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27 dezembro 2013

5 livros que eu li em 2013 e que você gostará de ler em 2014

Seguindo a tradição do Gato Branco, nos últimos dias do mês de dezembro de cada ano eu elaboro a lista dos cinco livros que mais me impressionaram como leitor, desde janeiro até então. Ou seja, escolho cinco obras cuja leitura superou (ou atendeu) minhas expectativas nos últimos 12 meses e as coloco aqui, acompanhadas de um breve comentário.

Naturalmente, isso não significa dizer que, dentre todas as leituras de 2013, considerei apenas estas cinco como boas. Muitos livros passaram pelas minhas mãos ao longo deste ano, e muitos deles maravilhosos; mas, por uma questão de seleção quase arbitrária, separo apenas cinco para trazer para cá.

E, então, a minha lista de 2013 é esta:


O silêncio contra Muamar Kadafi | Andrei Netto

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Que o jornalista brasileiro Andrei Netto viveu uma aventura impressionante no coração da Líbia, durante a guerra civil que depôs o ditador Muamar Kadafi em 2011, disso não restam dúvidas. Entrando clandestinamente no país junto com um colega de profissão iraquiano, Netto buscou o epicentro da revolução popular que ansiava por derrubar um regime totalitário sangrento de mais de 40 anos. Entrevistando líderes do movimento insurgente, refugiados e estrangeiros, o jornalista disseca a Primavera Árabe na Líbia e, graças à excelência de sua escrita, faz o leitor se imaginar nos desertos áridos do Norte da África, acompanhando os passos da rebelião popular.

Netto chegou a ser preso pelas autoridades líbias durante sua estada no país, acusado de ajudar o movimento insurgente. Passou vários dias em uma cela pequena, imunda, e foi liberado somente com a intervenção da diplomacia brasileira. Essa passagem no livro é uma das mais interessantes.

Narrado em forma de thriller (o que o torna incrivelmente atraente e fluido, como um grande romance de aventura), O silêncio contra Muamar Kadafi foi, sem dúvida, o melhor livro de jornalismo que li em 2013. Vale conferir, sem ressalvas.

Clique aqui para ler a resenha de O silêncio contra Muamar Kadafi no Gato Branco.


1Q84 – Vol. I | Haruki Murakami

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Desde Norwegian Wood e Kafka à beira-mar, venho acompanhando os romances do japonês Haruki Murakami com dedicação, ainda que os dois primeiros que li continuem a ser os meus favoritos. De um modo geral, os romances do autor são muito semelhantes entre si e, como falou uma amiga minha, a sensação é a de que você está lendo sempre o mesmo livro, o que não é propriamente ruim – já que os enredos criados por Murakami sempre nos envolvem.

1Q84 inicia a trilogia que é considerada a obra máxima do autor. Publicada entre 2009 e 2010 no Japão, 1Q84 vendeu dezenas de milhões de cópias no mundo inteiro (aliás, coisa nem um pouco rara em se tratando de Murakami) e reafirmou o japonês como um dos escritores cult mais populares da atualidade.

Este primeiro volume apresenta os dois personagens principais a partir dos quais a trama é costurada: Tengo, um jovem professor de matemática do Ensino Médio, aspirante a romancista, recebe do seu amigo editor o desafio de reescrever um livro enigmático de autoria de uma garota mais enigmática ainda – e, de repente, coisas estranhas começam a acontecer no mundo real, de algum modo ligadas a esse processo de reescrita; Aomame, uma professora de educação física que esconde sua segunda ocupação, a de fazer justiça contra homens que violentam mulheres. Como não poderia deixar de ser, a trajetória desses dois vai convergindo aos poucos para um único ponto, clímax da série.

Com seus pontos altos e baixos, a trilogia é ainda assim um grande exercício de imaginação e um excelente entretenimento para os fãs de Murakami. Sem a carga emocional e a densidade psicológica de Norwegian Wood, e sem o enredo orquestrado de Kafka à beira-mar, 1Q84 se sustenta pela criatividade e pela fantasia non-sense, que tem agradado muito o público em toda a carreira do autor.

Clique aqui para ler a resenha de 1Q84 – Vol. I no Gato Branco.


Anna Kariênina | Liev Tolstói

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A Felicidade Conjugal foi o primeiro livro que li do escritor russo Liev Tolstói. Sua escrita primorosamente refinada, o conteúdo introspectivo e o enredo belo e surpreendente fez com que este autor ocupasse o lugar da minha estante que é destinado aos grandes gênios da literatura. Suas obras são como um espelho que reflete nossa condição humana: todas as nossas dúvidas, nossos temores e nossos desejos são sugeridos de forma sutil – e às vezes nem tão sutil – em obras como, por exemplo, Anna Kariênina, publicado originalmente em 1877.

Anna Kariênina é o tipo do livro que, não importa se foi escrito na distante Rússia do século XIX, o leitor de hoje certamente vai se identificar com algum personagem da galeria de Tolstói e constatar que sentimentos – no sentido estrito da palavra – são universais em larga medida. Este foi um livro que li com deleite. Não era raro me deter por mais de dez minutos na mesma página, apreciando um determinado diálogo, um determinado parágrafo descritivo, uma determinada reflexão, e constatando como Tolstói escrevia de forma maravilhosa.

Gosto de me referir a Anna Kariênina como "o romance definitivo sobre o Amor". Afinal de contas, é uma obra que pondera o que somos capazes de fazer por causa dele: do que podemos abrir mão e o que podemos abraçar como causa. E, quando me refiro a Amor, estou me referindo a esse sentimento em suas múltiplas manifestações: o amor entre amantes, entre pai e filha, entre mãe e filho, entre irmãos, entre desconhecidos. Como não poderia deixar de ser, é também um romance sobre as aparências: sobre se relacionar buscando algo não no outro, mas em si mesmo; uma afirmação não para o outro, mas para si, afirmação com a qual você tenta construir sua identidade. Afinal de contas, quando dizemos "Eu te amo", não estaríamos sugerindo algo como "Eu preciso dizer que te amo"?

Livro monumental que faz justiça às suas 800 páginas, Anna Kariênina é o romance do qual ninguém pode escapar. Leitura mais que obrigatória para os fãs dos russos.

Clique aqui para ler a resenha de Anna Kariênina no Gato Branco.


A visita cruel do tempo | Jennifer Egan

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Escrito à mão, A visita cruel do tempo foi o romance vencedor do Prêmio Pulitzer de Ficção 2011 e, também, o ganhador de outros prêmios importantes nos EUA. Recebeu elogios desmedidos de vários suplementos literários norte-americanos (e do restante do mundo) pela criatividade da autora, seu domínio técnico e prosa envolvente. Ganhei o livro do meu irmão e, no início, antes de começar a lê-lo, eu tinha minhas reservas quanto a todo aquele experimentalismo literário, que parecia, ao mesmo tempo, ambicioso demais e relevante de menos.

Mas me enganei com prazer quando iniciei a leitura. A visita cruel do tempo é um texto engenhoso, de fato envolvente, complexo, cujas histórias e personagens se entrelaçam de modo criativo e até inesperado. Foi certamente uma das leituras mais acertadas do ano.

O livro possui uma cronologia embaralhada que conta, através da passagem do tempo, a juventude e a vida adulta de um grupo de pessoas que estão no mesmo círculo afetivo e profissional. É o caso de Bennie Salazar – talvez o eixo central desse círculo –, um executivo da indústria fonográfica que acompanha desde a explosão dos roqueiros independentes, nos anos 70 e início de 80, até a superficialidade do ramo na era digital.

Navegando pelos mares da internet, encontrei um leitor do livro chamado Daniel que se deu ao trabalho de identificar o local e a época em que cada capítulo transcorre. Segue abaixo o que ele garimpou. (Se alguém quiser ler o livro pela segunda vez, fica aí uma sugestão de acompanhar a cronologia real.)

1. Achados e perdidos – NY, 2009
2. Ouro que cura – NY, 2006
3. Não estou nem aí – São Francisco, 1979 (narradora: Rhea)
4. Safári – África, 1973
5. Vocês – São Francisco, 2006 (narradora: Jocelyn)
6. Xis-zero – NY, 1997
7. De A a B – NY, 2003
8. Como vender um general – NY, 2008
9. Um almoço em 40 min – NY, 1999
10. Fora do corpo – NY, 1994 (narrador: Rob)
11. Adeus, meu amor – Nápoles, 1993
12. Grandes pausas do rock – Deserto da Califórnia, 2020?
13. Linguagem pura – NY, 2022

Clique aqui para ler a resenha de A visita cruel do tempo no Gato Branco.


Cartas na rua | Charles Bukowski

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Nesse ano, tiquei mais um Charles Bukowski da minha lista de "Obras Indispensáveis". O livro foi Cartas na rua, romance publicado em 1971 que traz ao leitor pela primeira vez o protagonista Henry Chinaski, alter-ego de Bukowski – também inclinado aos porres, às mulheres e aos empregos sem perspectiva nenhuma.

Aqui, ao contrário de Factótum (1975), Chinaski não se vê pulando de trampo em trampo para ganhar uns trocados. Na verdade, o personagem mais conhecido de Bukowski está há 14 anos trabalhando no mesmo lugar: os Correios norte-americanos. Ele intercala sua vida monótona e estressante com as mulheres com as quais se envolve, umas mais novas, outras mais velhas, mas todas sempre muito excêntricas e desconcertantes. No final das contas, temos pintado um quadro sobre a desilusão do american way of life e sobre como o estofo da sociedade americana é, também, composto pelos marginalizados.

