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31 dezembro 2011

5 livros que eu li em 2011 e que você gostará de ler em 2012

… se o mundo não acabar, é claro.

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Quem acompanha o Gato Branco há algum tempo sabe que eu costumo listar, no final de todo ano, as leituras que realmente valeram a pena nos doze meses que se passaram. É uma prática que se consolidou no Blog por acaso, e a qual eu tento manter como uma tradição divertida.

Como dá para imaginar, dentre tantos livros lidos em um ano, é difícil eleger e recomendar apenas cinco. Sem dúvida, um número muito maior deveria ser levado em conta, mas isso significaria formular uma lista mais complexa que, no final das contas, englobaria a maioria dos livros lidos naquele ano. Sendo assim, como a idéia é ser puramente seletivo, convém eleger mesmo apenas a fina flor das obras.

Para ler a resenha completa de cada um, basta clicar sobre as capas dos livros.


Admirável mundo novo | Aldous Huxley

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Definitivamente, não é por acaso que este livro figura como um dos clássicos mais icônicos de todos os tempos. A obra mais famosa do britânico Aldous Huxley tem qualidade, sim, e não é pouca.

Em um futuro bastante longínquo, a sociedade humana se tornou essencialmente asséptica e funcional: sem a constituição de famílias, a população do mundo é dividida em castas específicas, que variam de acordo com a função que o sujeito possui perante o meio coletivo. Com uma liberdade total – porém questionável – os Alfa usufruem do planeta que os Delta e os Ípsilon são obrigados a manter, sem que com isso se sintam oprimidos pelo sistema; pois, desde o nascimento, as pessoas são condicionadas a se adaptarem à sua classe, o que sufoca, assim, qualquer tipo de mobilidade social.

A trama começa quando Bernard Marx, um Alfa, se sente deslocado no mundo elitizado que foi tido, desde o começo, como sua classe natural. Para complicar as coisas, ele começa a se sentir apaixonado por Lenina – o que é terminantemente proibido no Mundo Novo, uma vez que as paixões perturbam os homens e os levam a fazer coisas imprevisíveis.

Além de ter uma história rica em conflitos e possuir uma escrita impecável, Admirável mundo novo é um convite à reflexão sobre as organizações humanas e suas possíveis implicações. Recomendadíssimo, principalmente para os que gostam de um bom estudo social na literatura.


Os devaneios do caminhante solitário | Jean-Jacques Rousseau

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Este foi, sem dúvida, um dos melhores que li em 2011. Sensível, lírico, inovador, poético e visceral, Os devaneios do caminhante solitário é o "adeus" do brilhante filósofo Rousseau. Aqui, o autor se mostra extremamente desiludido com relação à sociedade ou, melhor, aos homens de um modo geral; acredita ser vítima das manipulações de um complô destinado a torná-lo infeliz e anônimo. Assim, procura escrever estas páginas não para o público, mas para si mesmo, pelo simples prazer de escrevê-las e pelo que acredita ser um ato de desafio àqueles que o criticam.

É um livro completo, pois apresenta reflexões das mais variadas naturezas. Felicidade, verdade, mentira, paixões, lugares, nada escapa ao escrutínio de Rousseau. Uma das sensações que senti ao lê-lo foi a de paz interior, por alguma razão que não sei explicar. Acho que o livro transmite uma idéia de serenidade muito forte.

Para quem gosta de livros de reflexão filosófica leve, este é absolutamente indispensável.


Vida roubada | Jaycee Lee Dugard

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Raptada aos 11 anos de idade e libertada (ou melhor, resgatada) somente aos 29, Jaycee Dugard é a protagonista de uma das mais dramáticas histórias de seqüestro de todos os tempos. Suas memórias de cativeiro, retratadas no livro Vida roubada, reconstroem o cotidiano catastrófico e enfadonho que a moça foi obrigada a enfrentar durante esses árduos 18 anos em que esteve nas mãos de Phillip Garrido, sobrevivendo nos fundos de um quintal.

Mas, afinal, qual é o atrativo do livro? Ora, além de trazer uma história marcante, capaz de atrair a atenção de qualquer um, Jaycee narra sua saga com uma simplicidade e uma honestidade singulares. Sem pudores, sempre valente e pronta para contar o mais ímpio dos detalhes, a autora revela assim toda a sua conturbada relação com o homem que a raptou. Muito mais que um simples livro chocante, Vida roubada é, antes de tudo, o retrato de uma das diversas tragédias concebidas no plano das relações humanas.

Para quem gosta de histórias reais, esta é a pedida do ano.


Onde os homens conquistam a glória | Jon Krakauer

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Outra história impressionante e real que li neste ano foi a de Pat Tillman, escrita pelo jornalista Jon Krakauer – mesmo autor dos best-sellers Na natureza selvagem e No ar rarefeito.

Tillman era um popular jogador de futebol americano quando, em setembro de 2001, as Torres Gêmeas foram atacadas por fundamentalistas islâmicos. Impressionado pelo evento, seu espírito patriotista foi despertado, e Tillman abandonou a carreira nos campos para se dedicar às Forças Armadas, a fim de lutar contra aqueles que violaram seu país. Acabou morto por fogo-amigo em uma das mais desajeitadas operações do Exército Americano; a família de Tillman, insatisfeita com as explicações falsas dadas pelas autoridades, remexeu a história até encontrar a verdadeira causa da morte do jovem soldado.

Além de contar a história de Tillman em detalhes, Krakauer esmiúça uma das principais guerras que agitam o século XXI. Essa talvez seja a característica mais atraente do livro, visto que, por si só, a saga de Tillman não oferece grande coisa além de mostrar a incompetência de alguns batalhões do exército norte-americano e até onde o heroísmo de uma pessoa pode levá-la.

Para quem gosta de histórias reais e para quem se interessa pelos conflitos políticos/bélicos que rolam no sul da Ásia, um prato cheio!


Lá onde os tigres se sentem em casa | Jean-Marie Blas de Roblès

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Sem dúvida, a surpresa do ano. E o último livro lido neste 2011.

Blas de Roblès nasceu na Argélia e morou em países exóticos como Tibete e Indonésia. Estabeleceu-se também no Brasil durante algum tempo, tendo lecionado nesse ínterim na Universidade de Fortaleza (Unifor) – por coincidência, a universidade em que estudo atualmente. Da experiência que teve com o Brasil, o autor escreveu Lá onde os tigres se sentem em casa, que recebeu o prêmio Médicis 2008 na França.

O livro possui uma trama intrincada que cruza diversas narrativas aparentemente paralelas. Eléazard é um jornalista francês que serve de correspondente no Maranhão, além de estar trabalhando em um manuscrito medieval que narra a vida de um jesuíta romano. Elaine, sua ex-esposa, faz parte de uma expedição em busca de fósseis raros no interior selvagem do Mato Grosso. Moema, filha adolescente do casal, vive suas aventuras noturnas no Ceará com um jovem professor e uma amiga. Nelson é um garoto aleijado que mendiga nas ruas de Fortaleza; Moreira Rocha é o governador corrupto do estado do Maranhão, culpado pela morte do pai de Nelson. E assim por diante.

