste livro, Capra compara o pensamento cartesiano ao paradigma emergente no século XX. O primeiro é reducionista e modelo para o método científico desenvolvido nos últimos séculos. O segundo, holístico ou sistêmico, vê o todo como indissociável; o estudo das partes não permite conhecer o funcionamento do organismo. As comparações são feitas em vários campos da cultura ocidental atual, como a medicina, a biologia, a psicologia e a economia.


O Ponto de Mutação foi um dos melhores livros de não-ficção – provavelmente, o melhor – que li até hoje. Até então, nunca vira a Ciência tão unida, tão compenetrada, tão veiculada a um único objetivo comum. Depois de tê-lo lido, larguei de vez a idéia de que possam existir ao menos duas áreas da Ciência que não se complementam ou, pior, que se rivalizam. Isso realmente não pode existir. A natureza manifesta-se de uma forma surpreendentemente harmônica, e a Ciência, que a estuda, não pode ser diferente.

O livro é dividido em quatro grandes unidades, a saber: "Crise e transformação", "Os dois paradigmas", "A influência do pensamento cartesiano-newtoniano" e "A nova visão da realidade". No início, Capra nos alerta para a crise planetária na qual a sociedade humana, no final do século XX, está inserida. E tal crise é multifacetada, abrangendo desde problemas como a corrida armamentista  (lembrando que o livro foi escrito na década de 80) até a fome mundial e a concepção de saúde em Medicina.

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O tao da Física e A teia da vida

Na unidade seguinte, o autor traça um corte histórico da sociedade humana nos séculos passados e mostra como os pensamentos de René Descartes e, depois, Isaac Newton modelaram a concepção de mundo que até hoje nós insistimos em ter: fragmentada, causal e independente. Tal concepção cartesiana-newtoniana pode ter se mostrado muitíssimo frutífera no tempo de Descartes e Newton, mas, na nossa sociedade atual, tal visão de realidade é extremamente limitada e pouco elucidativa – portanto, ultrapassada.

E este é o principal objetivo do ensaio: mostrar como essa visão ultrapassada agora se manifesta perigosa, na medida em que aplica conceitos obsoletos a aspectos vitais de nossa existência, como por exemplo à Medicina, à Psicologia, à Economia ou à Biologia. Partindo da famosa divisão cartesiana mecanicista entre mente e corpo, os médicos negaram que processos psicológicos podem influenciar o organismo biológico, e, também, os psicólogos passaram a negar a influência do organismo biológico no nível mental.

Passeando por áreas tão diversas com uma propriedade inabalável, o autor se mostra ele mesmo holístico, interligando conceitos de uma área à outra na mesma frase ou parágrafo. Além disso, convém dizer que Fritjof Capra é um pesquisador extremamente inteligente e minucioso – o que dá gosto em sua escrita –, embora ele afirme modestamente no prefácio: "(…) estou perfeitamente cônscio de que a apresentação (…) será fatalmente superficial, dadas as limitações de (…) meus conhecimentos".

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Pôsters do filme baseado no livro

Depois de evidenciar como a concepção mecanicista de Descartes e Newton influencia negativamente a Ciência de nossa sociedade atual, Capra não abandona o leitor: pelo contrário, ele passa a explanar em detalhes aquilo que julga ser o caminho certo. Na última unidade, ele explica como a abordagem holística (também chamada de sistêmica) pode ajudar as ciências a unificar seus conhecimentos em prol de uma melhor qualidade de vida geral.

Como exemplo disso, podemos citar a forte ênfase que o autor dá ao planejamento de uma nova fonte de energia sustentável – a energia solar.

A linguagem de Capra é nitidamente acessível, e o livro O Ponto de Mutação, nas palavras do próprio, "destina-se ao leitor comum", muito embora seja necessário um grande interesse por parte do leitor para continuar com o livro nas mãos.