Primeiro romance de Bukowski, Cartas na rua é o início da obra de um escritor que foi muito além da literatura: transformou a própria vida em arte, desafiou tradições e abriu um novo caminho para os romances malditos. Não por acaso, o Velho Buk é um dos artistas mais celebrados e copiados desde os anos 80.

Clique aqui para ler a resenha de Cartas na rua no Gato Branco.



Menção honrosa:

Momo e o senhor do tempo | Michael Ende

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Eis um livro que foi parar na minha estante de modo completamente inesperado e que, sim, me surpreendeu muito. Um professor da Universidade de Fortaleza me indicou este livro no início do ano e, assim que comecei a lê-lo, percebi por que o alemão Michael Ende é tão querido na Europa e em alguns lugares do restante do mundo: sua prosa fluida está a serviço não da técnica, mas do conteúdo – e este conteúdo, voltado para o público infanto-juvenil, é sempre inspirador, carregando mensagens que o público adulto parece já ter esquecido.

Digo que o livro foi parar de modo inesperado na minha estante porque, até meu professor aparecer com ele, eu não tinha a menor intenção de lê-lo (sequer sabia da sua existência), embora conhecesse bem a reputação de Ende. E como valeu a pena!

Momo e o senhor do tempo conta a história de Momo, uma menina de aproximadamente 10 anos de idade que se vê na tarefa de devolver o tempo roubado das pessoas. Ela percebe a existência de um grupo de homens misteriosos que está atuando nos bastidores e que, de modo mal-intencionado, negocia com os cidadãos o uso do seu próprio tempo de vida.

Momo certamente é um lembrete do que o tempo representa nas nossas vidas e o que fazemos para preservá-lo (ou desperdiçá-lo).

Clique aqui para ler a resenha de Momo e o senhor do tempo no Gato Branco. 


É isso. E que venham novas e excelentes leituras em 2014!

07 dezembro 2013

Sobre a brevidade da vida, de Sêneca

"Muito breve e agitada é a vida daqueles que esquecem o passado, negligenciam o presente e temem o futuro." (p. 70)

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Na semana passada, finalizei a leitura de Sobre a brevidade da vida (De brevitate vitae), tratado epistolar escrito pelo filósofo, dramaturgo e político Lúcio Sêneca.

Sêneca nasceu em Córdoba, na Espanha, por volta do ano 4 a.C. Mudou-se para Roma ainda jovem, a fim de estudar retórica e Filosofia, e lá exerceu durante grande parte da sua vida trabalhos em altos cargos políticos, ao lado de, dentre outros, Calígula e Nero – deste último tendo recebido a ordem para cometer suicídio, após ter sido acusado de conspirar contra o então imperador. Seus trabalhos, que envolvem tragédias, ensaios e diálogos filosóficos, são conhecidos por abordar de maneira direta e prática temas comuns ao cotidiano das pessoas, tais como amizade, educação, vida e morte.

Sobre a brevidade da vida é um conjunto de cartas direcionadas a um homem chamado Paulino, funcionário público que muitos estudiosos acreditam ter sido sogro do filósofo. Nas epístolas que compõem a obra, sempre se dirigindo a Paulino, Sêneca discorre sobre a vida fútil e vazia dos sujeitos ocupados com tudo aquilo que não lhes diz respeito de fato: políticos preocupados com seu cargo, nobres preocupados com sua posição social, cidadãos preocupados com o julgamento do seu semelhante, e assim sucessivamente.

Como ele mesmo escreve:

Certamente, miserável é a condição de todas as pessoas ocupadas, mas ainda mais miserável é a daqueles que sobrecarregam a sua vida de cuidados que não são para si, esperando, para dormir, o sono dos outros, para comer, que o outro tenha apetite, que caminham segundo o passo dos outros e que estão sob as ordens deles nas coisas que são as mais espontâneas de todas – amar e odiar. (p. 81)


Sinopse: Sobre a brevidade da vida é a obra mais difundida do filósofo Sêneca (4 a.C.? – 65 d.C.) e um dos textos mais conhecidos de toda a Antiguidade latina. São cartas dirigidas a Paulino (cuja identidade é controversa), nas quais o sábio fala da natureza finita da vida humana. No correr das páginas, vão sendo apresentadas maneiras de prolongar a vida e livrá-la de mil futilidades que a perturbam sem, no entanto, enriquecê-la. Estas cartas compõem uma leitura inspiradora para todos os homens, a quem ajudam a avaliar o que é uma vida plenamente vivida.


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A persistência da memória, de Salvador Dalí

O que está em jogo, portanto, é a brevidade da vida dos sujeitos que se ocupam com coisas alheias a eles mesmos. Logicamente, a brevidade a que Sêneca se refere não é temporal, cronológica, mas subjetiva: vive pouco quem não vive para si. Nesse sentido, seu conselho geral a Paulino não poderia deixar de ser outro que não "afastar-se do vulgo" e "procurar um porto mais tranquilo", experimentando o que poderia ser feito nos momentos de ócio. Segundo o filósofo, um homem pode viver por 70 anos ou mais, mas não poderá dizer que viveu realmente se ele não tiver gasto a maior parte do seu tempo com assuntos que lhe dizem respeito de forma direta. Por outro lado, quem dedica seu tempo a si mesmo vive uma vida longa, não importa quantos anos tenha vivido no calendário.

Aquele que utiliza todo o tempo apenas consigo mesmo, que organiza todos os dias como se fosse o último, não deseja, nem teme o amanhã. (…) Não julgues que alguém viveu muito por causa de suas rugas e cabelos brancos: ele não viveu muito, apenas existiu por muito tempo. (p. 43)

É impressionante constatar que um livro escrito há quase dois mil anos aborde uma temática que continua a ser urgente nos dias de hoje – aliás, nos dias de hoje mais urgente do que nunca, ao que parece. Como integrante de um laboratório de pesquisa que estuda trabalho, ócio e tempo livre na sociedade contemporânea, eu vejo cientistas sociais de renome relatando como a ideia de tempo para si é cada vez mais escassa na nossa era. Cada vez trabalhando mais para conquistar status e altos salários, as pessoas são tomadas pelo meio e esquecem o fim – este, inadiável, tendo em vista que todos nós vamos morrer um dia. Como Sêneca diria, ocupam sua vida com o trabalho que realizam, mas esquecem de saborear o presente, antecipando sempre o futuro com agonia e rememorando o passado com insatisfação.

O filósofo tem uma palavra sobre isso também:

Pobre daquele que, cansado mais de viver do que de trabalhar, sucumbe às suas próprias ocupações. (p. 83)


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A morte de Sêneca, de Luca Giordano


Uma das grandes mensagens que podemos tirar de Sobre a brevidade da vida diz respeito ao quanto nos sentimos desconfortáveis com nossas próprias ocupações e tempos livres. Ou seja, diz respeito a como nós usamos o nosso tempo. Curioso notar que é possível se sentir feliz e realizado trabalhando em algo que nos dá felicidade e, ao mesmo tempo, se sentir letárgico e inútil em um tempo vago – o que desconstrói nossa ideia de que viver sem ter que trabalhar é um prazer garantido. De acordo com Sêneca, há aqueles que não usufruem do ócio, mas são eles mesmos ociosos "doentes", que vagam pelo mundo sem objetivo e não sabem discernir seus próprios interesses. Estes, incapazes de arquitetar um plano de vida de acordo com suas inclinações, "mortos-vivos" nas palavras do filósofo, contrastam com aqueles sujeitos que se dedicam a uma ocupação elevada, que lhes rende bons frutos e sabedoria existencial.

Dentre todos, somente são ociosos os que estão livres para a sabedoria, apenas estes vivem, pois não só controlam bem sua vida, como também lhe acrescentam a eternidade. (p. 64)

Sobre a brevidade da vida é uma leitura rápida que nos faz refletir sobre o que realmente estamos fazendo para garantir uma vida satisfatória e plena – ou, como isso é praticamente impossível, garantir uma vida mais satisfatória e mais plena. Ocupar-se com dedicação e prazer a assuntos que nos tocam como seres humanos é o primeiro passo para construir uma vida baseada em tranquilidade e alegria, e não permitir que sejamos consumidos pela máquina que suga a energia vital que possuímos, que poderia muito bem ser dedicada à nossa efêmera e valiosíssima passagem pela Terra. Por esse lado, o livro de Sêneca é uma leitura rápida, mas muito, muito profunda.

10 novembro 2013

Nada, de Janne Teller

"(…) um calafrio percorreu meu corpo enquanto eu pensava em quantas pessoas diferentes podem haver dentro de uma só pessoa." (p. 85)

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Durante a tarde de ontem eu finalizei a leitura do romance Nada (Intet, 2000), escrito pela dinamarquesa Janne Teller. Embora já tenha admitido que nunca escreve seus romances com a intenção de provocar o leitor, o fato é que este livro de título curioso fez o maior barulho na Escandinávia, chegando inclusive a ser censurado temporariamente na região por conta da mensagem cruel e visceral da história. Aclamado pela crítica como digno sucessor do clássico O Senhor das Moscas, do Nobel William Golding, Nada chega ao Brasil depois de treze anos do seu lançamento original.