O mérito do livro está em não cair nos clichês e nas armadilhas piegas dos romances que se passam no Brasil. Nada de regionalismos estereotipados, nada lugares-comuns: a obra de Roblès é, acima de tudo, um panorama sincero do nosso país, com tudo o que há de melhor, de pior e de misterioso aqui oculto.

Com um domínio visível da geografia local, Roblès usa o Brasil como pano de fundo da sua história, repleta de intelectualismo e poesia. Vale conferir, se o leitor estiver disposto a encarar as 700 páginas do volume.

Uma resenha mais detalhada deste livro poderá ser encontrada em breve aqui no site. Aguardem!


É isso. Um feliz e próspero Ano Novo para todos! :D

20 dezembro 2011

Vida roubada, de Jaycee Lee Dugard

"Amar é a parte fácil, difícil é viver sem o amor de que você precisa."

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Muitas vezes, a vida é palco de histórias que põem em cheque a afirmação de que a ficção é a única coisa capaz de nos surpreender e causar espanto. Não raro, episódios da realidade nos chocam e impressionam tanto quanto – ou até mesmo mais que – os enredos narrados nas ficções dos autores mais imaginativos. É aí que percebemos o quanto a vida pode ser pitoresca e dramática, em todos os sentidos, e não monótona e enfadonha, como gostamos de pintá-la freqüentemente.

Aconteceu de vir parar nas minhas mãos, por acaso, um livro intitulado Vida roubada (A stolen life, 2011), escrito pela norte-americana Jaycee Dugard. A capa simples da edição me despertou a curiosidade e resolvi ler o que estava escrito na orelha esquerda do volume. Embora não dê detalhes, a orelha é escrita pela própria autora, e de maneira muito objetiva ela expõe superficialmente o que ocorreu na sua infância. Na hora, pensei: este livro vai mexer comigo profundamente, tal como Os sobreviventes mexeu.

Li as memórias de Jaycee Dugard na própria livraria, em quatro dias. No começo, eu havia sentado para folhear aquelas páginas distraidamente e, quando dei por mim, estava passando da metade do livro. Não restava mais alternativa senão terminá-lo. Assim, todos os dias, ia quase religiosamente à livraria e lia mais um pedaço. Foi então que fiquei sabendo o que de fato aconteceu a Jaycee, com maiores detalhes, e não consegui mais largar a leitura.


Sinopse: Em 1991, aos 11 anos de idade, Jaycee Dugard foi raptada enquanto esperava o ônibus da escola. Pelos próximos 18 anos, sua vida se transformaria em um verdadeiro pesadelo. Abusada pelo homem que a seqüestrou, acabou se tornando mãe de duas crianças – e, de certa forma, também irmã, para tentar aplacar o imenso isolamento em que vivia. Encorajada a esquecer sua vida de antes do seqüestro, Jaycee não podia nem mesmo mencionar o seu nome. Este livro é o relato pessoal do que aconteceu durante as quase duas décadas em que a garota esteve mantida no cativeiro.


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Impressionante. Essa é a palavra que uso para qualificar este livro. Algumas passagens do texto soam tão irreais que parecem estar situadas no plano da ficção – mas não deixam de transmitir a sensação sólida de que são, sim, verídicas. Por exemplo, não é fácil assimilar a idéia de que uma garota de 11 anos de idade foi seqüestrada e resgatada somente 18 anos depois, aos 29: mas lá está o relato doloroso e conciso de Jaycee, que nos faz cair em si e pensar: "De fato, isso aconteceu".

Não é uma leitura fácil, tematicamente falando. É preciso estar com a cabeça em dia para, por exemplo, encarar os detalhes com que a autora narra os estupros a que ela mesma foi submetida ao longo de muitos anos. Em contrapartida, o que dá alívio ao leitor é a sensação de superação de Jaycee, pois através de seu livro é possível ver claramente que ela se enxerga acima de tudo o que relata. Esse distanciamento faz com que as páginas escritas não fiquem mais dolorosas do que já são por conta própria. Em muitas passagens (aliás, no livro inteiro) fica clara a vontade insistente da autora de superar esse trágico incidente que aconteceu na sua vida.


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Jaycee Dugard, antes e depois do seqüestro


A escrita de Jaycee Dugard é objetiva e concisa sem, no entanto, deixar de ser literária e até mesmo agradável. Às vezes parece que as pessoas que passam por suplícios assim são compensadas com o dom da escrita, para que então possam contar suas histórias inacreditáveis ao público. De qualquer modo, Jaycee narra suas memórias de cativeiro em um tom que não é nem um pouco afetado, mas que carrega consigo um toque qualquer de lirismo – para começar, boa parte do relato é contado no presente, como se fosse a garota que estivesse a narrar a história em tempo real. O resultado é uma escrita fluída e muito bem-vinda. Além disso, o texto é recheado de frases curtas e diretas (um detalhe que achei interessante).

Esse relato no presente é intercalado por trechos que a autora designou de Reflexões, em que, como o próprio nome sugere, Jaycee Dugard passa a limpo alguns pensamentos acerca daquilo que acabou de escrever. É um exercício bem interessante, que ficou extremamente atraente no seu livro de memórias, porque a autora passa a se valer de uma consciência que ela não tinha na época dos acontecimentos descritos.


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O seqüestrador Phillip Garrido e sua esposa, Nancy, cúmplice no crime


No começo do livro – principalmente nos momentos logo após o seqüestro – é fácil achar Phillip Garrido o maior cretino de todos, um ímpio e asqueroso ser humano. No entanto, esse é um julgamento que parte do próprio leitor, não da autora. Jaycee deixa transparecer um grande ressentimento para com Garrido, o que é perfeitamente lógico, mas não cai na armadilha de transformar seu relato em uma sucessão de trechos em que julga seu seqüestrador. Qualquer pessoa que saiba alguma coisa de psicologia é capaz de perceber quão doentia e congestionada estava a mente de Garrido. Esse estado precário de saúde mental do criminoso está longe de eximi-lo da culpa que teve, mas ao menos explica boa parte de seus atos.

Em suma, recomendo este livro, Vida roubada. É um relato profundo e emocionante sobre esse caso famoso que teve lugar nas manchetes do mundo inteiro em meados de 2009, quando Jaycee foi resgatada do cativeiro. E a obra é também, em última instância, um retrato de nossa sociedade abatida, que sempre gerou muitas tragédias no plano das relações humanas.


A quem estiver interessado, disponibilizo aqui a introdução e o primeiro capítulo do livro. Vale a pena conferir.


