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29 dezembro 2014

A Festa do Bode, de Mario Vargas Llosa

"O país estava afundando, isolado e de quarentena por causa dos desmandos de um regime que, embora tivesse prestado serviços valiosíssimos no passado, havia degenerado em uma tirania que causava repulsa universal." (p. 353)

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Ontem eu finalizei a leitura do livro A Festa do Bode (La Fiesta del Chivo, 2000), um dos grandes romances históricos escritos pelo peruano Mario Vargas Llosa, vencedor do Prêmio Nobel de Literatura em 2010. Eu já conhecia o autor através de duas ótimas obras que li há muito tempo, Travessuras da menina má e Tia Julia e o escrevinhador, que me revelaram o excelente contador de histórias que é este latino-americano – cujo domínio do espaço narrativo e cuja capacidade de construir personagens sólidas me impressionaram bastante desde o início.

Em A Festa do Bode, temos narrados os últimos dias do general Rafael Leonidas Trujillo Molina, ditador da República Dominicana entre 1930 e 1961, período em que governou o insular país do Caribe com mãos de ferro, perseguindo seus opositores e humilhando seus colaboradores para manter a autoridade. Paralelamente a isso, dois outros eixos compõem a narrativa: a visita de Urania Cabral a Santo Domingo, capital da República, já décadas após a queda do regime; e os minutos que antecedem o atendado ao ditador, orquestrado por um grupo de conspiradores ligados a Trujillo.

Cada eixo narrativo pertence a um tempo diferente, e assim o leitor encontra várias referências de um capítulo no capítulo seguinte, por exemplo, muitas vezes vendo o mesmo acontecimento ser narrado duas vezes – sob ângulos diferentes, a depender da personagem em questão. Longe de embaralhar a mente de quem lê, esse recurso coloca o romance sob uma tensão constante, tornando mais impressionantes algumas revelações e mais justificadas as ações de determinadas personagens. Muito apegado também à técnica do flashback, Vargas Llosa transforma a primeira metade de A Festa do Bode em um enredo de reminiscências, a fim de explicar a trajetória de cada personagem até o momento presente. Feito isto, a trama descamba para um thriller frenético – e assustador – sobre perseguição e tortura.


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O Oldsmobile 1956 usado pelos conspiradores para emboscar Trujillo repousa no Museo Nacional de Historia y Geografía de Santo Domingo


Do ponto de vista da técnica, o que mais me impressionou no livro foi justamente a narração formada por temporalidades fragmentadas, recurso que o autor utiliza com sabedoria para extrair o máximo proveito e contar da melhor forma possível uma história cheia de intrigas e reviravoltas. Do ponto de vista do conteúdo propriamente dito, o romance impressiona pela relevância do que é contado, pela necessidade de denunciar um regime totalitário assombroso que reinou durante 31 anos e que foi responsável por tanta dor e privação na vida de tantos dominicanos. E, assim, o que parecia ser uma nota-de-rodapé esquecida na História da América Latina acaba se transformando em uma interessantíssima abordagem literária sobre a tirania e as consequências do poder político absoluto.

Li A Festa do Bode em pouco mais de duas semanas e posso dizer seguramente que ele é um dos melhores livros do Llosa. É arriscado falar isso de um autor prolífico e muito bem recebido pela crítica, mas a verdade é que eu finalizei ontem a leitura de um dos melhores trabalhos deste que é considerado o melhor escritor latino-americano vivo. (Só não li o livro ininterruptamente, sem largá-lo, porque eu gostava de saborear a escrita requintada do autor em várias passagens, e esses momentos de deleite me consumiram bastante tempo.) No mais, embora o romance tenha um foco bastante político e isso afaste alguns leitores que não gostam do tema, A Festa do Bode dá espaço para o suspense e a intriga melodramática, o que o torna extremamente popular e prazeroso de ler, além de muito instrutivo. Llosa coloca o drama humano acima de tudo, inserindo-o num contexto em que decisões políticas extremas têm um enorme peso na vida das pessoas comuns.

Depois deste livro, considero Mario Vargas Llosa um dos mais fascinantes e inventivos autores que repousam na minha estante. Que venham os próximos títulos.