Foi um amigo da universidade que me indicou o romance. Assim que bati meus olhos na capa e li as duas primeiras páginas, me veio à cabeça a ideia de que eu deveria lê-lo na íntegra o quanto antes. Não é muito difícil acontecer esse tipo de coisa comigo: com Os devaneios do caminhante solitário e Templo, por exemplo, aconteceu a mesma coisa, bati os olhos no livro e senti que deveria tê-lo comigo. Não se pode ignorar uma sensação dessas. Pelo menos eu não consigo.


Sinopse: Pierre Anthon está no sétimo ano e tem a certeza de que nada importa na vida. Por isso, passa os dias sobre os galhos de uma ameixeira, tentando convencer seus companheiros de classe a pensar do mesmo modo. No entanto, diante da recusa do menino de descer da árvore, seus colegas decidem fazer uma pilha de objetos dotados de significado, e com isso esperam persuadi-lo de que está errado. Mas aos poucos a pilha se torna um monumento mórbido, colocando em xeque a fé e a inocência da juventude.


O livro é narrado por uma moça de 13 ou 14 anos chamada Agnes. Ela estuda com os amigos na cidade onde mora, uma bucólica comunidade periférica que possui um bairro chamado Taering, e cursa o equivalente ao final do Ensino Fundamental brasileiro. No primeiro dia de aula após as férias de verão, um dos amigos mais velhos de Agnes, Pierre Anthon, fica de pé minutos antes de a aula começar e diz que nada no mundo tem a menor importância na vida de quem quer que seja. Mesmo com o professor já presente, Pierre Anthon profere quatro frases curtas, coloca o seu material novamente dentro da mochila e sai.

Nada importa. Disso eu já sei faz muito tempo. Então não vale a pena fazer nada. Acabo de descobrir isso.

Cá entre nós, esse é o tipo de pensamento que eu constantemente tinha quando estava na mesma situação que Pierre Anthon: tendo que estudar assuntos que, para mim, não tinham importância alguma e batalhando para me tornar alguém na vida. A propósito, o que significa "se tornar alguém"? Ninguém percebe o perigo que corremos quando naturalizamos uma frase como essa? Quer dizer que, se não temos um emprego que renda um alto salário, se não conseguimos passar os nossos dias nos importando com coisas que não são de fato importantes, não somos ninguém? Nada?

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Depois de dizer que nada na vida é importante e abandonar a escola como quem simplesmente dá de ombros, Pierre Anthon sobe na ameixeira do quintal da sua casa e, de lá, grita para os passantes alguns dos melhores trechos do livro. Entre irritado, irônico e fleumático, o garoto diz que todos nós vamos morrer no final das contas e que, por essa razão específica, as coisas do universo não passam de besteiras irrisórias com as quais não vale a pena gastar o tempo. Seus pequenos discursos são totalmente crus e podem causar um desconforto extremo por causa da verdade fria de suas palavras. Os amigos de classe de Pierre Anthon, que são praticamente os únicos transeuntes a passar na frente da ameixeira, não estão devidamente preparados para ouvir as palavras do garoto, e é aí que a história realmente começa: quando eles ocupam uma serralheria abandonada e decidem fazer lá uma pilha com os objetos que têm mais significado para cada um, a fim de mostrar para o amigo misantropo que, sim, a vida tem algum significado.

As proporções que esse pequeno fato ganha chocam o leitor bem cedo. Com uma linguagem muito bonita que carrega em si certos traços trágicos, Agnes (que narra o romance em retrospecto, na verdade) mostra ao leitor a face oculta e assustadora da infância que o nosso bom-senso faz de tudo para esconder. Em termos gerais, a mensagem é similar à de O Senhor das Moscas: um grupo de crianças que, abandonadas à própria sorte, começam a revelar aspectos sádicos e vingativos de sua personalidade. Se no livro de Golding os meninos estavam sozinhos por conta do acidente de avião que os isolou na ilha, na história de Teller essas crianças (ou adolescentes, dependendo do seu ponto de vista) se vêem sozinhas sob um prisma mais emocional, e é na tentativa de construir um monumento cheio de significado que elas procuram se afirmar – ou, em outras palavras, se diferenciar dos adultos.

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Mesmo aparecendo muito pouco no decorrer da história, Pierre Anthon é um dos personagens mais notáveis do romance e cumpre bem o seu papel de provocador. Em termos de metáfora, podemos dizer que ele simboliza as nossas preocupações mais sérias, que são justamente aquelas que fazemos questão de esconder de nós mesmos. Não é por acaso que seus amigos se irritam com suas provocações e, tapando os ouvidos, começam a arremessar pedras em direção à ameixeira em que o garoto está empoleirado. Pierre Anthon é a nossa voz interna que estamos sempre calando, para o bem de nossa própria sobrevivência social. Hoje mesmo acordei de manhã e, no silêncio típico dos domingos, fiquei pensando com meus botões se as pessoas consideradas loucas não são por acaso as mais lúcidas – tão lúcidas que se tornaram perigosas, como Pierre Anthon. E, quando essa voz interna (incômoda e lúcida) começa a nos atormentar, a primeira coisa que fazemos é nos cercar de coisas que, para nós, têm alguma importância. Nada veio justamente para que nos perguntemos se essas coisas com as quais nos cercamos são, de fato, importantes ou não.

O tom do livro é aterrorizante porque a escrita de Teller prima por uma objetividade minimalista que, no fundo, faz os acontecimentos da história parecerem mais confusos e inacreditáveis ainda. Há morbidade nas palavras de Agnes, algo que assusta porque a garota é capaz de narrar coisas fortes na maior naturalidade possível. Se existe um fato verdadeiramente desagradável neste livro, esse fato é a constatação empírica de que o horror está na condição humana. Quando essa condição humana é retratada com crueza, sem eufemismos, ficamos chocados – em nada diferente de quando alguém segura um espelho na nossa frente para constatarmos, com surpresa, alguma imperfeição inesperada na pele. Nada é um desses romances que fazem as vezes de espelho. E ele nos pega pelo pescoço ao evidenciar que a infância, base da construção de nossa subjetividade, pode ser mais instável e imprevisível do que gostaríamos de admitir.

350 mil exemplares vendidos mostram que Nada não apenas chocou seus leitores como os fez pensar sobre a vida e compartilhar o livro com outras pessoas, transformando a obra de Teller no sucesso que é agora. Colocar em menos de 150 páginas uma ideia relevante que, de tão forte, precisa ser banida das livrarias, é algo que cabe apenas aos escritores de talento. Quem está acostumado a romances pesados, como Ensaio sobre a cegueira ou Pobre George, não se sentirá tão mal com as palavras de Pierre Anthon, mas isso pode ser algo que varie de pessoa para pessoa. A verdade é que não há como passar por Nada sem sentir uma incômoda sensação de que o mundo pode ser um lugar bastante insignificante – e mais incômoda é a sensação de que essa verdade aparece quando você tenta construir uma pilha com o que existe de mais importante na sua vida.

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Sobre os motivos da censura do livro na Dinamarca, a autora dá a sua opinião:

"Geralmente se diz que há muita violência nele, o que eu realmente não acho que seja verdade. Comparado a qualquer estória de crime, não há nada no livro; a violência propriamente dita é descrita em muitos lugares. Além do mais, algumas pessoas disseram que meu livro torna alguns jovens depressivos e os leva a cometer suicídio. Eu fiquei muito chocada com isso (…). Eu nunca escrevo para provocar. Aqui não há conteúdo sexual, não há linguagem de baixo calão. Eu penso que ela é uma estória muito normal. Na verdade, eu escrevo para aprender. Eu escrevo sobre coisas que eu não entendo. [tradução minha, livre]

Para conferir a entrevista completa com a autora, clique aqui.

08 outubro 2013

Perto demais da redenção?

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Quando tinha 22 anos de idade, Christopher Johnson McCandless abandonou os estudos e a família e fugiu para o gelado estado norte-americano do Alasca, onde morreu dentro de um ônibus abandonado, aos 24 anos, no meio de uma floresta ensolarada, após ter ingerido por acidente uma planta venenosa que corroeu parte do seu estômago. Deixou para trás uma história confusa cheia de dor, mágoas e senso de liberdade. Sua jornada pelos Estados Unidos é lembrada ainda hoje por muitos jovens como símbolo de resistência e paixão pelas coisas simples da vida – à maneira de Walden, do escritor inglês Henry David Thoreau. As pessoas que o conheceram pessoalmente se referem a ele, hoje, como alguém que carregava nas costas uma carga de sonhos mais pesada do que a que ele próprio poderia suportar.

Eu tinha aproximadamente 16 anos quando conheci a história de Christopher – ou "Alex", como ele mesmo passou a se chamar depois de abrir mão de tudo o que tinha antes de meter o pé na estrada. Naquela época, 22 anos representava para mim uma idade em que as pessoas eram velhas e, por essa razão, pareciam ter consciência plena do que faziam e das decisões que tomavam – de modo que eu, adolescente recém-saído da infância, vi na atitude de Christopher um exemplo de iniciativa que materializava todos os meus desejos pela liberdade, fosse lá o que essa palavra significasse.