Posso concluir esta resenha transcrevendo alguns dos elogios feitos por alguns jornais:


"Um livro cheio de força… Informativo, provocante e radical. Com clareza devastadora, Capra mostra como, em todos os campos da Ciência, nossas teorias estão nos levando para nossa própria destruição." Carl Rodgers, Ph. D.

"O Ponto de Mutação é uma explicação bem-escrita e convincente do motivo pelo qual tantas coisas parecem erradas no mundo." The Washington Post.

"De vez em quando publica-se um livro com o poder de mudar radicalmente as nossas vidas. O Ponto de Mutação é o mais recente deles." West Coast Review of Books.


Conclusão: sem dúvida, um livro indispensável para quem deseja ampliar sua visão de mundo. Fico triste por apresentar uma resenha tão pobre sobre um livro tão rico de idéias. Vale conferir.

P.S.: O Ponto de Mutação foi, de algum modo, adaptado para o cinema. No original inglês, o longa levou o título de Mindwalk, mas aqui no Brasil o nome permaneceu o mesmo do livro. Abaixo, uma parte do filme bem interessante:

Trecho do filme "O Ponto de Mutação"

15 novembro 2010

Música: Telegraph Road, do Dire Straits

"E a velha e suja trilha virou a Estrada do Telégrafos…"

Lover Over Gold - Dire Straits

Telegraph Road – a mais longa música da banda inglesa Dire Straits, com seus 14 minutos e 15 segundos de duração – é a faixa que abre o álbum Love Over Gold, lançado em meados do ano 1985. Recebendo classificações como "rock sinfônico", "rock progressivo" e outras, Telegraph Road é sem dúvida uma das mais belas composições da banda, manifestando um alto grau de harmonia – no som – e lirismo – na letra –, comparável a Brothers in arms e Tunnel of Love.

A melodia da música apresenta inúmeras variações ao longo de todo o percurso; logo no início, umas suaves notas de teclado são acompanhadas por um dedilhar de violão também terno, culminando em uma espécie de "abertura oficial" – com notas de guitarra características da banda – em que Mark Knopfler começa a sussurrar: "A long time ago, came a man on a track". A partir de então, teclado, guitarra e bateria trabalham juntos, dando lugar a alguns trechos de suavidade e outros de atividade intensa. Bem… só mesmo escutando a música para entender o que eu estou falando.

Dire StraitsMark Knopfler

A letra da faixa conta a história da construção de uma cidade a partir de uma trilha primitiva (a tal Telegraph Road), que mais tarde se transforma em avenida principal e lugar de grande congestionamento de veículos, ao redor da qual grandes instalações – prédios e empresas – vão sendo formadas; até que, muito tempo depois, a cidade se torna grande demais para ela mesma e então entra em colapso. Um trecho que considero muito bonito é o seguinte:

"Then came the mines – then came the ore
Then there was the hard times then there was a war
Telegraph sang a song about the world outside
Telegraph road got so deep and so wide... Like a rolling river..."

Não posso deixar de mencionar aqui o solo de guitarra final que, depois da frase "All the way down the Telegraph Road", preenche os quatro minutos restantes da música, num ritmo alucinado em que se misturam sons agressivos de bateria, guitarra e teclado. É ao longo desse grande solo que os ouvidos mais imaginativos podem escutar os sons de trovão do raio ilustrado na capa do CD.

A prova do sucesso de Telegraph Road é a sua indefectível presença em quase todos os shows da carreira solo de Mark Knopfler, o ex-líder da banda. Até mesmo nos dias contemporâneos, como no caso da turnê de Shangri-la em 2005, Knopfler reproduziu a velha canção do Dire Straits. No mais, a versão ao vivo mais conhecida é a tocada no Alchemy, um dos grandes shows da época da banda, realizado em 1984.