P.S.: Para ler meus comentários sobre os dois outros livros que li do autor, clique aqui (Travessuras da menina má) e aqui (Tia Julia e o escrevinhador).

Feliz Ano-Novo aos leitores do Gato Branco!

14 dezembro 2012

Tia Julia e o escrevinhador, de Mario Vargas Llosa

"O futuro era um assunto tacitamente abolido de nossas conversas, sem dúvida porque, tanto ela como eu, estávamos convencidos de que nossa relação não tinha nenhum." (p. 122)

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Tia Julia e o escrevinhador (La tía Julia y el escribidor, 1977) era um livro que estava na estante do meu irmão há alguns anos e eu nunca tinha tido a oportunidade de pegá-lo para ler. Já havia devorado o romance Travessuras da menina má antes, que é de Mario Vargas Llosa também, e inclusive comecei a pensar em ler os outros títulos deste escritor peruano, mas nessa época uma série de leituras mais prementes estavam se colocando entre eu e Tia Julia.

A verdade é que, depois de muitos títulos do Murakami, alguns de Amitav Ghosh e outros tantos de Erico Verissimo, finalmente pulei por cima de alguma espécie de obstáculo invisível e puxei da prateleira do meu irmão este pitoresco romance de Llosa (vencedor do Nobel de Literatura em 2010, convém lembrar), me divertindo do início ao fim com as aventuras sentimentais de Marito e as extravagâncias artísticas do radionovelista Pedro Camacho.


Sinopse: Tia Julia e o escrevinhador é um dos livros mais originais de Vargas Llosa. Mesclando humor e romance, o escritor narra a história de Varguitas, um jovem peruano com ambições literárias que se apaixona por uma tia com quase o dobro da sua idade. Em paralelo a esse romance proibido, na Lima dos anos 50, Varguitas conhece Pedro Camacho, autor excêntrico de radionovelas cujos enredos mirabolantes fascinam os peruanos. As novelas vão muito bem, até o dia em que Pedro Camacho, sobrecarregado, começa a confundir enredos e personagens. E, ao mesmo tempo, o romance entre Varguitas e tia Julia é descoberto pela família.


Mario Vargas Llosa é um daqueles escritores com os quais tenho uma estreita relação de afeição e repulsa. Me afeiçoei ao seu trabalho porque ele é, de fato, sem sombra de dúvidas, um exímio contador de histórias, um artista das letras verdadeiramente ímpar – basta lembrar da sua longa incursão na literatura engajada, em que transformava em romance grandes eventos da política latino-americana, como nos clássicos A festa do bode e Lituma nos Andes. Sua importância literária (e não só a importância como também a qualidade real de sua escrita) faz de Llosa um dos maiores escritores da América do Sul. Por outro lado, pessoalmente falando, acho-o bastante aborrecido e desagradável como sujeito. Mas isso é uma opinião pessoal demais, e não convém ao caso falar sobre ela.

Tia Julia e o escrevinhador foi redigido entre duas grandes obras: Conversa na catedral e A guerra do fim do mundo. Por essa razão, corria o sério risco de ser tratado como um trabalho menor do escritor, mero passatempo ou divertimento literário, por abordar um assunto engraçado e tecnicamente superficial: o amor autobiográfico entre um menino de 18 anos e sua tia distante. No entanto, bem feitas as contas, percebe-se que Tia Julia é um romance que, além de divertidíssimo e muito bem humorado, é também uma obra de arte não menos ambiciosa que as duas citadas acima. Vargas Llosa tem o dom de transformar cada pequeno acontecimento em uma situação envolvente, além de abordar os eventos da história sob uma ótica antropológica genial.

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Capa da Coleção Folha de Literatura Ibero-Americana e pôster do filme norte-americano baseado no romance, estrelado por Keanu Reeves

Não é à toa que o escritor é festejado bastante aqui na América Latina: cada livro seu faz uma referência completa a todo panorama do continente, traçando uma espécie de painel sócio-histórico que faz a América abaixo do hemisfério norte parecer de fato uma grande e coesa comunidade, com seus dramas pessoais, suas nuances políticas, suas mesquinharias e suas virtuosidades. Em Tia Julia isso fica muito claro: percebe-se como Llosa teve o cuidado de inserir praticamente todos os países latinos na história, nem que seja como uma simples menção.