No mais, falar sobre liberdade não é a intenção desse texto. Meus 22 anos vieram na semana passada e eu acabei me lembrando hoje da aventura de Alex, o jovem norte-americano que eu mesmo admirava tanto há seis anos. Parece difícil acreditar que ele tinha a mesma idade que eu tenho agora quando decidiu fugir do mundo em busca dos sonhos que tanto cultivava. Parece difícil porque não tenho mais as ambições e os projetos que Christopher tinha, quais fossem, o de viver da natureza compartilhando alguns princípios universais de amor e culto à estética. Sou apenas um rapaz latino-americano sem muito dinheiro no banco, sem parentes importantes e vindo de uma capital.

Já escrevi bastante aqui no blog sobre a história de Christopher, o que inclui a resenha do livro de Jon Krakauer, Na Natureza Selvagem. Escrevi também, no início das atividades do Gato Branco, uma espécie de crônica que destilava algumas ideias minhas acerca da saga de Chris. Ainda assim, acho que ele merece mais uma postagem: acima de tudo porque, pensando sobre como os jovens de hoje vivem suas vidas, acho que dá para entender um pouco do ato impulsivo de Alex.

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Vivemos em uma época em que os jovens não parecem mais ter tempo ou disposição para refletirem sobre a sua condição fundamental: sobre como o tempo da juventude significa o tempo de uma passagem árdua da infância segura para a vida adulta imprevisível. Ser jovem hoje significa possuir um crédito de gozo ilimitado disponibilizado pela própria sociedade, que cobra o preço exigindo da juventude dedicação integral e precoce aos assuntos da vida adulta. Talvez porque, afinal de contas, os jovens se tornaram o símbolo sócio-econômico da energia, do dispêndio e da propensão para o usufruto de tudo o que é novidade. São aqueles em que se depositam todas as fichas, todas as promessas e todas as esperanças, o que faz com que assumam precocemente um papel para o qual não estão preparados – nem nunca deverão estar.

Em outras palavras, salvo exceções felizes, me parece que a juventude contemporânea é formada simplesmente por um conjunto de moços e moças que, ávidos por aquilo que a sociedade do consumo oferta, são lançados abruptamente no mundo dos adultos, instados a produzir, e esse processo acelerado impede que qualquer momento de reflexão sobre a própria juventude seja levado em consideração. Na minha opinião, que não conta tanto assim, um rapaz ou uma moça de 14 ou 15 anos de idade não deveria se preocupar tanto com cursos profissionalizantes, carreiras e mercado de trabalho, embora seja isto o que eu mais tenha visto ultimamente. 

Somente isso não seria um problema tão insolúvel se não viesse acompanhado de um fato triste: os jovens que "param no tempo" e se permitem estar em um momento de reflexão improdutiva são, muitas vezes, considerados ultrapassados, quando não patológicos mesmo. Christopher McCandless foi um desses jovens vítimas do mal-estar que eles próprios despertam nos outros: entrou em crise e tentou encontrar-se, tentou compartilhar seus questionamentos, mas não foi compreendido porque esperava-se dele – assim como se espera de todos os rapazes de sua idade – algo que ele não estava preparado para dar. Foi rotulado de louco por uns e de depressivo por outros.

Mas o que se esperava dele? O que se espera de todos os jovens? Que se lancem sem intervalo da infância e da adolescência diretamente para a rotina adulta? No mundo adulto espera-se que você seja produtivo e que tenha sucesso profissional. Na infância e na pré-adolescência, muita coisa acontece fora do seu controle, e muitas vezes não somos nós que resolvemos nossos próprios problemas, sejam eles de que ordem forem. Não me convenço de que essas duas fases da vida, tão díspares, possam ser unidas imediatamente, mas é o que parece estar acontecendo.

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Mais ou menos até a década de 1970, entrar em crise na adolescência era uma espécie de ritual. Provava que o jovem estava preocupado com a sua vida e que, no fundo, tinha consciência do seu lugar no plano das coisas. Era-lhe permitido isso: ele passava por essa angústia e essa crise e era até bem visto pelos colegas, que compartilhavam dos mesmos questionamentos. Ninguém era considerado depressivo ou desajustado. Simplesmente estavam pensando sobre sua condição e entendendo o que aquele processo de tornar-se adulto significava (ou não entendendo, o que também fazia parte do processo). Quem leu O Apanhador no Campo de Centeio, de J. D. Salinger, deve ter enxergado esse fenômeno. E, se alguma dúvida persistir, leiam Depressão e Imagem do Novo Mundo, de Maria Rita Kehl.

Christopher McCandless representa, de certa forma, um tipo de resistência jovem – que alguns podem considerar como a rebeldia por excelência da juventude. Ele se negou a fazer parte do processo de mergulhar diretamente em um mundo que não era o dele. Vivendo meus 22 anos agora, vejo que este momento de pensar sobre nossa própria condição transacional não deve ser nunca descartado: ele é fundamental para quem quer cultivar um mínimo de postura crítica sobre o mundo.

Hoje entendo Chris nesse sentido porque penso que estou vendo o que ele via na sua época. Mas, como sempre, posso estar enganado.

15 setembro 2013

Cartas na rua, de Charles Bukowski

"Tudo começou como um erro." (p. 11)

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Na semana passada eu finalizei a leitura do livro Cartas na rua (Post Office, 1971), primeiro romance publicado do celebrado escritor underground Charles Bukowski, que é o senhor dos porres inacreditáveis e o escritor marginal por excelência. Bukowski, que nasceu na Alemanha mas mudou-se ainda criança para os Estados Unidos, viveu a vida difícil das pessoas que não têm perspectivas de um futuro confortável sustentado por uma carreira de sucesso no mundo capitalista americano. Graças a essa falta de ambição, guiado apenas por aquilo que o dia trazia, Bukowski sentiu na pele a crueza da realidade suburbana e desenvolveu uma sutil capacidade de captar a humanidade dos indivíduos rejeitados.

Assim como a maioria dos romances do autor, Cartas na rua é um livrinho pequeno que sintetiza, em uma narrativa direta e sem floreios (mas bem humorada e muito bem conduzida), as desventuras do protagonista Henry Chinaski, espécie de persona literária do próprio Bukowski, também alemão de nascença, também dado à bebedeira, também chegado às mulheres, também aficionado pelas corridas de cavalo. No livro, Chinaski arranja um emprego burocrático nos Correios norte-americanos e, sem se dar conta, vai passando os dias (e, depois, os anos) nesse trabalho degradante, balanceado com as bebidas freqüentes, com as mulheres complicadas e com a amargura geral com que o personagem encara a vida em sociedade.


Sinopse: Em Cartas na Rua (primeira novela publicada de Charles Bukowski), um beberrão simpático, cheio de ceticismo, nostalgia e humor passeia pela monotonia burocrática dos Correios e nos mostra a América com a visão de alguém que está sempre à margem.


Gostei de Cartas na rua tanto quanto de Factótum, que já li duas vezes e ainda hoje é um dos meus preferidos de Bukowski. Não sei quanto aos outros leitores, mas eu sou capaz de memorizar várias passagens dos livros do autor e lembrar delas sempre que uma cena do cotidiano me remete às experiências de Chinaski. Às vezes me pego pensando no que o personagem principal de Bukowski faria se estivesse na minha situação – e sempre me divirto com os possíveis resultados. E essa é uma das proezas deste escritor: ele nos faz enxergar o lado humano e sensível de situações nas quais jamais imaginaríamos ter algo de humano e sensível.

Depois que o leitor de primeira viagem supera o choque inicial causado pela torrente de palavrões e termos escatológicos que Bukowski coloca em seus livros, emerge no texto uma clara simpatia pelas pessoas desvalidas – pelos desempregados, pelos incapazes, pelos bêbados, pelos mendigos, pelas prostitutas, e assim por diante. Em Cartas na rua, Henry, já quase aos cinquenta anos, vive uma vida desprezível de funcionário público e tenta conciliar com ela a sua vida cotidiana, esta atravessada pela tentativa de suportar a faina do trabalho. Se em Factótum Chinaski muda de emprego como se muda de roupa – aliás, acho que nem eu mudo de roupa tanto quanto ele mudava de ocupação –, em Cartas na rua o mesmo Chinaski sobrevive nos Correios ano após ano, sem a menor perspectiva de sair dali ou melhorar a posição na empresa.

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Da esquerda para a direita: Faye Dunaway, Charles Bukowski e Mickey Rourke nos bastidores do filme Barfly, roteirizado pelo escritor

As mulheres que Chinaski arranja em Cartas na rua são bem simpáticas, e o relacionamento do protagonista com elas é ligeiramente diferente daquele visto em outros romances. Se no livro Mulheres, por exemplo, é Chinaski quem bagunça a vida de suas companheiras, em Cartas na rua parece ocorrer o contrário: são elas que bagunçam a vida dele. Me pareceu que Chinaski aqui é perceptivelmente mais romântico, mais sensível, e procura tocar seus relacionamentos sempre com a perspectiva de ser agradável às suas parceiras. Não é algo que não pareça acontecer também nas outras obras do autor, mas aqui este detalhe é mais perceptível – pelo menos o foi para mim.