Vida roubada (2011)

Jaycee Dugard

304 páginas

Editora Best Seller

Nota: 10/10

13 dezembro 2011

Solo de clarineta (vol. I), de Erico Verissimo

"Carrego sempre comigo uma boa provisão do sal da malícia e da dúvida para temperar muitas das coisas que digo, escrevo, penso ou faço." (p. 292)

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Dois anos antes de falecer, Erico Verissimo achou viável começar a redigir as suas memórias. Sentou-se na frente da sua máquina de datilografar, velha companheira, e iniciou o que viria a ser o primeiro volume da obra Solo de clarineta (1973), destinado a contar desde os primeiros passos (literalmente, primeiros passos) do pequeno Erico até a rotina de seu posto no Departamento de Assuntos Culturais da União Pan-Americana, quando o novelista brasileiro já gozava de largo prestígio internacional.

No meu caso, a leitura desse livro veio do desejo de entrar mais uma vez em contato com o autor. Fazia já muito tempo desde que eu lera Noite, e, tendo Erico como um dos meus autores favoritos (senão o favorito), decidi partir para a leitura de uma nova obra sua. Depois de ter lido praticamente toda a sua ficção, optei pelas memórias. Nunca fui um grande fã de auto-biografias, mas, no caso de Erico Verissimo, tive a certeza de que valia a pena conferir.


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Casa em que Erico Verissimo morou, em Cruz Alta


Há alguns anos, um dos seus parentes mais próximos (não me lembro quem) disse que era curiosa a sensação de ler um livro de Erico Verissimo, porque ele escrevia exatamente da mesma forma que falava. Não duvido disso nem um pouco. Em todos os seus romances, a maneira de contar a história é precisamente igual, nesse tom de escrita falada, cadenciada, típica das conversações. Essa é uma das características do autor que eu mais gosto, e ela pode ser encontrada também no seu livro de memórias. Há um leve tom de descompromisso nos seus escritos, como se escrever fosse apenas o meio pelo qual a história propriamente dita passasse a existir. Aqui, a sensação de que autor e leitor estão conversando é imensa e não passa despercebida por ninguém.

Nessa obra, Erico expõe toda a sua intimidade, revelando seus laços com os pais, o irmão, os tios e até mesmo com as namoradas de sua adolescência, sempre passageiras e genéricas. Sem dúvida, um dos pontos fortes de Solo de clarineta é o estudo que o próprio autor faz da figura de seu pai, Sebastião Verissimo, pelo qual ele sentia um misto de fascinação, respeito e até desprezo (sentimentos paradoxos, como o próprio Erico admite). Seu pai é uma figura tão presente no livro que, mesmo nas partes em que ele não está, o autor trata de trazê-lo à tona.


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Erico com seus dois filhos, Clarissa e Luis Fernando


Paralelamente ao estudo que Erico faz de sua relação com seus familiares, é tecida também toda a sua formação de escritor, desde os primeiros contos, na adolescência, até a confecção de O tempo e o vento, obra máxima dele. Isso certamente vai deleitar muitos dos seus leitores. É interessantíssimo entrar em contato com o processo criativo do autor, descobrindo suas principais inspirações e dificuldades. Sem dúvida, este é outro ponto forte do relato.

Na minha opinião, as passagens mais curiosas e novelescas do livro vêm da experiência que Erico teve com as farmácias de sua família. A primeira, chefiada por seu pai, constituiu uma espécie de pano de fundo na sua infância; em diversas ocasiões ele narra episódios que aconteceram dentro dessa farmácia e que o impressionaram quando menino (incluindo o famoso episódio da metáfora da lâmpada). A segunda farmácia, fundada a partir do fracasso da primeira, foi inaugurada pelo próprio Erico, anos mais tarde, em sociedade com um amigo da família. Mais uma vez, o negócio fracassou.

E o livro segue esse embalo, narrando casos um tanto quanto dispersos, seguindo uma tênue seqüência cronológica – às vezes se detendo mais em um determinado contexto, à escolha do autor. Não é um defeito, evidentemente. É uma opção, uma maneira de contar a própria vida, destacando os elementos importantes e passando por cima dos menos relevantes.


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Sempre achei difícil resenhar uma auto-biografia. Deve ser porque não está em jogo a qualidade do livro, nem a sua "importância literária". Quem sou eu para dizer que um determinado livro de memórias é importante ou não para a literatura, como um todo? Em primeiro lugar, aliás, quem sou eu para dizer que um livro desses é de fato bom ou ruim, no puro sentido dos termos? Considero as memórias uma coisa muito pessoal de cada autor, e, se ele resolveu publicá-las, é porque julga que elas terão alguma importância para os seus leitores. É o caso de Solo de clarineta.

O próprio Erico diz: "Não esperem que estas memórias formem um documento histórico. Elas não têm a intenção de fazer nenhum perfil de minha época ou dos meus contemporâneos. É antes um livro sincero, que dedico especialmente àqueles que me têm lido durante todos esses anos." Eu, que o tenho lido durante todos esses anos, achei o livro muitíssimo interessante. Quem não é fascinado pelo autor e pelos seus romances (coisa difícil) pode ter uma opinião diferente. Mas o fato é que eu recomendo Solo de clarineta para quem quiser entrar de cabeça na vida de um dos mais importantes escritores brasileiros de todos os tempos.

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Para ler o curto prólogo do livro, clique aqui.


Solo de clarineta – vol. I (1973)

Erico Verissimo

334 páginas

Companhia das Letras

Nota: 10/10

06 dezembro 2011

Por uma boa arte de capa

Seria lugar-comum dizer que a capa de um livro é o seu cartão-de-visitas?

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Antes que eu comece a escrever qualquer coisa neste post, devo esclarecer algo importante: as capas dos livros da coleção de bolso da editora Saraiva (três exemplos acima) são, justamente, o alvo da crítica ambiciosa que eu tenho a fazer hoje. Estou logo afirmando isso porque, se alguém apenas ler o título da postagem e ver as capas que abrem o texto, podem pensar que eu estou elogiando a arte delas – quando, na realidade, minha intenção é contrária.

Curioso: sempre que eu venho criticar alguma coisa aqui no Blog, fica em mim uma desagradável sensação de estar bancando o exasperado, o "do contra", o mau-humorado. Não gosto desse sentimento porque ele não reflete a verdade. Quero, apenas como leitor e, antes, como pessoa, dar minha opinião sobre o universo literário. Esse é um exercício agradável e também importante, e acho que muitas pessoas deveriam praticá-lo, independentemente de estarem certas ou não.

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Quando a editora Saraiva anunciou que estava lançando uma coleção própria*, de bolso, cuja idéia era publicar autores clássicos e suas principais obras, vibrei, porque adoro esse tipo de iniciativa. Preços acessíveis e clássicos indispensáveis é uma das melhores combinações que um leitor pode imaginar, e uma editora que ousa entrar nesse território do empreendedorismo merece parabéns. Nesse caso específico, a primeira coisa que procurei foi um catálogo com os títulos já disponíveis (não sou grande fã de livros clássicos, mas, às vezes, alguns são bastante convenientes).