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Abaixo, para quem quiser ouvir, está a música:

08 novembro 2010

A estreita visão da realidade

Uma crítica ao edital da revista Superinteressante

Eu já disse isto em algumas postagens anteriores, mas acho que é sempre conveniente repetir: o blog Gato Branco em Fuligem de Carvão não se propõe a meter o bedelho em questões da vida pública, porque, embora muitos fatos sociais que rolam pelo mundo afora sejam dignos de nota, o único e primordial objetivo deste espaço é resenhar sobre literatura, música e cinema…

Bem. Acontece que, vez por outra, eu me deparo com uma coisa que não consigo deixar passar em branco. Essa "coisa" geralmente se resume a uma notícia ou a um artigo qualquer que outra pessoa escreveu em algum outro lugar. E, como só tenho este blog para publicar as esquisitas idéias que passam pela minha cabeça, minhas opiniões inevitavelmente vêm parar aqui. Só espero que um dia eu não seja perseguido por causa delas.

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Sem mais rodeios, foi hoje que folheei a revista mensal Superinteressante (edição 284, novembro/2010) e me vi lendo o editorial escrito por Sérgio Gwercman. A leitura estava correndo muito bem até surgir, logo no começo, a seguinte idéia fundamentalista que me deixou com a pulga atrás da orelha: "Faça do desenvolvimento de um exército brasileiro de nerds prioridade". Isso é um pedido ao presidente da República, o autor deixa claro.

Segundo o texto, precisamos de milhões de sujeitos-crânio que amam números e tudo mais que pode ser quantificado. Porque, segundo o autor do editorial, é desses sujeitos que o Brasil precisa para se tornar o que "todos nós" queremos: um país industrializado, carnívoro, frenético. Mas… quem disse que isso é sinônimo de qualidade de vida? Não é todo mundo que quer um crescimento econômico não-diferenciado.

Na verdade, o que matou o texto de Gwercman foi a idéia de que as ciências humanas devem, atualmente, estar em segundo plano, e a importância maior deve ser dada às exatas. Isso não é dito explicitamente no texto, mas a insinuação geral é perceptível de longe. Muitas pessoas não entendem que o problema no nosso país deixou de ser técnico há muito tempo: é agora mil vezes mais social e político.

Se um país constrói dezenas de indústrias novas por mês, a população sem privilégios continua em péssimas condições e dependendo de programas assistencialistas (viciosos) como o Bolsa Família. Se a nação constrói prédios e instituições mais modernos, muitas pessoas continuam sem ter onde morar, se o sistema reducionista dessas instituições persistir. E esses problemas não são resolvidos com crescimento econômico; pelo contrário, são aprofundados. Então, é com "um exército de nerds" que resolvemos esses problemas? Não somente.

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Não estou aqui para defender nem criticar ninguém – longe disso. Acho que tanto as áreas de ciências humanas quanto as de exatas merecem o mesmo respeito e importância. Apenas tenho a impressão de que a preferência pelas ciências exatas mostrada nesse editorial da revista está, de um modo geral, muito fanática, como se as elegesse a mais importante das áreas atualmente e afirmasse que as demais merecem menos atenção – incluindo, nessa crítica, o próprio jornalismo. Gwercman mesmo escreveu, em um tom sutil de lamento: "Mas a cada ano forma mais músicos que mecatrônicos, mais psicólogos que engenheiros elétricos". Absurdo.

Por fim, um trecho que me deixou realmente perplexo no editorial: "Há uma questão cultural a resolver: mais brasileiros gostam das ciências humanas do que de exatas". E o autor do texto completa dizendo que reverter essa situação é tarefa do presidente da República. No fundo, acho que foi essa frase que me impulsionou a escrever este post.

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Não sei… Eu estou atualmente vindo de uma instigante leitura de um livro de Fritjof Capra, O Ponto de Mutação, no qual a idéia da obsessão pelo crescimento econômico não é tão bem-vinda assim. Do que adianta, por exemplo, inúmeros engenheiros civis se formando se ainda temos uma grande parte da população mundial sem um teto para morar? Como eu disse, não são os engenheiros que vão resolver esse problema – é mais provável que os psicólogos e os assistentes sociais ajudem a resolvê-lo.