Outra coisa curiosa de observar é que, em Cartas na rua, Chinaski ainda não leva uma vida de escritor. Nos romances seguintes, o protagonista está sempre dividindo seu tempo entre empregos temporários, mulheres, álcool e a atividade de escrevinhador desconhecido. Aqui, porém, Chinaski ainda não se enxerga como escritor nem faz da máquina de escrever sua companheira inseparável – marca registrada dos outros romances. Temos, na verdade, um personagem que está descobrindo sua vocação e descobrindo que pode transformar a penúria em que vive numa produção literária.

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Matt Dillon vivendo Henry Chinaski na adaptação cinematográfica Factótum, filme de 2005

Sempre que chego à última página de um livro do Bukowski, sinto uma estranha sensação de consolo e bem-estar. Me parece que Bukowski esteve o tempo todo tentando nos mostrar que os problemas que nós enfrentamos na vida são, simplesmente, a vida. Talvez seja um engano nosso pensar que a vida de verdade esteja para além dos nossos desgostos e problemas: o que de fato constitui a existência não é outra coisa que não os tapas que recebemos na cara e as situações difíceis pelas quais passamos de vez em quando. Charles Bukowski conseguiu transformar sua vida miserável em obra de arte e clássico da literatura, e fez isso apenas narrando cruamente as coisas que lhe aconteciam, dando a elas o desenho da sensibilidade.

Não teve sucesso nas corporações em que trabalhou, não galgou posições, não conquistou prestígio nas empresas em que prestou serviço, mas foi seguramente um dos escritores mais bem sucedidos de todos os tempos.

30 agosto 2013

Anna Kariênina, de Liev Tolstói

"Você nem acredita que delícia é, para mim, essa indolência rural. Nenhum pensamento na cabeça, um vazio completo." (p. 243)

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Para mim, ler o que Liev Tolstói escrevia é não apenas uma experiência literária agradável, mas, principalmente, é também uma experiência estética humana que, boa ou ruim, faz você voltar os olhos para dentro de você mesmo e observar, nos recantos mais ocultos da sua alma, coisas que ninguém – nem mesmo você – sabia que existiam. Este é o poder que Tolstói tem e que tantos outros autores consagrados compartilham. A propósito, essa qualidade de destrinchar a alma humana é normalmente encontrada nos clássicos da literatura: naquelas obras que as pessoas não somente comentam, mas de fato leem. E leem porque é fascinante, em qualquer época e em qualquer lugar, descobrir naquelas páginas os segredos que estão por trás da nossa luta cotidiana contra os fantasmas de nosso espírito.

Anna Kariênina (Anna Kariênina, 1877) é um desses clássicos que roubam a alma do leitor. Tolstói, exímio escritor, incansável paladino dos textos claros e inteligíveis, parece contar neste romance uma verdade universal a cada frase. A começar pela primeira sentença da obra, uma frase famosíssima, que diz que todas as famílias felizes se parecem, mas que cada família infeliz é infeliz à sua maneira. Ler Anna Kariênina não é uma experiência que passa batida. Ninguém que lê o romance de cabo a rabo, com atenção, pode dizer que chegou ao final com uma sensação de indiferença; não porque o livro mude completamente sua forma de pensar, mas porque é impressionantemente belo constatar que as mesmas questões de amor que moviam as pessoas há mais de um século são as mesmas que movem as pessoas de hoje.

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Cartaz do filme estrelado por Greta Garbo no papel de Kariênina, em 1935

Anna Kariênina é um livro sobre amor e eu me arrisco a dizer que talvez seja a obra definitiva sobre o assunto até hoje. Que me perdoem os imbatíveis Romeu e Julieta, que me perdoe o sonhador Gatsby, que me perdoe a dissimulada Lady Chatterley – e tantas outras figuras emblemáticas desse gênero tão visceral – mas a pulsante e sedutora Kariênina e toda a vasta gama de personagens deste livro de Tolstói nos explicam, em palavras simples e pontuais, o que é o amor e o que o amor pode fazer conosco. São 800 páginas que não falam de outra coisa que não o amor e, ao mesmo tempo, longe de cair em uma mesmice piegas e enfadonha, falam sobre praticamente todos os assuntos que ecoam muito interessantes e importantes até hoje – como a relação entre patrão e empregado, os dilemas metafísicos da existência, a vida de aparências na sociedade, as sutis particularidades do casamento, as guerras, e assim por diante.

Dizer que essas quase mil páginas são bem escritas é desnecessário porque, como Rubens Figueiredo conta na apresentação do livro, Tolstói era capaz de reescrever um mesmo parágrafo à exaustão até que, em seu entendimento, ele ficasse coerente, belo e profundo, digno de ser lido. E não somente isso: a própria estrutura do romance, sua arquitetura, revela um esmero particular, pois é dividida em 8 partes de praticamente mesmo tamanho, através das quais a obra destila toda a sua sincronia. Observar com cuidado a parte técnica de Anna Kariênina nos faz perceber que estamos diante de uma obra de arte, no sentido palatável do termo.

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Cena do filme dirigido por Joe Wright, adaptação de 2012

Anna aparece pela primeira vez no romance muito depois da primeira página, mas, quando ela aparece, o leitor entende por que o título do livro leva seu nome. Anna é uma mulher absolutamente apaixonável, se podemos dizer assim. Convidada pelo irmão para resolver um assunto de família em Moscou, Kariênina mostra-se ao leitor sob uma luz quase celestial: é forte, decidida, independente até onde uma mulher do século XIX poderia ser, simpática e, acima de tudo, linda. A partir de sua aparição, o principal grupo de personagens da história começa a despontar, e o narrador, sempre cadenciado, sempre sereno, revela ao leitor os dilemas e as dificuldades que atormentam estes personagens. E as angústias dessas figuras fictícias soam tão reais e palpáveis quanto poderiam soar as angústias de pessoas de carne e osso.

Embora o romance tenha um número bastante elevado de páginas, tem-se a impressão de que não há uma única palavra fora do lugar. O narrador observador, onisciente e onipresente, não é autoritário e, assim, não desrespeita a existência dos personagens: ele é apenas pontual, objetivo, descrevendo emoções, sensações, fatos e conflitos com a precisão de um cirurgião. Cheguei a ficar 30 minutos segurando o livro na mesma página, incapaz de virá-la porque o que eu tinha acabado de ler era tão belo e tão marcante que eu tinha a certeza de que não conseguiria me concentrar mais em outra coisa.

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Não quero estragar a experiência dos futuros leitores de Anna Kariênina e, por isso, paro esta resenha por aqui. Falar muito sobre o livro seria um desserviço. O que quero dizer é que não há resenha de tamanho adequado para comentar todos os pontos dessa obra – nem isso é desejável. Existe um suave prazer em ser surpreendido a cada nova passagem e acompanhar o lento caminhar da história. E, ao chegar à última página, compreender que aquele romance tão pesado e tão preciso agora faz parte de nós, pelo resto da vida.

15 agosto 2013

Crônica: Bússola

Das coisas que temos e não possuímos

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Posso estar bastante enganado ao dizer isso, mas, geralmente, quando nos decepcionamos com uma pessoa, ou com uma circunstância específica, saímos à procura discreta de um breve consolo capaz de manter acesas em nós a chama da confiança e aquela consciência particular sem a qual não é possível enxergar a beleza das coisas. Decepcionar-se não é senão acreditar que algo poderia ser de determinado jeito e, no final das contas, constatar que o que recebemos como resposta não correspondeu àquilo em que acreditávamos com tanta convicção.

Por isso pode-se dizer que, em um episódio decepcionante, não há culpados nem vítimas: há esperança em excesso, apenas. Uma esperança tão grande que, por vezes, pode engolir a realidade dos fatos. O desejo de que algumas pessoas continuem a nos fazer bem, pelo resto de nossas vidas, pode ser conveniente para nós na medida em que é exatamente essa confiança e essa certeza que sustentam o edifício dos nossos relacionamentos. Não acreditar que os outros nos farão bem é minar as bases desse edifício, por si só tão frágil. Se os decepcionados são as vítimas por cultivarem uma confiança enorme e se os decepcionantes são os culpados por terem traído a confiança alheia, isto é somente uma questão de perspectiva.

* * *

Na minha primeira experiência de atendimento a um paciente, constatei que nossa efêmera existência é pontilhada de pequenas decepções que, aos poucos, à força, nos ajudam a enxergar o mundo de uma maneira diferente – e, acima de tudo, nos ajudam a perceber que não temos controle sobre nada relacionado à nossa interação com as outras pessoas. A única coisa que temos sobre os outros é uma ligeira sensação de influência, que pode variar – e varia, sempre – ao longo do tempo. É essa influência exercida por nós sobre os outros que confere aos nossos relacionamentos uma tênue sugestão de controle.

Na ficha de entrada do serviço de psicologia não havia muitos detalhes: apenas um nome, Fernanda, a informação de que ela era recém-divorciada e que tinha um filho pequeno de três anos de idade, diagnosticado precocemente como hiperativo por um psiquiatra. Achei que o caso poderia ser interessante e, de alguma maneira, achei que ele poderia ajudar a formar o início de minha experiência profissional.

Quando Fernanda se sentou à minha frente, a um convite meu, ela respirou pesadamente e disse, sem rodeios: "Não sei muito bem por que estou aqui. Sempre achei que eu poderia resolver os meus conflitos pessoais de maneira particular, sozinha, sem precisar da ajuda de ninguém. Sou uma pessoa forte e sempre dei conta das minhas dificuldades. Existem muitas pessoas aqui que provavelmente precisam mais da sua ajuda do que eu." E, então, começou a chorar.