Porém, assim que vi os livros expostos nas prateleiras da loja, confesso que fiquei absolutamente surpreso e desapontado ao me deparar com a capa da obra A náusea, de Jean-Paul Sartre. Uma caricatura feia e, em suma, desagradável, desenhada sobre um pano de fundo azul. Um livro excelente e sério como esse não pode ter o desígnio infeliz de receber um tratamento tão leviano (admito, nesse ponto sou conservador). Não só na capa d'A náusea, mas em quase todos os outros títulos da coleção, fica uma idéia de sátira, de brincadeira, de infantilidade. Em uma coleção de clássicos, mesmo que de bolso, essa não é uma idéia muito boa. Sinceramente.


Alguns depoimentos de leitores a respeito das capas:

"Eu não gostei. A ilustração não é bonita, nem as cores apropriadas. Simples e mal feita."

"Quando eu penso em Jane Austen e tenho que traduzir isso visualmente, sempre penso em algo sofisticado, elegante e requintado. E estas capas não passam nem um pouco esse aspecto."

"De fato, caricaturas geralmente não me agradam. E pode ser legal pra uma tirinha e tal, mas na capa do livro não gostei. E as cores chamam a atenção, mas, no caso, na minha opinião, não para comprar."


Confesso que estamos em tempos modernos e que algumas coisas devem ser feitas à revelia, num processo de desconstrução dos modelos rígidos, mas existe um certo limite aí estabelecido pelo bom senso, principalmente no que se refere a livros. Não são todas as pessoas (ou todos os leitores, para ser mais específico) que gostam de caricaturas. Eu, pessoalmente, as acho muito desagradáveis de se ver por um longo tempo, e conheço muitas outras pessoas que compartilham disso. O fato de ser uma coleção de bolso, de baixo custo, não dá margem a um cuidado menor com os detalhes, tais como a arte da capa.

Não me entendam mal. Como eu disse antes, incentivo totalmente a idéia de publicarem clássicos da literatura mundial a preços acessíveis. Só acho que deveriam ter tido um palpite melhor para a confecção das capas. A editora Saraiva tem cacife para pensar em algo melhor e mais elaborado, sem dúvida. Acho ruim o fato de dois títulos da autora Jane Austen (Razão e sentimento e Orgulho e preconceito) virem com a mesma ilustração, por exemplo. Isso generaliza as obras e lhes dá um caráter superficial, de coisa distribuída sem pretensão.


Processo de criação das capas

Sei que essa é uma opinião muito específica e que nem todo mundo concorda comigo, mas, como sempre, estou usando este espaço aqui para fazer minhas próprias considerações. Na internet, principalmente em blogs, acho válido escrever o que se pensa e esperar que alguém inicie uma discussão saudável, apresentando o outro lado da moeda.

Sem entrar de modo algum no mérito das editoras envolvidas, deixo a seguir alguns exemplos de capas de livros de bolso que considero de muito bom gosto genérico. A propósito, muitas editoras já perceberam que a padronização das capas de coleções não é uma boa idéia, justamente porque cada obra necessita de um trato diferenciado que lhe dê características próprias.

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*Convém lembrar que, a princípio, o lançamento da coleção é fruto da parceria entre editora Saraiva e editora Nova Fronteira.

29 novembro 2011

Fantasmópolis, de Doug TenNapel

"Oh. Apenas um garoto." (p. 97)

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Hoje aconteceu uma coisa inédita: li um livro inteiro em pé. Tudo bem, pode não parecer grande coisa quando se trata na verdade de uma graphic-novel com poucos diálogos, mas o fato é que, mesmo no desconforto de estar escorado em uma prateleira pensa e recebendo um jato gélido do ar-condicionado na cara, li de ponta a ponta o mais novo álbum da editora Ática.

Estamos falando de Fantasmópolis (Ghostopolis, 2011), escrito e desenhado por um artista bem conceituado e conhecido nos Estados Unidos: Doug TenNapel. Os nintendistas dos anos 1990 certamente já estão familiarizados com uma das suas principais criações, que virou ícone nerd no mundo dos gamers: a minhoca esquisita Earthworm Jim, protagonista de um dos jogos mais singulares e difíceis da Nintendo. Lembram?

Minha proeza de hoje se deu totalmente por acaso, assim como todas as outras poucas proezas que já consegui realizar na vida. Eu estava passeando pela minha livraria predileta com meu irmão, quando, de repente, ele me convidou para dar uma olhada na seção dos quadrinhos. Fomos. Cheguei lá, puxei um volume a esmo da estante e, sem sequer olhar o título, comecei a lê-lo: não deu outra. Quando eu me dei conta de que já estava na metade do álbum, decidi que não tinha outra opção que não fosse terminá-lo ali mesmo.


Sinopse: Garth é um garoto com uma doença incurável que tenta levar uma vida normal. Frank Gallows está em crise com seu emprego de caça-fantasmas. Seu posto na Força-Tarefa de Imigração Sobrenatural está por um fio. Então comete uma falha imperdoável: acidentalmente envia o garoto para o Além muito antes da hora. Enquanto Frank tenta reparar seu erro, Garth conhece um mundo inteiramente novo. Em Fantasmópolis, centro de todo o Além, ele descobre que fantasmas e pesadelos povoam sete reinos distintos, comandados pelo temível Vaugner. Mas o mundo dos mortos não é mais o que costumava ser e, em busca de um caminho de volta, Garth terá de restaurar a paz na cidade fantasma.


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O enredo de Fantasmópolis é do tipo comum que, se for bem trabalhado, pode arvorar uma história em grande parte original e dotada de vida própria. Sei que parece algo contraditório, mas é o mesmo tipo de história encontrada em, por exemplo, A história sem fim: um argumento comum que recebeu um trato extremamente cuidadoso e que, por isso, agora goza de originalidade. (Só para constar, esse é o único paralelo que traço entre a obra de Michael Ende e a graphic-novel de TenNapel. De resto, vale frisar, as duas coisas nada têm em comum.)

Fantasmópolis possui um traço artístico bem esparso e livre de detalhes, assim como boa parte das graphic-novels modernas. Embora seja simples, seu desenho não é nem um pouco ruim, e é a própria simplicidade que transmite para o leitor o caráter leve, ágil e bem-humorado da obra. Foi essa agilidade de ritmo que me permitiu ler o álbum em pouco mais de uma hora, e nesse aspecto há um lado bom e outro ruim. O lado bom é que a economia de palavras e quadros dá à obra em questão uma espécie de "personalidade" própria, enxuta e direta. O lado ruim dessa frugalidade, por sua vez, pode ser percebido em passagens que mereciam (e não tiveram) um melhor cuidado na narrativa, um compasso mais lento e detalhado.