O livro é dividido basicamente em dois eixos centrais: a história de amor entre o personagem Mario Vargas e Julia (sim, há muito de autobiográfico nesta história, porque na vida real o autor também se envolveu com a própria tia, anos mais velha que ele, chamada Julia) e as radionovelas escritas pelo pitoresco artista boliviano Pedro Camacho. Os capítulos são alternados – ou seja, depois de um capítulo sobre as peripécias de Mario, há um capítulo de radionovela escrito por Camacho. Aqui cabe um parêntese: embora seja um recurso literário muito interessante, esse movimento de troca de capítulos cansa um pouco o leitor, porque a quebra do fio da meada da história é uma constante. Nada que torne o livro menos bom, claro, mas o fato é que isso pode deixar a leitura um pouco enfadonha em alguns pontos.

Os vários personagens que orbitam ao redor de Mario, Tia Julia e Pedro Camacho são sujeitos riquíssimos e muito bem construídos, principalmente Javier – melhor amigo de Mario –, Grande Pablito e Pascual. Aliás, essa é uma das muitas qualidades de Llosa como novelista, saber criar personagens secundários interessantes e memoráveis (o auge desse tipo de criação foi em Travessuras da menina má, sem dúvida, porque até hoje me lembro com ternura do inesquecível Menino Sem Voz).

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Da esquerda para a direita: Vargas Llosa, Carlos Fuentes e García Márquez

Assim como Travessuras da menina má, Tia Julia e o escrevinhador é um dos romances mais leves de Mario Vargas Llosa: "leve" não no sentido de superficial, mas de mais facilmente identificável com o leitor, mais próximo da nossa realidade emocional cotidiana e, em suma, mais novelesco. O escritor peruano destila toda a sua capacidade de contar uma boa história, narrá-la de uma maneira que parece descompromissada mas que, na verdade, carrega toda uma bagagem social nas páginas; uma literatura compromissada, sim, compromissada a todo momento com seu povo, seus eventos e suas particularidades. Ler Tia Julia e entender seu contexto deixa qualquer um com uma pontinha de orgulho por ser latino-americano, no final das contas.

30 julho 2010

Travessuras da menina má, de Mario Vargas Llosa

"Quer dizer, você esperava há dez anos que uma garota como eu aparecesse em sua vida?" (p. 27)

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Uma das primeiras providências que tomei ao chegar na cidade de Fortaleza-CE – onde iria morar pelos anos seguintes – foi adquirir livros com conteúdo mais profundo, denso, nada que se assemelhasse às histórias frugais que eu vinha lendo até então, em Belém-PA. Essa mudança de hábito literário nada tem a ver com as cidades em si, convém esclarecer. A questão é que, quando cheguei aqui, em Fortaleza, já contava 14 anos de idade e queria me ver livre das histórias "superficiais" (leia-se "de fácil digestão") que eu colecionava na minha prateleira.

Não sei se Travessuras da menina má (Travesuras de la ninã mala, 2006) atendeu perfeitamente essa exigência, porque, de certo modo, a história é escrita em moldes de best-seller e parece ser o romance menos profundo do autor. No entanto – e que isso fique bem claro – o livro é extremamente envolvente. Gostei muitíssimo de tê-lo lido.

Leia aqui a entrevista que o autor peruano Mario Vargas Llosa concedeu à Folha Online, na ocasião do lançamento do livro.

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Sinopse: O peruano Ricardo vê realizado, ainda jovem, o sonho que sempre alimentou – o de viver em Paris. O reencontro com um amor da adolescência o trará de volta à realidade. Lily – inconformista, aventureira e pragmática – o arrastará para fora do pequeno mundo de suas ambições. Ricardo e Lily – ela sempre mudando de nome e de marido – se reencontram várias vezes ao longo da vida, em diferentes cidades do mundo que foram cenários de momentos emblemáticos da História contemporânea.