Aliás, alguém já pediu a opinião de um bom músico sobre esse assunto? Talvez ele tenha uma boa idéia também.

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Eu poderia continuar os argumentos falando de correntes yin e yang, crescimento não-diferenciado, visão ecológica e sistêmica, e várias outras coisas que pretendem frear a expansão econômica desenfreada, mas vou deixar isso para a resenha do livro do Capra – que deve sair aqui nas próximas semanas.

A tempo: mais "poesia" e menos ambição. E eu não tenho nada contra os nerds. Pelo contrário, as pessoas até me consideram um. Mas dizer que as ciências humanas merecem estar em segundo plano, atualmente, é demais para mim. Um diretor de redação precisa estar mais atento com o que escreve numa revista de circulação nacional.

25 outubro 2010

Música: Blowin' in the wind, de Bob Dylan

"E ninguém jamais te ensinou como viver na rua, / E agora você descobre que vai ter de se acostumar a isso." (trecho de uma das músicas mais famosas de Bob Dylan, Like a rolling stone)

Freewheelin'

Qualquer indivíduo apreciador da boa música já ouviu, pelo menos uma vez na vida, a música Blowin' in the wind, verdadeiro hino da década de 1960, composta por um dos mais prolíficos artistas norte-americanos dessa época: Bob Dylan. A letra da canção deveria ser elogiada por adjetivos que fossem além de "maravilhosa" e "sensível".

Se você é um apreciador da boa música e ainda não ouviu falar dessa obra-prima da poesia cantada, então é agora que vai conhecê-la. Aqui neste post, trago a tradução da música – que você encontra em qualquer buraco da internet, aliás – e um vídeo do Youtube com o áudio da canção, na versão cover do trio Peter, Paul & Mary.

A melodia instrumental da música é extremamente simples: apenas um dedilhar de violão e um sopro ocasional de gaita. Na verdade, acho que a maioria das músicas de Dylan é assim: privilegia a letra, e não necessariamente a melodia instrumental; mesmo bonita, esta apenas embala tudo.

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"Quantas estradas precisará um homem andar
Antes que possam chamá-lo de um homem?
Quantos mares precisará uma pomba branca sobrevoar,
Antes que ela possa dormir na areia?
Sim e quantas vezes precisará balas de canhão voar,
Até serem para sempre abandonadas?
A resposta, meu amigo, está soprando no vento
A resposta está soprando no vento

Sim e quantos anos pode existir uma montanha
Antes que ela seja lavada pelo mar?
Sim e quantos anos podem algumas pessoas existir,
Até que sejam permitidas a serem livres?
Sim e quantas vezes pode um homem virar sua cabeça,
E fingir que ele simplesmente não vê?
A resposta, meu amigo, está soprando no vento
A resposta está soprando no vento

Sim e quantas vezes precisará um homem olhar para cima
Antes que ele possa ver o céu?
Sim e quantas orelhas precisará ter um homem,
Antes que ele possa ouvir as pessoas chorar?
Sim e quantas mortes ele causará até ele perceber
Que muitas pessoas morreram?
A resposta, meu amigo, está soprando no vento
A resposta está soprando no vento"

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Blowin' in the wind é a primeira faixa do CD Freewheelin' (imagem acima) e ganhou uma fama maior ainda quando foi regravada pelo trio Peter, Paul e Mary. O álbum de Dylan está entre os 1001 Discos para se ouvir antes de morrer.

Abaixo, o áudio-vídeo da música. Não é a versão original. Não a coloquei aqui porque ela é extremamente difícil de achar, ao contrário do que eu pensava. No mais, espero que gostem. É a versão de Peter, Paul & Mary.