Lá fora fazia um dia claro. Lembro de ter passado pelos jardins da universidade e de ter dito a mim mesmo algo sobre como as tulipas e as orquídeas estavam vistosas e sadias em seu desabrochar atravessado pelo orvalho da manhã. Agora, ali naquela sala, naquele momento, o filho de três anos de Fernanda brincava com uma coleção de carrinhos de metal que eu havia trazido para a sala do consultório, junto com um balde cheio de dinossauros coloridos. Tudo parecia natural e, até certo ponto, tranquilo. Mas aquela mulher bonita de 36 anos de idade estava chorando na minha frente porque, naquela manhã de sol, decidiu admitir que havia se decepcionado com alguém (por acaso, com seu ex-esposo), e que decepcionar-se era um fenômeno que ela nunca, ou quase nunca, tinha experimentado.

Quando cheguei em casa, no fim do dia, me pus a procurar alguns documentos acadêmicos nas gavetas bagunçadas da minha escrivaninha. De forma absolutamente inesperada (ou assim me pareceu), encontrei uma bússola em formato de chaveiro, com o metal da presilha um pouco desgastado pelo tempo. A bússola estava no fundo da última gaveta, ao lado de um controle remoto de televisão velho. Com a bússola, dentro de uma caixinha de plástico transparente, havia um bilhete escrito à mão, em caligrafia feminina: Seu chá de bússola diário. Não esqueça. A direção da Beleza, da Justiça e da Sinceridade é apenas uma, e ela, essa direção, está debaixo do nosso nariz. Inútil procurar em outro lugar. Beijo, Gabi.

Sou capaz de passar dezenas de minutos olhando para uma bússola sem me cansar. Naquele momento, esqueci completamente o que eu estava buscando, que documentos estava garimpando, e fiquei a revirar aquele pequeno e simbólico objeto nas mãos até perceber que o que eu estava procurando nas gavetas, desde o começo, não eram os documentos, mas a bússola. E me dei conta de que eu não falava com Gabriela há mais de três anos porque tínhamos, contrariando todas as nossas expectativas, nos decepcionado um com o outro.

* * *

Na nossa última sessão de avaliação psicológica (cujo paciente era, na verdade, o filho hiperativo de três anos), Fernanda me confidenciou que se sentia melhor. Nas últimas semanas, havia pensado sobre sua circunstância, sobre suas amarguras, e disse que o principal consolo que recebera viera da constatação de que as decepções, todas, se devem ao nosso esforço desmedido de construir uma imagem fantasiosa dos outros de acordo com os nossos interesses. De um modo geral, sua aparência estava bem melhor: havia um sorriso tímido no rosto, seus cabelos, volumosos e ondulados, estavam soltos, suas mãos não se remexiam nervosamente e pude perceber, com um certo alívio, uma atenção maternal sincera e afetuosa para com o pequeno garoto.

A excessiva atividade que o filho de Fernanda apresentava, diariamente, tanto no colégio quanto em casa e na rua, poderia ser vista como uma espécie de reação funcional à insegurança da mãe e à ausência do pai, que o havia ignorado desde o divórcio com a esposa. Era uma hipótese que valia a pena ser levada em consideração, mas os nossos encontros semanais acabaram quando o semestre letivo chegou ao fim. De qualquer modo, até hoje, tenho a sensação nítida de que aprendi mais com Fernanda e seu filho do que ambos aprenderam comigo.

Se o estofo de nossas decepções continua a ser um mistério, pelo menos temos a sutil garantia de que elas não duram para sempre. Ou porque percebemos que nosso controle sobre tudo à nossa volta é muito mais limitado do que gostaríamos de admitir, ou porque, à força, somos instados a perceber o nosso universo particular de outra forma, o fato é que, um dia, alguma coisa se parte dentro de nós.

No final do ano, tirei a bússola de dentro da caixinha de plástico e a coloquei em cima da minha mesa, para me lembrar, ainda que remotamente, que a bússola aponta o caminho, mas quem caminha somos nós.

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Esta crônica foi escrita para o site Lupa Cultural, parceiro do Gato Branco.

29 julho 2013

O oceano no fim do caminho, de Neil Gaiman

Uma confissão sobre mim: quando era bem pequeno, aos três ou quatro anos, talvez, eu podia ser um monstro. (p. 64)

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Existe uma vertente da literatura que eu costumo chamar, normalmente, de "literatura onírica". Nesse gênero, elementos fantásticos se reúnem e se mesclam com uma trama aparentemente banal, realista, muito próxima ao cotidiano ao qual estamos habituados. Não me refiro à conhecida veia do realismo fantástico, porque o que destaca o gênero da literatura onírica é justamente essa atmosfera especial de sonho, de irrealidade, de coisas não-palpáveis e não-percebíveis pelos sentidos. Uma atmosfera que parece estar sempre, do início ao fim, diluída em fumaça, em neblina, sem que possamos definir de modo nítido o que é desenhado no livro.

No sábado da última semana, finalizei a leitura de um livro que se encaixa muito bem nesse gênero específico. Trata-se de O oceano no fim do caminho (The ocean at the end of the lane, 2013), escrito pelo famoso Neil Gaiman, que conquistou uma enorme popularidade ao lançar a monumental HQ Sandman, história em quadrinhos seriada que reflete todo o costumeiro universo do autor: sonhos, ilusões, bruxas, mitos, seres estranhos, e assim por diante.

O oceano no fim do caminho é o primeiro romance adulto de Neil Gaiman desde Os filhos de Anansi, lançado em 2005. Neste novo título, Gaiman procura levar o leitor a refletir sobre o peso das lembranças infantis e sobre como podemos, até certo ponto, ser reféns delas. Além disso, à maneira de O labirinto do fauno (filme de Guillermo del Toro), o livro de Gaiman sugere que a fantasia pode ser algo não oposto à realidade, mas, pelo contrário, complementar a ela.


Sinopse: Um homem de meia-idade volta à casa onde passou a infância. Embora a construção não seja mais a mesma, ele é atraído para a fazenda no fim da estrada, onde, aos sete anos, conheceu uma garota extraordinária, Lettie Hempstock, que morava com a mãe e a avó. Naquela época, um homem cometeu suicídio dentro de um carro roubado no fim da estrada que dava na fazenda. Sua morte foi o estopim, com consequências inimagináveis. A escuridão foi despertada, algo estranho e incompreensível para uma criança. E Lettie prometeu protegê-lo, não importava o que acontecesse.


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Diferentes capas da série Sandman, criação de Neil Gaiman


O oceano no fim do caminho é um livro que certamente irá conquistar o coração de muitos fãs do autor, em particular, e da fantasia, em geral. Digo isso porque é muito fácil se deixar levar pela narrativa agradável do protagonista – que, perto dos 40 anos de idade, volta para a província rural onde viveu sua infância e, depois de se sentar à beira de um lago que sua antiga amiga chamava de oceano, rememora todos os estranhos acontecimentos de três décadas atrás. O próprio ambiente em que se passa a história é particularmente aconchegante: um pequeno vilarejo rural de Sussex, Inglaterra, no final dos anos 60.

Muitos elementos caros à literatura de Gaiman estão presentes neste seu novo romance, a começar pela família Hempstock, que, aqui, é composta por três mulheres que moram sozinhas em uma casa próxima à residência do protagonista: uma garota de 11 anos, sua mãe e sua avó (que jura ter estado presente durante a criação do Universo). Além disso, encontramos um protagonista criança, que inadvertidamente é tragado para um mundo surreal cuja fantasia irá testar a capacidade de resistência do menino – o que não deixa de ser uma sutil forma de ilustrar o amadurecimento pelo qual todos nós passamos em determinada época de nossa infância.


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Detalhe da edição do livro, lançado no Brasil, pela editora Intrínseca


O oceano no fim do caminho é uma excelente fábula sobre as maneiras pelas quais podemos estar atrelados ao nosso passado, e sobre o que uma criança de sete anos de idade é capaz de fazer para tomar as rédeas da situação em que se encontra inserida – mesmo que ela própria não tenha consciência dessa situação. No fundo, é o que todos nós fazemos, em maior ou menor grau: tentamos tomar as rédeas da situação em que nos encontramos e, se isso estiver fora das nossas capacidades, inventamos meios de burlá-la e procuramos algo para justificar esses subterfúgios. Como diria o grande Tolstói, "metade de nossa capacidade é destinada a nos iludir e a outra metade, a justificar essa ilusão".

A atmosfera de sonho presente em O oceano no fim do caminho se deve à constante incerteza de saber se os fatos que se apresentam na trama são reais ou produtos de um imaginário construído pelos próprios personagens. Graças a essa indecisão, a esse impasse, o leitor saboreia a condição de estar sempre andando sobre a tênue linha que separa o concreto do fictício, e o resultado não poderia deixar de ser uma primorosa reflexão acerca daquilo que forma o estofo de nossas recordações mais remotas – quando tudo era uma novidade assustadora, quando nossas vizinhas cozinhavam guloseimas para nós, quando fazíamos algo proibido, quando inventávamos uma brincadeira na qual imergíamos ou quando nos decepcionávamos com alguém de nossa família.