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Ricardo Somocurcio, o protagonista da história, é um tradutor que trabalha para a Unesco, convertendo discursos e tratados de um idioma para outro. Acontece que na sua infância, ainda quando morava no bairro de Miraflores, no Peru, ele se apaixonou por uma misteriosa e sensual garota de nacionalidade incerta; desde esse fatídico encontro, jamais a esqueceu, mesmo depois de passados muitos anos. Ricardo se mudou para Paris – um sonho de criança – e parecia levar uma vida tranqüila e monótona de tradutor, até que reencontrou por acaso a tal garota – agora envolvida em uma violenta guerrilha comunista.

Esse é apenas o primeiro passo de uma jornada que iria durar décadas e décadas, para não dizer a vida toda dos dois, e irá transportar o leitor para vários países, em várias épocas diferentes – Inglaterra, França, Japão e Espanha, só para citar os principais. A Inglaterra dos hippies, a França conservadora – que se confunde com a personalidade de Ricardo –, o Japão dos mafiosos cruéis e a Espanha miscigenada são panos de fundo para essa história de amor nada convencional.

Se Dom Casmurro ficou cismado com os indícios de que Capitu o estava traindo, Ricardo Somocurcio parecia não se importar nem um pouco com o fato de sua amada estar dormindo com outros homens, por mais que tivesse certeza disso. Aliás, essa história de traição é algo que não importa em Travessuras da menina má, porque o fato é amplamente consumado por parte da protagonista. O próprio Llosa afirma que procurou fugir dos padrões que regem as histórias de amor tradicionais: "Queria fugir do lugar-comum", afirma. Assim, quando nos outros romances do gênero a traição possui um valor alto de tabu, aqui ela simplesmente é banal e corriqueira.

Edição originalEdição inglesaEdição portuguesa

Aliás, talvez nem possamos falar em "traição" propriamente dita. Ricardo e a Menina Má não eram cônjuges, sequer namorados no sentido usual do termo. E é esse o fio da meada do livro: enquanto ele, profundamente apaixonado por ela, ansiava por uma relação estável e tranqüila, ela, por sua vez, brincava com os sentimentos dele, vagando pelo mundo e casando-se com homens cuja posição social a beneficiaria. A história alterna momentos em que Ricardo fica sozinho em Paris, pensando na Menina Má, e momentos em que os dois se encontram, ou por obra do destino, ou deliberadamente – muitas vezes, deliberadamente.

É interessante ir acompanhando o desenvolvimento psicológico dos personagens – coisa que é mais bem trabalhada no caso da Menina Má – e é legal conhecer as amizades que tanto ela quanto Ricardo estabelecem ao longo de suas vidas, relações essas que, de um modo ou de outro, coadunam para que o casal-protagonista fique junto (como é o caso do Menino Sem Voz, responsável por uma das partes mais deliciosas do livro).

Assim como em Dom Casmurro, em Travessuras da menina má o autor teceu a trama de um jeito especial, de modo que fica no final uma dúvida no espírito do leitor. Se no primeiro o caso era "Traiu ou não traiu?", aqui a questão é "Amou ou não amou?" Há discussões acaloradas nas comunidades do Orkut, e uns leitores dizem que sim, que a Menina Má amou Ricardo à sua maneira excêntrica; enquanto outros dizem que não, que ela apenas brincou com o protagonista e que ele era um bobo em amá-la tão profundamente. E realmente é muito divertido ficar discutindo isso. É algo absolutamente comparável a Machado de Assis.

Pela rápida pesquisada que fiz na internet, vi que o livro tomou conta das livrarias brasileiras na época do seu lançamento, virando, inclusive, um best-seller por aqui. Não lembro disso (o que eu estaria fazendo na época?), mas de qualquer forma é interessante ver que um livro razoavelmente fora do circuito atraiu a atenção da massa. O sucesso de Travessuras da menina má é comparado ao de Caçador de pipas, e a vendagem do livro de Llosa, capaz de tirar qualquer editora da falência, foi a maior da companhia Objetiva.

Conclusão: muitíssimo recomendado.

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"Vou morrer", balbuciou, cravando as unhas no meu braço.

"Não vai morrer. Deixei que você fizesse comigo todas as canalhices do mundo, desde que éramos crianças, mas essa, de morrer, não. Isso eu proíbo."

Sorriu (…).

"Já era hora de me dizer alguma coisa bonita." (p. 183)