Ser objetivo e dar poucas explicações é um traço característico de TenNapel – isso a maioria das pessoas que acompanham o seu trabalho sabe. Às vezes (e isso vale para Fantasmópolis), podemos até preencher lacunas com a nossa imaginação particular, explicando coisas e detalhando cenas que o autor se absteve de descrever. No entanto, apesar desse exercício agradável de literatura, diversas vezes percebi no álbum uma agilidade e uma rapidez que não combinavam com o "clima" da cena. Essas passagens (penso eu, na minha incipiente experiência com graphic-novels) demandam um trabalho atento e cuidadoso que o seu autor não lhes conferiu.


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Mesmo com essa leve escorregada, Doug TenNapel consegue criar uma história divertida que prende a atenção, apesar dos muitos clichês presentes ao longo de boa parte do quadrinho. Imagino que a presença desses clichês é até proposital, porque o leitor nota um quê de brincadeira nessas abordagens, como se o autor procurasse entreter os leitores com mais esse elemento, também. De qualquer modo, emerge das páginas do álbum uma espécie de garra que prende o leitor, e, assim, ele vira folha depois de folha sem se dar conta do tempo. Foi o que aconteceu comigo.

Sem dúvida, uma das características mais marcantes e curiosas de Fantasmópolis é a presença maciça do fator surreal, que enche as páginas do início até o fim. Certamente é esse fator que movimenta toda a obra e faz com que ela se torne tão convidativa ao leitor, além de ser o marco de originalidade que livra o quadrinho de cair na mesmice das histórias de fantasia. Todos os personagens, embora pouco aprofundados subjetivamente, são interessantes e possuem uma atração particular, cada qual a seu modo ligeiro.

Em suma, se você procura uma graphic-novel leve e desinteressada, Fantasmópolis pode ser uma boa sugestão. É possível gastar menos de uma hora e meia lendo esse álbum, que, além de bem-humorado, é divertido e imaginativo, narrado em linguagem ágil e econômica – bem aos moldes dos quadrinhos modernos.


Fantasmópolis (2011)

Doug TenNapel

Editora Ática

Páginas:

Nota: 8/10

20 novembro 2011

Uma música, um estado de espírito; várias músicas, uma vida

Aceitaria de bom grado viver sem matéria, mas não sem música.

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Há quem diga que 90% do nosso gosto musical não é construído através das nossas experiências próprias, mas a partir das tendências que herdamos dos pais, tios, avós, e assim por diante. Como se recebêssemos uma espécie de carga cultural naturalmente transmitida por nossos parentes mais diretos, passamos a admirar as músicas e composições das quais aprendemos a gostar desde muito cedo. Se a tradição de uma família (seus costumes, seus rituais, sua filosofia de vida) é ensinada a uma criança desde a sua mais tenra idade, não há porque não incluir o gosto musical nessa bagagem de elementos perpassados pelas gerações.

Cresci ouvindo músicas clássicas de rock, principalmente as músicas que faziam sucesso nas décadas de 1960 e 1970, incluindo bandas como Dire Straits, Pink Floyd, Creedence Clearwater Revival, The Beatles, Simon & Garfunkel, Bob Dylan, Bee Gees, entre outros. Lembro muitíssimo bem dos finais-de-semana passados na casa da minha avó, para onde convergiam todos os meus tios e tias, que colocavam na vitrola músicas de pop rock para a animação geral. A música da qual me recordo com mais nitidez é Sultans of Swing, do Dire Straits, cuja melodia hoje me traz sentimentos nostálgicos do mais alto grau.


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Esse repertório musical montou as bases do que hoje eu chamo de meu gosto por músicas. Aprofundei meus conhecimentos sobre as bandas que ouvia na infância/adolescência, chegando ao ponto de ser mais bem informado sobre elas que os próprios tios e tias que as apresentaram para mim. Enquanto meu pai ainda está na fase Dark Side of the Moon e The Wall, do Pink Floyd, eu já tive há séculos a curiosidade de conhecer toda a discografia da banda – e, nesse processo, encontrei músicas que correspondem a verdadeiros tesouros, como algumas que se encontram nos álbuns Meddle e Animals.

De um modo geral, acredito que as músicas – todas elas, sem distinção de gênero – sejam tão importantes para a vida de uma pessoa quanto o estudo ou a presença de amigos. Este meu pensamento sempre é mal-interpretado, mas apenas porque certas pessoas não compreendem que, quando falo de música, não me refiro a nenhuma específica, mas ao contexto musical, à cultura musical mais abrangente possível. Estou convicto de que alguém que não sabe apreciar músicas – conheço muitos indivíduos assim – não possui um controle estável sobre as próprias emoções. Saber admirar uma boa música, assim como saber admirar um bom quadro, ou um bom livro, está intimamente relacionado ao domínio que eu tenho no âmbito das emoções.


Ferrari


É bem interessante lembrar do valor terapêutico das músicas. Muitas pessoas enxergam apenas diversão e entretenimento onde há, também, "massagem espiritual": as músicas não fornecem contexto apenas para entreter as pessoas, mas, principalmente, para fazê-las ter um contato melhor com a realidade na qual estão inseridas. Nunca me esqueço do dia em que, melancólico pela reprovação em um vestibular, eu disse a uma amiga: "Quero chegar em casa e ouvir música", ao passo que ela retrucou: "Como você consegue?" Minha amiga não percebeu que eu de fato não tinha a menor intenção de me divertir, mas de relaxar, de tentar colocar as coisas de volta nos eixos – com música.

Acredito muito na idéia de que nossa vida é formada por aquilo que nós gostamos de ouvir. Digamos que boa parte da nossa vida só faz sentido quando ela é embalada pela "trilha sonora" que escolhemos ter. Afinal de contas, nosso gosto musical define uma grande fatia do arsenal com o qual nos confrontamos com a realidade. Música é refúgio, é apego à natureza, à arte, é fuga do cotidiano.

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Deixo a seguir o áudio de uma das músicas mais belas que já tive o prazer de ouvir, de um dos melhores álbuns de Mark Knopfler, um dos melhores músicos da atualidade. Knopfler foi o líder guitarrista do Dire Straits, conjunto de rock lendário nos anos 70/80, e começou a sua carreira solo algum tempo depois do término da existência da banda.

A música se chama Before gas and TV e está no álbum Get Lucky, lançado em meados de 2009. Este é um dos poucos discos que escuto do início ao fim sem pular uma única faixa.

Vida longa aos adoradores da arte musical!

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06 novembro 2011

Ciência e poesia, lado a lado

A verdadeira ciência é aquela que fala não do que os homens fazem da natureza, mas de como eles se relacionam com ela.

O ócio é uma coisa maravilhosa. Ultimamente venho pensando em algumas coisas que, sem dúvida, merecem postagens aqui no Gato Branco em Fuligem de Carvão. É fato que eu estou começando a achar interessante a idéia de usar este espaço não só para publicar minhas impressões sobre os livros que leio, mas, também, para expor o que eu penso sobre determinados assuntos de interesse público. A propósito, algumas postagens dessa natureza crítico-reflexiva foram extremamente bem recebidas pelos meus leitores, como é o caso de Ônibus 174, A tendência do uso de aspas em diálogos e A questão da tecnologia nas escolas, todas muito visitadas e comentadas pelas pessoas que aportam ao acaso por aqui.