18 outubro 2010

Contos, de Katherine Mansfield

"Deixamos para trás o bulício da cidade, e não consigo nos imaginar voltando algum dia (…)" (p. 141)

Contos completosKatherine Mansfield

Hoje, pelo finalzinho da tarde e início da noite, eu finalizei a leitura de uma coletânea de Contos da famosa escritora neo-zelandesa Katherine Mansfield, aquela da qual a célebre Virginia Woolf disse: "Eu tinha inveja dos textos dela".

Fui atrás de um livro da Mansfield porque vi que Erico Verissimo, escritor nacional pelo qual tenho verdadeira fixação, cita no seu romance Caminhos cruzados (1934) o nome da autora. Nessa passagem, o personagem Noel Madeira comenta com sua amiga Fernanda que está lendo contos da Katherine Mansfield, e acrescenta que está adorando. Então…

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Sinopse: Esta edição reúne contos da mais fina produção da escritora. Em relação às publicações anteriores no Brasil há correções importantes de erros de revisão e de tradução, que comprometiam às vezes a intelecção de passagens inteiras. Foram incluídas, também, notas esclarecedoras sobre contextos locais.

A edição traz, ainda, apêndice com trechos de seus diários comentando cada conto, bem como sugestões de leitura e fotos inéditas do arquivo Katherine Mansfield da Biblioteca Nacional da Nova Zelândia.

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Como geralmente acontece, eu encomendei o livro pelo site da Estante Virtual porque constatei que o preço das lojas é um absurdo, totalmente inacessível para mim. Quando constato isso, não perco tempo: procuro o título em sebos virtuais, confiro a qualidade do que estão vendendo (se o volume está rasgado, amassado, riscado etc.) e compro na mesma hora. Até agora, tem dado certo.

Quem for vasculhar com cuidado a minha estante no site Skoob, vai ver que demorei praticamente dois longos meses para acabar a leitura desse livro de contos da K. Mansfield. A demora foi por duas razões. A primeira razão tem sua origem em questões práticas: eu comprei o livro logo depois de voltar às aulas, e, sempre que isso acontece, leio o comecinho e deixo o resto para depois. A segunda razão surgiu porque não gostei do comecinho que li. Por essas, demorei a pegar no livro de novo.

Mas, ainda bem que o mundo dá voltas e, com isso, o sol se põe e se ergue cotidianamente. Como eu raramente abandono um livro, fui até o final dos contos da Mansfield, custasse o que custasse. E agora, terminada a leitura, confesso: adorei tudo. Impressionante.

Aula de cantoK.M.

Fotos ilustrativas: uma brochura de Mansfield e uma foto sua

Realmente, falando sério agora, foi impressionante o que me aconteceu com esta coletânea: achei o começo péssimo (eu não li os contos em ordem, vale ressaltar), mas depois de terminados os primeiros textos, o resultado final foi excelente. Inúmeras passagens memoráveis. Na história Conto de homem casado, por exemplo, a autora invoca a primeira pessoa masculina e traça várias reflexões sobre a vida conjugal decadente, reflexões que realmente deixam o leitor pensativo… digamos, com o coração mole.

Em As filhas do falecido coronel, excelente conto, as duas moças Constantia e Josephine tentam lidar com a figura ausente do recém-falecido pai. Fazem um inventário de seus pertences, convidam pessoas para visitá-las, mas mesmo assim não se vêem livres da autoridade do coronel morto.

Diário e cartasK.M.

Fotos ilustrativas: "Diário e cartas" de Mansfield e uma foto sua

O ponto-chave da coletânea são os contos que compõem a Trilogia da infância na Nova Zelândia (Prelúdio, Na Baía e A casa de bonecas), que contam um pouco do cotidiano da família Burnell, formada pelo típico homem de negócios, Steve, pela mulher sensível e devaneadora, Linda, e pelas suas três filhas pequenas, Isabel (a manda-chuva chata), Lottie (a novinha tola) e Kezia (preferida de Mansfield, nota-se desde o começo). Em Na Baía, a reflexão do personagem Jonathan – irmão de Linda –, sobre a vida mal-aproveitada que as pessoas levam dentro de escritórios, é belíssima.