Leve, agradável, aparentemente despretensioso (mas de uma profundidade que só se percebe quando entramos em contato direto com a obra), o novo título de Neil Gaiman é a leitura que recomendo para os apreciadores da boa literatura de mistério – esse mistério típico dos livros que não entregam todos os pontos e que confiam na inteligência e na imaginação do próprio leitor.

15 julho 2013

Micro, de Michael Crichton e Richard Preston

"Foi difícil suportar os ecos e as reverberações daqueles dois gigantes." (p. 107)

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Em novembro de 2008, aos 66 anos, o escritor e cineasta Michael Crichton faleceu em decorrência das complicações de um câncer, deixando para trás 17 livros publicados e uma legião de fãs ao redor do mundo. Dentre todos os títulos lançados pelo autor, apenas para citar alguns dos mais conhecidos, estão O Parque dos Dinossauros (1990) e Linha do Tempo (1999), considerados pela crítica como expoentes da carreira de Crichton.

Embora os livros do autor sejam, de um modo geral, tematicamente díspares entre si – dinossauros, jornadas no tempo, enigmas espaciais, manipulação midiática, épicos, tramas corporativas etc. –, toda a sua obra compartilha algo em comum: a fascinação pela tecnologia, a fascinação do homem pela tecnologia, o que os cientistas podem fazer com a tecnologia e, finalmente, o que pode dar errado nesta tecnologia quando alguma coisa sai do controle. Este é o cerne do chamado gênero techno-thriller que, se Crichton não inaugurou, pelo menos ajudou a popularizar.

Após a sua morte, até agora, pelo menos no Brasil, dois livros inéditos foram publicados em seu nome: Latitudes Piratas (que o autor escrevera ainda no início da carreira, mas engavetara) e Micro (o romance que ele estava redigindo quando faleceu). Quanto ao primeiro, sabemos que Crichton não o publicou na época porque, no final das contas, considerou-o de baixa qualidade, incompatível com os títulos que vinha publicando até então. Quanto a Micro, foi selecionado um escritor chamado Richard Preston, especialista em epidemias e bioterrorismo, considerado capaz de trabalhar sobre os esboços deixados pelo autor original e finalizar o romance.

Terminada a leitura, posso dizer que Micro é uma homenagem vintage a Michael Crichton – sem a qualidade dos livros do autor original, infelizmente.


Sinopse: Na exuberante floresta de Oahu, uma tecnologia inovadora inicia uma era revolucionária de prospecção biológica. São descobertos trilhões de micro-organismos e milhares de espécies de bactérias, um material que alimenta pesquisas para medicamentos inigualáveis e para aplicações além de tudo o que já se imaginou. Quando um grupo de jovens cientistas sofre um acidente com tal tecnologia e tem seu tamanho diminuído para 1 centímetro de altura, eles encontram uma natureza hostil e a cada instante deparam com perigos intensos e surpreendentes. Armados apenas com o conhecimento do mundo natural, de repente se veem como cobaias de um poder radical e desenfreado.


No site Skoob, avaliei o livro em duas estrelas, em um total de cinco. Se houve alguma decepção da minha parte, essa decepção deriva do fato de que eu esperava um romance à altura dos anteriores publicados por Crichton – cuja carreira é repleta de obras verossímeis e consistentes. O marketing em torno de Micro, sobretudo, frisara que Richard Preston trabalhava para deixar a aura da obra semelhante à atmosfera de O Parque dos Dinossauros, e ninguém poderia esperar pouca coisa quando se faz uma promessa como essa.

O fato é que as comparações com os livros anteriores de Crichton deixaram o leitor na expectativa de encontrar um romance no mínimo ótimo, dado o histórico de excelentes best-sellers produzidos por ele no passado. Mas, finalizado o trabalho, mesmo a expressão "muito bom" talvez não faça jus ao resultado que foi Micro. Não que não seja um bom livro. Afinal, é uma obra que tem seus aspectos originais e que consegue, em grande medida, captar a atenção do leitor. Mas não se pode dizer que o livro tenha qualidades intrínsecas.


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Vou ser insistente neste ponto: como homenagem póstuma, Micro é um bom romance. Preston joga muito bem com o suspense e a ação do enredo. Há detalhes que lembram Michael e isso traz para o leitor uma serena sensação de saudosismo – como, por exemplo, na cena em que uma das personagens desce ao ninho de uma vespa para resgatar um companheiro. Mas, mesmo que o romance tenha sido escrito por outra pessoa e que seja natural existirem diferenças estruturais, acabei ficando com a incômoda impressão de que Preston tentou imitar o estilo de Crichton sem sucesso. Em alguns momentos a história soa boba e exagerada, numa espécie de simulação mal-sucedida das ideias do autor falecido. De todo modo, Micro está longe de ser a "obra-prima sofisticada e revolucionária" que a editora Rocco anuncia em sua sinopse.

Digo isso porque Preston escorrega justamente onde o homenageado nunca escorregava, que é na questão da verossimilhança. Você lê O Parque dos Dinossauros acreditando que dinossauros podem ser clonados; lê Linha do Tempo jurando que é possível ir para o passado; lê Esfera acreditando plenamente que uma nave espacial pode ser descoberta no oceano e ter poderes mágicos. Com Micro isso não acontece – você não lê o romance acreditando que pessoas de fato possam ser encolhidas ao tamanho de uma unha. As explicações científicas são superficiais e muito didáticas (mais didáticas do que já são habitualmente nos livros de Crichton), os personagens são também superficiais, os eventos não convencem. Tudo é narrado de maneira muito rápida, como se o foco não fosse, acima de tudo, a ideia por trás do romance, mas apenas a ação, a correria. As motivações de alguns personagens, seu histórico e suas atitudes às vezes soam tão incoerentes que beiram o absurdo.


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Bem feitas as contas, temos aqui um livro que explora algo que tanto Richard Preston quanto Michael Crichton amavam: a natureza selvagem, o estado natural dos seres humanos que lutam para sobreviver. O diferencial é que esta natureza é vista agora a partir de outra perspectiva: da visão micro, sob a ótica de seres humanos do tamanho de uma unha, perdidos em uma densa floresta. O que decorre dessa situação é o esperado, ou seja, uma miríade de perigos que se apresentam para a infelicidade do grupo de pesquisadores encolhidos graças à tecnologia da Nanigen, a companhia presidida pelo personagem Vincent Drake.

Mistura de ação com suspense e conteúdo científico, as obras de Crichton apresentavam sempre uma possível fronteira que a ciência conseguia alcançar. É possível clonar dinossauros. É possível viajar no tempo. É possível patentear genes. É possível controlar os fenômenos da natureza, e assim sucessivamente. A pedra angular do enredo de seus livros estava em como essa tecnologia era usada, por quem e com que finalidade. Isso Preston conseguiu captar e reproduzir em Micro. Se foi feito de maneira decente e bem-elaborada, bem, é melhor deixar este veredicto para os leitores.

01 julho 2013

Game: The Last of Us

"Ei, Ellie, achei mais um desses gibis que você está lendo."

The Last Of Us

A atual geração dos video-games conheceu um de seus melhores jogos quando Uncharted: Drake's Fortune foi lançado há seis anos, em 2007, e conquistou uma legião enorme de fãs que viram no personagem Nathan Drake a atualização bem-sucedida de Lara Croft – a musa sensual da antiga série Tomb Raider. Com as sequências, Uncharted 2: Among Thieves e Uncharted 3: Drake's Deception, a desenvolvedora Naughty Dog ganhou e manteve uma impressionante visibilidade no universo dos jogos, conquistando prêmios cobiçadíssimos, caso do célebre Game of The Year para o segundo título de Uncharted em 2009.

Na última semana foi lançado no mercado o mais novo trabalho da empresa, The Last of Us, um survival que, desde os primeiros teasers, chamou a atenção do público e alimentou as mais altas expectativas. Confiantes no sucesso da série Uncharted, os admiradores da Naughty Dog apostaram todas as suas fichas no novo game da companhia e muitos compraram o jogo logo no dia do lançamento – dentre eles, eu – cheios de expectativa para colocar as mãos no trabalho de uma equipe de profissionais que, sabe-se, primam pela qualidade acima de tudo.

Seguindo o modelo da resenha sobre Far Cry 3 feita aqui no blog, vou dividir esta análise de The Last of Us em tópicos distintos para organizar melhor minhas impressões e meus argumentos.


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"Esconda-se e tente não fazer barulho" é a lei


HISTÓRIA

Boston, 2013. Um misterioso fungo pandêmico começa a infectar as pessoas e a instalar o caos na humanidade. A partir de então, os sobreviventes passam a se organizar dentro de zonas de quarentena a fim de se protegerem do mundo exterior, não só infestado de zumbis como também tomado por tropas de uma milícia violenta e repressora capaz de atirar primeiro e perguntar depois. Por todos os lados, devastação: prédios arruinados, ruas cheias de entulhos, lojas saqueadas, casas abandonadas e pequenos grupos de humanos que tentam, apesar da catástrofe biológica, sobreviver em um mundo sem nada.