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É curioso. Nessa semana meu pai comprou o livro Deus, um delírio, best-seller escrito pelo ateu Richard Dawkins, famoso pelos seus ataques impiedosos às instituições religiosas em geral. E, embora eu esteja pensando muito sobre o debate eterno entre ateus e religiosos fanáticos (e sobre a importância da religião nas diversas áreas do ser humano), hoje tive vontade de escrever sobre outra coisa totalmente diferente. Algo que me chamou a atenção durante a leitura do livro Os devaneios do caminhante solitário, de Jean-Jacques Rousseau. É uma coisa que não tem nada a ver com religião ou com a falta dela, a propósito.

Quem já leu mais de um livro científico escrito no século XVIII pode ter percebido uma coisa curiosa (e interessantíssima) que eu só percebi muito recentemente, através da leitura da já mencionada obra de Rousseau. De maneira sucinta, é isto: naquela época os cientistas misturavam arte e ciência em seus escritos de uma forma tão maciça que se torna impossível dissociá-las. A pessoa que já leu as primeiras partes de O discurso do método, de Descartes, por exemplo, entende o que eu estou querendo dizer. Ou mesmo quem já leu algum manuscrito publicado por Isaac Newton.


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Frontispício de uma obra de Descartes


O que esses livros científicos dos séculos passados têm em comum? Simples: são tratados que dissecam a natureza, mas tratam, fundamentalmente, da relação pessoal entre o Homem e a Natureza. Qualquer leitura cuidadosa desses textos revela isso de modo evidente, e essa característica foi algo que se perdeu no seio da tradição científica. Hoje, qualquer estudo que seja dotado de um valor humano mais profundo e pessoal é considerado de pouco valor científico, porque não atende às exigências de impessoalidade promovidas pelo positivismo de tempos idos.

Para se ter uma idéia, os discursos de Descartes e Newton (por exemplo) não se referem a discursos científicos, mas, antes, a tratados filosóficos. O que as pessoas hoje entendem por ciências exatas era, naquele tempo, cunhado por "meditações", "devaneios" e outras palavras que sugerem pensamento reflexivo emocional, e não meramente racional. O que Rousseau mais fez em seus escritos políticos foi desnudar a condição humana a partir do seu ponto de vista, que ele não cansava de frisar. Descartes, hoje tido como um dos ilustres senhores do pensamento analítico, escreveu no início da Quarta Parte de seu Discurso do método a mais bela tentativa de se livrar dos preconceitos que invadiam sua mente.

Esses autores, diferentemente do que o senso-comum hoje imagina, não se limitavam apenas a elucubrações lógicas e deduções analíticas baseadas em números. Eles tinham um profundo interesse em relacionar seus estudos com a sua visão pessoal de mundo, partindo para o lado emocional mesmo. Basta lembrar que, com sua premissa de dividir o pensamento racional no maior número de partes possíveis, Descartes provou a existência de Deus, que era uma grande paixão sua.


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Um dos primeiros exemplares de Principia, de Newton. Observe o caráter ambivalente da obra trazido no título.


Os estudos científicos daquela época se confundiam mesmo com poesia. Deve ser por isso que sinto um prazer especial em lê-los. Muitos parágrafos dos escritos de Newton ou Rousseau são capazes de fazer inveja aos mais prolíficos romancistas e poetas. Na época em que esses autores vingaram, havia um certo deleite em mostrar o lado artístico da Ciência. Hoje, em prol de um saber mais neutro e definitivo, isso foi posto de lado. Algumas universidades chegaram ao ponto de desencorajar os pesquisadores a utilizarem os verbos em primeira pessoa, tornando as coisas o mais impessoal possível. Não que isso seja algo condenável. Mas é preciso saber alargar os conceitos de Ciência e abrir as possibilidades para estudos que necessitam de um embasamento mais pessoal.

Citei Descartes, Newton e Rousseau por serem os expoentes máximos disso que eu chamo de ciência poética. Se você nunca leu nada desses autores, sugiro que vá atrás de uma obra de pelo menos um deles. Você vai se surpreender ao enxergar não somente deduções analíticas e suposições baseadas na lógica, mas o mais puro pensamento meditativo e filosófico – coisa de que sinto falta nos escritos científicos de hoje.


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A associação da imagem destes pensadores com os números faz supor que eles se preocupavam apenas com a Lógica.


A seguir, para finalizar, deixo com vocês alguns trechos extraídos de O discurso do método, de René Descartes. São trechos bonitos que poderiam figurar em qualquer livro nas estantes de literatura.

"(...) a diversidade de nossas opiniões não se origina do fato de serem alguns mais racionais que outros, mas apenas de dirigirmos nossos pensamentos por caminhos diferentes e não considerarmos as mesmas coisas. Pois é insuficiente ter o espírito bom, o mais importante é aplicá-lo bem. As maiores almas são capazes dos maiores vícios, como também das maiores virtudes, e os que só andam muito devagar podem avançar bem mais, se continuarem sempre pelo caminho reto, do que aqueles que correm e dele se afastam." (p. 1)

" (…) percebi que, ao mesmo tempo que eu queria pensar que tudo era falso, fazia-se necessário que eu, que pensava, fosse alguma coisa. E, ao notar que esta verdade "penso, logo existo" era tão sólida e tão correta que as mais extravagantes suposições dos céticos não seriam capazes de lhe causar abalo, julguei que podia considerá-la, sem escrúpulo algum, o primeiro princípio da filosofia que eu procurava." (p. 12)

"Ademais, não pretendo falar aqui a respeito dos progressos que no futuro espero fazer nas ciências, nem me comprometer em relação ao público com qualquer promessa que eu não esteja seguro de cumprir: mas direi unicamente que decidi não empregar o tempo de vida que me resta em outra coisa que não seja tentar adquirir algum conhecimento da natureza, que seja de tal ordem que dele se possam extrair normas mais seguras do que as adotadas até agora." (p. 27)

23 outubro 2011

Abduzidos, de Robin Cook

"Suzanne mordeu o lábio inferior para evitar que suas emoções, novamente turbulentas, se transformassem em lágrimas." (p. 333)

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Abduzidos (Abduction, 2000) foi o primeiro romance que li quando cheguei na cidade de Fortaleza, há exatos 6 anos. Foi, também, o primeiro livro que peguei depois da maratona de Michael Crichton que eu vinha fazendo nos últimos meses – aos 13 anos de idade, eu estava totalmente fascinado pelo autor de Jurassic Park, e era duro ter de variar o regime de leitura. Nunca havia lido outro autor.