Os contos que me deixaram traumatizado no início são, realmente, os menos atrativos: Alemães comendo, Uma viagem indiscreta e o razoável A mosca. Talvez com exceção deste último, os outros são completamente sem sentido, sem objetivo, como se a autora os tivesse escrito sem um planejamento prévio, apenas vomitando as cenas. São mesmo ruins. Até um amigo meu, fã de Mansfield, concordou.

Conclusão: eu diria que essa coletânea necessita de um leitor bem paciente e atencioso. Se você encarar os contos com boa vontade e pouca expectativa, com certeza vai gostar. Com certeza.

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"Aquilo era viver – sem se preocupar, sem pensar, generosamente. (…) Levar as coisas serenamente, não lutar contra a maré e o fluxo da vida, mas dar passagem a ela – era disso que se precisava. Aquela tensão é que estava errada. Viver – viver! E a manhã perfeita, tão nova e bela, deleitando-se à luz do sol, como que a sorrir de sua própria beleza, parecia sussurrar: 'Por que não?'". (p. 152)

11 outubro 2010

O homem terminal, de Michael Crichton

"As máquinas estão em toda parte. Elas costumavam ser os servos do homem, mas agora começam a dominar, de forma muito sutil." (p. 84)

O homem terminalMichael Crichton

Hoje pela manhã eu finalizei a leitura do romance O homem terminal (The terminal man, 1972), assinado pelo famosíssimo escritor norte-americano Michael Crichton, vítima de um câncer que levou sua vida no final de 2008. Para trás, ele deixou obras como o best-seller Jurassic Park e o intrigante Esfera.

Já li praticamente toda a obra desse autor, incluindo o seu primeiro romance, Um caso de necessidade, feito sob o pseudônimo de Jeffery Hudson. Até agora, possuo mais livros dele do que de qualquer outro autor.

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Sinopse: Uma lesão cerebral, resultado de um acidente automobilístico, causa sérios danos ao especialista em ciência da computação Harry Benson. Ele começa a apresentar sintomas de uma doença que provoca súbitos ataques de violência, a Lesão Desinibitória Aguda (LDA).

Numa tentativa de controlar esses impulsos de agressão, Benson é submetido a um revolucionário método cirúrgico em que eletrodos são implantados em seu cérebro. O objetivo do time de cirurgiões de Los Angeles, responsáveis pela experiência, é conter através de um microcomputador as perigosas crises homicidas do paciente. A cirurgia, porém, não é bem-sucedida.

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O homem terminal é o segundo romance de Crichton e o primeiro que realmente mistura medicina pura com ficção científica. Eu consegui trocá-lo no site Trocando Livros (www.trocandolivros.com.br) por um que eu tinha e não gostava muito, O jogo das horas, de David Baldacci. Valeu a pena. Crichton é mais instigante.

O homem terminal é um livro de começo lento, paulatino, em que muitas explicações são dadas e quase nenhuma ação é narrada. No entanto, isso não é problema; as coisas explicadas no começo são muito interessantes, principalmente para quem é ligado à área de medicina ou psicologia.

Além do mais, esse "começo lento" só faz o livro ficar mais verossímil, na minha opinião. A ação propriamente dita, que só tem início um pouco após a metade do romance, parece mais realista depois que o autor expôs uma série de detalhes teóricos acerca da doença de Harry Benson e do tratamento que fora realizado nele – ou seja, no começo da obra.

Edição norte-americanaPôster do filme

Edição norte-americana e pôster do filme

Os pensamentos do personagem McPherson sobre um super-computador composto por tecido orgânico, por exemplo, colocam o leitor para refletir um pouco sobre a tecnologia atual e até onde ela é capaz de ir. O que mais me impressiona nos livros de Crichton – e no O homem terminal em especial – é que eles foram escritos há muito tempo e falam sobre coisas que para nós, leitores do século XXI, ainda parecem absurdas, embora verossímeis.