Ao longo de vinte anos, Joel sobrevive nesse cenário apocalíptico traficando armas no mercado negro local, até que Marlene (a líder dos chamados Vaga-lumes, espécie de resistência civil bem-intencionada) lhe incube de uma tarefa singular: escoltar pelo país a órfã Ellie, uma pré-adolescente de 14 anos, e entregá-la aos cuidados de um grupo Vaga-lume situado fora dos muros da cidade. Assim, além de desafiar a ordem dos militares de permanência obrigatória nas zonas de quarentena, a dupla de protagonistas cruza os EUA se deparando com perigosas pessoas infectadas pelo vírus e, também, com caçadores oportunistas dispostos até mesmo a contrabandear carne humana.

Ao longo dessa jornada particular pontilhada de acontecimentos surpreendentes, Joel e Ellie sobrevivem arrastando-se pesarosamente com os poucos utensílios de que dispõem. Ao longo das quatro estações do ano, ambos dividem não só um espaço em comum, mas uma relação afetiva cuja proximidade se constrói aos poucos, em meio à violência e ao desespero.


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Atraente variabilidade de cenários e armas


DO QUE GOSTEI

Dos gráficos primorosos à jogabilidade eficiente, passando pelo enredo cativante e a história repleta de emoção, basicamente tudo encheu os meus olhos em The Last of Us. Não digo isso como fã de Uncharted ou como fã dos jogos exclusivos da Sony: digo isso como um amante da arte nos games. E o mais novo título da Naughty Dog é justamente isto, uma obra-prima que surpreende pela beleza, pela capacidade de misturar gêneros, envolver o jogador e retribuir cada centavo gasto na compra.

Mistura bem equilibrada de Eu sou a Lenda, A Estrada e Bravura Indômita, The Last of Us é um jogo excelente porque consegue unir o que esses grandes títulos têm em comum e fazer algo singular, diferente, próprio do game. O intimismo entre os personagens (Joel e Ellie em particular) é um dos pontos mais fortes da trama na medida em que é isto o que dá cor e vida a tudo o que acontece na tela. De ritmo extremamente lento, o caminhar do jogo consegue transmitir a sensação de que existe uma urgência contra a qual os personagens não podem lutar: devem chegar o mais rápido possível ao destino para o qual se dirigem, mas, num mundo onde não há nada e onde andar a pé é uma realidade incontornável, não se pode fazer muita coisa para acelerar o progresso. Resta, então, passar por cada lugar, por cada cidade, tirando-lhe o máximo de proveito e sofrendo de tudo o que é possível sofrer.

Existe toda uma imersão em The Last of Us que, por si só, já vale a pena. Eu jogava sempre nas madrugadas silenciosas, com fones de ouvido e com todas as luzes da minha casa apagadas. O efeito que isso causa no espírito do jogador é impressionante: eu simplesmente entrava na proposta do jogo, abria cada porta com a mão tremendo, subia cada escada esperando o pior, entrava em cada beco com a arma em punho pronto para atirar. E aí reside um dos pontos fortes do jogo: ele é lento, mas intenso. Exige inteligência do jogador, exige sensibilidade para se encantar com a história e exige coragem. Sim, coragem, porque quando você mergulha fundo na ideia, cada passo deve ser dado com lucidez.

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Embora o ritmo seja intenso, há passagens no jogo que oferecem uma perspectiva diferente: o simples caminhar, o simples explorar lugares e aposentos. Em se tratando de Naughty Dog, esses momentos não são nem um pouco penosos: todos os cenários são lindos e, não raro, me dava pena abandonar um lugar tão esteticamente agradável e seguro para entrar novamente num mundo desconhecido.

Contribuem para a sensação imperativa de sobrevivência vários elementos, a começar pela munição extremamente escassa e pela necessidade de passar por alguns lugares da forma mais silenciosa possível. No primeiro caso, faça cada bala disparada valer a pena, porque do contrário você corre o risco de se ver cercado por infectados (ou por caçadores, ou o que quer que seja) sem a menor chance de enfrentá-los à altura. No segundo caso, agache-se, coloque a sensibilidade do manche de seu joystick para funcionar e reze para que ninguém ouça seus passos.

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Eu sou a Lenda e A Estrada: inspirações para Naughty Dog

Um detalhe que pode soar relativamente frustrante para alguns jogadores é que não há uma grande variabilidade de inimigos. Digo, o desafio proposto pela dificuldade dos inimigos não é crescente porque eles não variam, são sempre os mesmos do início ao fim – o que não deixa de ter seu lado verossímil. O que muda são os cenários em que se encontram e as oportunidades que esses cenários oferecem ao jogador. Nessa perspectiva, há, sim, ambientes diferentes e situações diferentes que oferecem mais ou menos dificuldade, mas sempre com os mesmos inimigos. E é essa variabilidade dos cenários, e não dos inimigos, que obriga o jogador a ser estratégico e frio na hora de enfrentar uma horda de caçadores ou infectados, por exemplo. 

Por último, e não menos importante, resta elogiar a trilha sonora original composta por ninguém menos que Gustavo Santaolalla, ganhador de dois Oscar pelas músicas dos filmes O Segredo de Brokeback Mountain e Babel. Ao analisar a escolha deste artista para compor a sonoridade da história, percebe-se que a equipe privilegiava a emoção da trama em detrimento do mero horror. A trilha de The Last of Us é minimalista e quase não se escuta os acordes de Gustavo, mas, quando se escuta, eles ganham proporções gigantes – não por eles mesmos, mas pelo contexto do que está sendo mostrado na tela.


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O QUE PODERIA SER MELHORADO?

Acreditem: é difícil encontrar aspectos negativos em The Last of Us. Com um enredo tão bem amarrado e uma jogabilidade fluida, a imersão que o jogo possibilita ao jogador faz com que este sequer pense em questionar qualquer coisa supostamente ruim no trabalho técnico empregado na produção do game. Contudo, tenho uma única coisa a declarar sobre uma possível falha estrutural em The Last of Us – e isto é mais um comentário do que necessariamente uma crítica.

A Inteligência Artificial dos inimigos fica aquém do esperado – principalmente se formos levar em conta que, hoje em dia, as IA estão cada vez mais bem elaboradas e consistentes. Convém esclarecer que estou me referindo aqui não a todos os inimigos de The Last of Us, apenas aos soldados e aos caçadores – ou seja, os adversários humanos do game, os que não foram infectados pelo vírus. Os zumbis do jogo são cegos e, por essa razão, naturalmente, você pode passar na frente deles sem ser percebido (contanto que não faça o menor ruído, claro).

Com os soldados e os caçadores essa realidade não procede. Muitas vezes eu passava agachado e aparecia sem querer no campo de visão deles, mas eles, se não me notavam, demoravam muito para me enxergar. Isso sem levar em consideração que os personagens assistentes são totalmente invisíveis aos seus olhos. Não raro, Ellie cruzava o espaço abaixo do nariz de um guarda e nada acontecia, o que proporcionava um momento bem pastelão e me dava uma frustrante (embora ligeira) sensação de irrealidade. Em um jogo que prima tanto pela verossimilhança e pela coerência, isso de fato é uma coisa incômoda.

Para não dizer que a deficiência da IA é o único problema em The Last of Us, considero que há outra coisa que também poderia ser melhorada: o sistema de áudio na fala dos personagens. No desejo de criar um efeito 3D para as vozes, os programadores fizeram com que o volume das falas dos personagens variasse de acordo com a posição da câmera. O problema é que, às vezes, um simples giro na câmera pode suprimir totalmente a voz de alguém, mesmo que esta pessoa esteja ao lado de Joel. Diferentemente do que se supõe, não é um defeito grave (embora recorrente) e pode ser superado com alguma atualização de software.

Desnecessário dizer que esses pontos negativos não abalam em nada a experiência do game. Mesmo com essa pequena deficiência da Inteligência Artificial (e mesmo com qualquer outro pequeno defeito que tenha passado despercebido pelos meus olhos), The Last of Us continua sendo uma obra-prima indiscutível. A densidade dos personagens, a profundidade da história e a jogabilidade elegante deste jogo colocam a Naughty Dog mais uma vez, com justiça, no topo das grandes desenvolvedoras atuais.

Nota? 10. Sem titubear.


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Palavras da Wikipedia:

"Já antes do lançamento do jogo, The Last of Us recebeu aclamação universal. Atualmente detém uma pontuação de 95 no Metacritic e de 94.58% no GameRankings. Recebeu pontuações perfeitas de várias publicações. Os críticos elogiaram diversos aspectos do jogo, incluindo a jogabilidade baseada em escolhas, ação realista, profundidade emocional e som. Várias revistas declararam o jogo como uma obra-prima e um título muito significativo para a sétima geração de consoles."

E, como escreveu de forma belíssima um resenhista do site FinalBoss,

"Num recente mar de jogos descerebrados e vazios, sem alma e sem motivo, o verdadeiro horror é pensar que The Last of Us, como profere seu título, possa ser o último de sua espécie. A verdade, porém, é que (…) este conto interativo sobre o que nos torna humanos ganha o merecimento de ser considerado – não somente pela beleza de seu exterior – o abre-alas da próxima geração de jogos, um que, apressado, calhou de chegar antes mesmo dos novos consoles. Só nos resta esperar que, a exemplo de Joel, a atual indústria de jogos, por vezes tão necessitada de um norte, enxergue liderança na bravura da Naughty Dog, a fim de saber exatamente para onde ir."