Naquela época, eu não sabia que Robin Cook tinha uma notável semelhança com Crichton: ambos eram médicos escritores ligados aos romances de thriller. Mesmo que Crichton tenha abandonado a medicina muito cedo e enveredado por gêneros literários que não estavam diretamente ligados a ela (ao passo que Cook permaneceu como médico e sempre escreveu sobre seu ofício), a semelhança entre esses dois autores é muito grande. A propósito, Michael Crichton, na sua carreira paralela de diretor de cinema, trouxe para as telas a adaptação do livro Coma, escrito por Cook. E Um caso de necessidade, primeiro romance de Crichton, traz todos os elementos do gênero literário que Cook inaugurou: o thriller médico.

Na falta do que postar aqui no Blog, achei conveniente falar um pouco sobre Abduzidos. É um livro interessantíssimo, do qual guardo boas lembranças. Infelizmente nunca li outro romance de Cook, embora sempre esteja na iminência de fazê-lo: vejo um título dele nas estantes das livrarias, acho a sinopse interessante, mas nunca o levo para casa. Qualquer dia desses, levarei pelo menos um.


Sinopse: Misteriosos acidentes interrompem as perfurações submarinas de um grande empreendimento científico e comercial, provocando prejuízos de milhares de dólares a cada dia. Preocupado com as pesquisas, um grupo de especialistas desce até o local para descobrir a causa dos transtornos. Mas, quando o pequeno submersível chega a 300 metros abaixo da superfície da água, uma estranha força o suga para as profundezas do oceano. Lá, encontram uma civilização avançada que descobriu o segredo da imortalidade. Mas, desde o princípio, algo não parece confiável nos estranhos anfitriões.


Para começo de história, Abduzidos não tem nada a ver com o gênero do thriller médico que o próprio Robin Cook inaugurou. Enquanto sua vasta bibliografia trata de expor os bastidores dos hospitais e clínicas particulares – geralmente lançando mão de alguma trama conspiratória envolvendo doação de órgãos, engenharia genética ou fertilização in vitro –, Abduzidos corresponde a uma espécie de peça única no seu trabalho como escritor. Neste livro em questão, Cook abandona toda a atmosfera hospitalar que recheou seus romances anteriores, despe seu jaleco, tira seu estetoscópio do pescoço e escreve uma aventura de ficção-científica a la Júlio Verne. (Para grande decepção de alguns de seus fãs, segundo ouvi dizer.)

Como Abduzidos foi o único romance de Robin Cook que eu li até hoje, não posso fazer grandes comparações com seus outros trabalhos. E nem é essa a idéia, de fato. Acho mais conveniente falar do livro em si, de suas qualidade e defeitos, e do que ele representa como obra literária, separadamente do histórico bibliográfico do autor.


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O enredo de Abduzidos funciona com poucos personagens. Um grupo restrito de pesquisadores envolvidos em perfurações submarinas acaba entrando em contato com uma civilização suspeita que vive no interior do planeta. A situação inusitada não descamba para nada que envolva o Governo dos Estados Unidos, nada que envolva as Forças Armadas, nada que envolva a OTAN. Simplesmente, os pesquisadores adentram nessa civilização subterrânea e são instados a permanecerem lá por algum tempo, até os esquisitos anfitriões se certificarem de que a existência do seu mundo particular não será revelada pelos importunos visitantes.

Convém esclarecer que a aparência física desses estranhos habitantes do interior da Terra nada tem de bizarra. Muito pelo contrário: eles se apresentam na forma de humanos, como nós, e se caracterizam por uma peculiaridade extremamente invejável – são pessoas dotadas de uma beleza extraordinária, perfeita. Os seres que habitam Interterra (nome dado ao local) são homens e mulheres tão, mas tão bonitos que os pesquisadores permanecem estarrecidos com isso do começo ao fim da aventura.


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Além da ação e do caráter de ficção-científica retrô, Abduzidos traz uma espécie de reflexão sobre como funcionaria uma sociedade perfeita hipotética. Lá, em Interterra, todas as pessoas são lindas, inteligentes, gentis e pacíficas, e todos vivem numa comunidade igualitária democrática e profundamente feliz. Que conseqüências isso poderia acarretar para o corpo social como um todo, e para os visitantes terráqueos, especificamente? Com este livro, Robin Cook ensaia um pequeno esboço de sua visão sobre a temática admirável-mundo-novo, iniciada por Huxley e que já rendeu boas obras na literatura.

Durante o tempo em que permanecem confinados na Interterra, os visitantes terráqueos (nossos protagonistas) recebem diversas instruções sobre como funciona a sociedade na qual acabaram de entrar. Para isso, dois guias são tacitamente destacados, Arak e Sufa: ambos fazem as vezes de apresentadores do mundo perfeito com o qual todos estão deslumbrados. No entanto, à medida que cresce a fascinação por aquele sinistro lugar, cresce também a desconfiança. E, a partir de uma série de incidentes constrangedores, a relação entre os representantes dos dois mundos começa a ficar cada vez mais tensa.


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A linguagem do livro é leve e, por este mesmo motivo, flui perfeitamente bem, sem entraves. Como a maioria dos romances de ação e aventura, o objetivo maior do autor, aqui, é passar a idéia de dinamismo, mesmo nas cenas mais lentas, como se estivéssemos assistindo a um filme. Interessante notar que os mais diversos detalhes de Interterra são descritos com minúcia, desde os transportes voadores até os móveis do interior das habitações.

Para quem lê Robin Cook com assiduidade, Abduzidos é um livro indispensável. Trata-se de uma obra única na bibliografia do autor, pois, como foi dito antes, Cook deixa de lado os corredores assépticos dos hospitais e as reluzentes salas de cirurgia e parte para uma trama bem mais surreal do que as tramas que ele normalmente imagina para seus thrillers médicos. Por outro lado, para quem nunca leu Robin Cook, aconselho começar por outro título que não este (justamente o que eu não fiz). Se o leitor quer ter, de fato, uma idéia melhor do que seja o estilo do autor, deve ler Coma, Toxina ou Contágio – ou outro de seus livros mais famosos.


Abduzidos (2000)

Robin Cook

Editora Record

Páginas: 393

Nota: 9/10

10 outubro 2011

Os devaneios do caminhante solitário, de Jean-Jacques Rousseau

"A felicidade é um estado permanente que não parece feito para o homem neste mundo." (p. 116)

devaneios rousseau

Às vezes tenho a impressão de que os melhores livros que eu leio são aqueles que compro na total impulsividade. Aqueles nos quais simplesmente bato os olhos, vejo a capa, abro-o, folheio durante dois minutos e penso: "Vou levar este". Pode ser que eu nunca tenha sequer ouvido falar no livro, ou no autor. Mas ele me fisga de tal maneira que me sinto totalmente atraído por ele, a ponto de querer levá-lo para casa.