Esse é um dos poderes dos livros de Crichton: falam sobre coisas que achamos absurdas mas, lá no fundo, sabemos que é só uma questão de tempo para vê-las surgir no mundo.

Gostei bastante da dra. Janet Ross, a psiquiatra que cuida de Benson. Sua personalidade é agradável e nota-se que o autor a tem como sua criação preferida da história. O próprio Harry Benson também me pareceu um vilão digno de nota, o tipo do vilão que é vilão por uma causa externa, não-intencional.

Por fim, acho que o leitor aproveita mais a obra de Crichton se souber da relação do autor com a medicina. Em resumo, pode-se dizer que Crichton abandonou a faculdade de medicina porque não gostava do método frio e distante dos médicos durante o tratamento de seus pacientes, vendo-os mais como objetos do que como pacientes. E é a essa crítica aos médicos que o escritor pareceu dar mais importância nos seus primeiros livros. Para maiores detalhes, basta conferir seu livro Álbum de viagens.

Assim, O homem terminal trata da mesma coisa: pacientes que são tratados como objetos da medicina, como "coisas" interessantes para o meio médico acadêmico.

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Conclusão: Um romance instigante. Altamente recomendado.

04 outubro 2010

Filme: O último rei da Escócia

Dirigido por Kevin MacDonald, o drama estrelado por Forest Whitaker e James McAvoy é de arrepiar

O último Rei da Escócia

Mesmo gripado, mesmo com febre, mesmo com dor de cabeça, eu quis porque quis assistir O último rei da Escócia (The last king of Scotland, 2006). Havia comprado o DVD há uma semana mais ou menos, e só estava esperando chegar o final-de-semana para assisti-lo. Agora, quando ele chega, estou doente. Azar.

O dr. Nicholas Garrigan (James McAvoy) é um jovem médico escocês recém-formado que decide viajar para um país exótico e pobre a fim de ajudá-lo no quesito da saúde pública. Ele então faz as malas, sai da Escócia e vai parar em Uganda, país assolado por uma violenta guerra civil, da qual resultou a ascensão do militar Idi Amin Dada interpretado brilhantemente por Forest Whitaker (ganhador do Oscar 2007).

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A aventura começa quando o dr. Garrigan se torna, meio que por acaso, o médico particular do imponente ditador ugandense. Embora a relação que se estabeleça entre os dois seja de grande amizade e intimidade, o jovem médico se vê cada vez mais envolvido numa trama perigosa e cheia de armadilhas, pois Idi Amin governa com mão de ferro o seu ingênuo país e às vezes pega pesado. Então, aos poucos, o amigável ditador vai mostrando os dentes.

Não pretendo falar muito sobre o enredo do filme para não estragar as surpresas. Mas, garanto logo: é um filme arrebatador, imprevisível, chocante, dinâmico. Gostei bastante. Melhor ainda foi saber que o longa é baseado no livro homônimo de Giles Foden – que infelizmente não foi traduzido aqui para o Brasil.

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Eu diria que boa parte da qualidade do filme se deve à atuação de ponta dos atores principais. Claro que a história por si só já é interessantíssima, mas ficou mais interessante ainda com esse ponto extra. Whitaker com o seu olho esquerdo meio fechado é impagável, e a seriedade com que interpreta faz dele o próprio ditador em pessoa. McAvoy, o médico, que eu pensei que fosse um ator casual, fez a diferença também.

O mais surpreendente de tudo é que, muito antes de tomar conhecimento desse filme, eu já estava planejando escrever uma história que se passasse em Uganda, em meio a uma guerra civil que seria testemunhada por dois estrangeiros – no caso, um psicólogo e uma jornalista. Qual não foi a minha surpresa quando vi a sinopse de O último rei da Escócia!

Conclusão: um filme para ser visto, revisto e recomendado.