Foi isso o que aconteceu com Os devaneios do caminhante solitário (Les Revêries du Promeneur Solitaire, 1782), escrito pelo genial filósofo e músico suíço Jean-Jacques Rousseau. Comprei-o mais por impulso do que por qualquer outra coisa; nesse caso, eu obviamente conhecia o autor, mas não sabia da existência desse título de sua autoria. Puxei-o da prateleira da L&PM, abri e comecei a ler algumas páginas aqui e acolá. Caí exatamente no seguinte parágrafo, que me cativou logo de cara:

Vi muitos que filosofavam de maneira muito mais douta que eu, mas sua filosofia lhes era, de certa forma, estranha. Querendo ser mais sábios que outros, estudavam o universo para saber como este estava arranjado, como teriam estudado alguma máquina que tivessem encontrado, por pura curiosidade. Estudavam a natureza humana para dela poder falar com sabedoria, mas não para se conhecerem (…) [p. 29]

Essas e outras poucas linhas foram o suficiente para que eu pensasse: "Este livro será a minha leitura da semana." Finalizei-o ontem e não me arrependi nem um pouco. É interessantíssimo.


Sinopse: Publicado postumamente, este grande testamento inacabado é considerado pelo próprio autor como a conclusão de sua obra. Diferente de seus outros escritos, marcados por discursos políticos, Os devaneios são relatos líricos e serenos, emotivos, que retratam sua sensação de isolamento e estranheza pelas críticas à sua obra e às suas posições humanistas.


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Publicado quatro anos depois de sua morte, Devaneios é uma espécie de diário-testamento de Rousseau, no qual ele escreve todas as suas impressões sobre a própria vida e a condição humana na Terra. Passeando por grandes temas como a mentira, a felicidade, a solidão, a meditação e a hipocrisia, Rousseau transfere para o papel tudo o que sentia e pensava a respeito desses assuntos, utilizando a linguagem cristalina e poética que caracterizou boa parte de suas principais obras. Além disso, a fim de deixar seus testemunhos ainda mais ricos, não raro ele ilustra suas teorias descrevendo pequenos acontecimentos cotidianos no qual esteve presente – caminhadas, visitas de amigos e alguns incidentes esporádicos.

O livro é dividido em dez caminhadas, cada qual abarcando um tema específico, alguns deles aparecendo mais de uma vez. O curioso é notar que o termo "caminhada" não tem sentido literal, mas metafórico, como se correspondesse a uma espécie de trilha filosófica e meditativa. Rousseau adorava passear a pé por campos e bosques floridos, e resolveu estender o conceito de caminhada também aos seus devaneios. O processo criativo de cada capítulo me pareceu interessantíssimo: fiquei com a sensação de que o autor puxava a pena e o papel sem a menor idéia do que escreveria naquele dia, deixando sua mente vagar a esmo dentro de determinados assuntos. A partir daí, sua caneta ia apenas acompanhando a torrente de pensamentos que o acometia – sem, no entanto, perder o foco.

Achei extremamente prazeroso acompanhar esses devaneios de Rousseau. Ele escreve suas impressões íntimas de uma forma tão simples, tão inteligível, tão sincera, que é impossível não sentir um ótimo sabor em suas palavras. Excelente redator, sem dúvida, Rousseau mistura sua filosofia de vida à experiência cotidiana, sem com isso almejar alcançar status de filósofo. Aliás, no início do livro o próprio autor confessa que pouco lhe importa se essas páginas serão lidas por alguma pessoa, ou se serão destruídas ou transmitidas às gerações futuras: o que importa é sentir o prazer imediato que ele tem ao escrevê-las. O puro prazer de redigir suas impressões.


rousseau

"Ao me libertar de todas essas armadilhas, de todas essas vãs esperanças, entreguei-me por completo à despreocupação e ao repouso do espírito que sempre foram meu interesse mais dominante e minha inclinação mais duradoura. Deixei a sociedade e suas pompas, renunciei a todo adereço (...), sem relógio, sem meias brancas, penteados, uma grossa veste de pano, e melhor que tudo isso, extirpei de meu coração os desejos e as cobiças que dão valor a tudo o que eu abandonava." [p. 31]


O tom que sustenta Os devaneios de um caminhante solitário é, de certa forma, bastante amargo, como se Rousseau estivesse profundamente decepcionado com a rejeição de sua pessoa pela sociedade em que vivia. De fato, esse sentimento fica claro em diversas partes do texto (na verdade, durante o livro inteiro), em que ele afirma se manter forçadamente afastado dos demais homens. Isolado em sua solidão contemplativa, Rousseau assume o papel de um telespectador rejeitado pela platéia da qual faz parte. A propósito, a frase que abre o livro é esta: "Eis-me, portanto, sozinho sobre a terra, sem outro irmão, próximo, amigo ou companhia que a mim mesmo."

Como conseqüência disso, dentre outras coisas, ele começa a apontar no seu texto aquilo que o diferencia dos outros indivíduos: qualidades e defeitos que ele sentia perceber apenas nele, e que infelizmente não via em outra pessoa com a qual pudesse compartilhá-los. Convencido de que não estava inserido na sociedade parisiense do século 18, Rousseau se recolhe e se defende das críticas que costumava receber pelas suas teorias filosóficas e políticas.

Para entender melhor isso, é necessário ter conhecimento de um fato curioso que marcou o final da vida deste grande filósofo. Nos seus quatro últimos anos, Rousseau acreditava existir uma espécie de complô contra sua pessoa, um complô invisível que o criticava e tirava de suas mãos os prazeres mais simples da vida, além de afastá-lo do convívio humano. Intuição delirante, sem dúvida, que compõe o estofo dos Devaneios. É sempre se referindo a esse complô onipresente (e culpando-o) que Rousseau se diz traído, abatido e isolado da sociedade.


The-Waterfall,-Rousseau,-1910

"(...) sejamos sempre verdadeiros, mesmo com todos os riscos. A justiça está na verdade das coisas; a mentira é sempre iniqüidade, e o erro é sempre impostura quando provocamos algo que não segue a regra do que devemos fazer ou crer: e seja qual for o efeito resultante da verdade, sempre somos inocentes quando a dissemos, pois nada lhe acrescentamos de puramente nosso." [p. 48]


Os devaneios do caminhante solitário possui uma qualidade literária indiscutível. A obra (que é pequena, mal chegando às 150 páginas) pode ser lida como uma espécie de relato intimista, ou algo do gênero. A idéia do complô inimigo que Rousseau cultivava dá a seu texto um lirismo qualquer, um toque poético quase ficcional (muito embora essa sensação fosse verídica). Contribuem para esse lirismo a visão humanista e a serenidade característica do autor – que nos fornece, especialmente neste livro em questão, um panorama especial do que um homem que se sente rejeitado pela sociedade pode apresentar.

Recomendadíssimo para quem quer uma dose pequena e rápida de boa literatura e de boas reflexões sobre a vida e os homens.

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Para ilustrar esta postagem, colei ao longo do texto alguns quadros do pintor francês Henri Rousseau [1844-1910], cuja temática, a vida natural, muito coincide com as ideologias de Jean-Jacques Rousseau.


Os devaneios de um caminhante solitário (1782)

Jean-Jacques Rousseau

Editora L&PM

Nota: 10/10