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Abaixo, disponibilizo o trailer do filme. (Sem legendas, infelizmente.)

27 setembro 2010

Contos clássicos de vampiro, vários autores

"A vida se apresentava para mim num aspecto completamente diferente: eu acabava de nascer para uma nova ordem de idéias." (p. 127)

Contos clássicos de vampiroVários autores

Agora há pouco, mergulhado na noite silenciosa e melancólica de hoje, acabei a leitura do livro Contos clássicos de vampiro, lançado nas livrarias do Brasil pela editora Hedra. O livro – como o próprio título já explica – é uma coletânea de histórias clássicas sobre vampiros, textos que vão desde o inglês Lord Byron até M. R. James, mestre na arte de contar histórias de horror.

Se não estou equivocado, é certo que nenhum conto data de além do século XIX. Vou ficar de olho na editora Hedra, que, embora seja pouco conhecida pelo leitor comum, publica vários títulos interessantes.

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Sinopse: Esta coletânea abrange um período de cem anos de histórias de vampiros, desde o fragmento de Byron, passando pelo capítulo inicial de "Drácula", suprimido por Bram Stoker, até o inédito “A tumba de Sarah”, de F.G. Loring. O leitor conta nesta edição com as obras seminais no campo da ficção, além de um apêndice com algumas das mais representativas produções literárias sobre o tema, como o fragmento do grego Filóstrato, e os poemas de Ossenfelder, Bürger,Goethe e Coleridge.

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Depois de ter lido dois contos do livro na própria livraria – Fragmento de um romance e Porque o sangue é vida – tomei vergonha na cara e comprei a coletânea. Já tinha certeza de que não ia me decepcionar. Quando eu encontro um livro por acaso numa prateleira, começo a lê-lo e ele simplesmente não sai das minhas mãos, posso garantir a mim mesmo que não vou perder dinheiro se comprá-lo.

E não me arrependi mesmo. Todas as histórias são perfeitas no objetivo de entreter o leitor. Por isso, suponho, são clássicas: se passaram centenas de anos entretendo leitores de incontáveis gerações, não há porque não continuar publicando-as. E acho mesmo necessária uma coletânea desse tipo, porque, depois de Crepúsculo (cujo filme adorei) a banalização acerca do tema vampiro ficou beirando o insuportável. Parece que milhares de escritores que não conseguiram a fama de outro modo estão pegando carona em Stephanie Meyer, autora que, por sinal, é na maioria das vezes injustamente criticada.

T. G.F. M. C.

Théophile Gautier e Francis Marion Crawford

Adoro a linguagem utilizada nesses textos que datam do século XIX e começozinho do século XX. Como diria Natália, minha amiga inseparável de literatura: "É uma linguagem que consegue ser precisa e floreada ao mesmo tempo, fechada e aberta, transgressora e conservadora, sem nunca perder a elegância." Natália e suas classificações de dar inveja.

De todos os contos do livro, certamente o mais profundo e interessante de todos – embora todos sejam interessantes – é A morta amorosa, do genial Théophile Gautier. A posição intermediária entre o sagrado e o profano na qual o pobre pároco Romualdo se encontra inserido, suscita inúmeras reflexões dignas de nota, muito bem escritas, aliás, além de ver o vampiro (vampira, no caso) sob outro prisma.

Essa coletânea vem dotada de um grande prefácio e um grande posfácio. O primeiro é uma introdução escrita por Alexander Meireles da Silva, que traça todo o perfil histórico do vampiro, desde as suas origens inicialmente eslavas até o papel que a figura folclórica desempenha no cinema. Vale muito a pena ser lido. O segundo, posfácio, é um apêndice generoso que contém poemas de grandes escritores – Goethe incluído – acerca do tema vampiresco. Já essa parte eu li apressado porque não me interessou muito.

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Conclusão: livro altamente recomendado. Tanto para os fãs do tema quanto para os apreciadores da boa literatura clássica.