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25 dezembro 2016

A Revolução dos Bichos, de George Orwell

"Não está, pois, claro como água, camaradas, que todos os males da nossa existência têm origem na tirania dos humanos?"



Quem poderia imaginar que, mesmo setenta anos após seu lançamento, uma pequena fábula sobre a administração de uma fazenda pelos próprios animais que a habitam constituiria um dos principais argumentos contra a tirania de uma ditadura socialista? Certamente não os leitores ingleses contemporâneos de George Orwell, que acreditavam que A Revolução dos Bichos era apenas uma boba e tediosa história em que porcos, ovelhas, cavalos e patos falavam sobre a necessidade de se verem livres dos cruéis e inescrupulosos fazendeiros. Para a comunidade intelectual britânica da década de 1940 - e isso é o próprio Orwell quem diz -, este livro não passava de um lastimável desperdício de papel e tinta, dada a aparente infantilidade da trama. No entanto, pouco tempo foi necessário para que se descobrisse que essa fábula, que nada tem de tediosa e muito menos de boba, constitui um ensaio literário genial e muito preciso sobre quando as coisas começam a dar errado no socialismo.


E quando essa crítica vem de um escritor e jornalista como George Orwell, que se inclinava com simpatia para o socialismo de Karl Marx, o livro só pode se tornar uma coisa mais interessante ainda. 

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Sinopse: O sonho de um velho porco de criar uma granja governada por animais, sem a exploração dos homens, concretiza-se com uma revolução. Mas, como geralmente acontece com as revoluções, a dos bichos também desemboca para uma tirania, com a ascensão de uma nova casta ao poder. Neste conto feito sob medida para a Revolução Russa, “todos os animais são iguais, mas uns são mais iguais do que os outros”.

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Qualquer leitor atento aos detalhes históricos emulados em A Revolução dos Bichos perceberá que a genialidade da obra consiste precisamente em ilustrar, da forma mais simples e objetiva possível, todo o percurso que uma ditadura socialista trilha desde sua gênese até seu declínio, sem que para isso o autor tenha precisado recorrer a uma trama política complexa que enfastie o leitor. Talvez por isso mesmo o livro tenha se tornado tão célebre e tão poderoso, já na década de seu lançamento: porque desenha, com traços que beiram o didático, algo que escapa à compreensão da maioria das pessoas. E esse desenho, simples em sua forma mas extremamente profundo em seu conteúdo, foi a maneira que Orwell encontrou para desmitificar ao mundo ocidental a experiência soviética com o socialismo.

O autor, que costumava se mostrar sóbrio em seus posicionamentos políticos e ideológicos, disse a certa altura (e esta afirmação está registrada no posfácio da edição da Companhia das Letras) que "A destruição do mito da URSS é essencial para conseguirmos reviver o movimento socialista". Isto explica porque uma pessoa como Orwell, declaradamente pró-socialismo, escreveu uma obra tão carregada de críticas ásperas a esse movimento político-ideológico: era necessário dizer ao mundo que Stálin não pôs em prática o socialismo com que todos os seguidores de Marx sonhavam; pelo contrário, que o Ocidente soubesse que o ditador russo transformou aquele país em uma oprimida sociedade cega pelo trabalho e pela obediência ao líder. Que George Orwell tenha encontrado em uma fazenda e nos animais que a habitam uma maneira de escrever uma história que atingisse esse objetivo, isso só pode ser explicado pelo talento brilhante que ele tinha como jornalista e escritor.




Depois de enfrentar certa resistência por parte de editoras que não queriam publicar o livro porque o consideravam atrevido e perigoso demais (uma editora norte-americana chegou a dar a desculpa de que na América não havia lugar para histórias com animais, em pleno apogeu de Walt Disney, e sabe-se lá porque uma editora norte-americana não queria a publicação de um livro anticomunista para a década de 1950), finalmente A Revolução dos Bichos encontrou o público e ganhou, aos poucos, o espaço destinado aos grandes clássicos da literatura. (Mais tarde, inclusive, a CIA utilizou a obra como propaganda contra o comunismo, chegando ao ponto de criar uma animação para resumir a história e transmiti-la na televisão.)

É curioso notar como as figuras que povoam a fazenda são rapidamente associadas a estereótipos indispensáveis para a compreensão de um sistema socialista totalitarista: Napoleão, o enorme porco que comanda a fazenda, é o ditador irredutível que faz ser cultuada a própria imagem e usa de estratagemas os mais deploráveis para manipular a massa alienada que está a seu serviço; Bola-de-Neve, também porco, representa o líder guerrilheiro carismático que ajudou a pôr a revolução em prática e que, mais tarde, acaba sofrendo golpes estratégicos dos próprios camaradas; Garganta, o porta-voz do governo, é o encarregado de dourar a pílula amarga nos tempos difíceis, ludibriando a população ao apresentar gráficos e tabelas falsos que mostram o quanto a granja está progredindo, apesar de tudo; Sansão, o cavalo proletário que não vê alternativa senão dedicar-se de corpo e alma ao trabalho exaustivo nas lavouras, conferindo total respeito e obediência ao líder; os próprios seres humanos, que são a encarnação mesma do capitalismo, a serem evitados a qualquer custo pelos animais... e assim por diante. 

Encarregado de transmitir às pessoas a ideia de que um sistema socialista pode ser uma péssima ideia se for mal executado, A Revolução dos Bichos descreve com uma habilidade indiscutível o quadro sinistro que pode surgir quando a sede pelo poder e pelos privilégios sobe à cabeça dos responsáveis por uma revolução que prometia igualdade, liberdade e abundância de recursos. Através da história destes animais, George Orwell nos mostra que uma sociedade pode derrubar um sistema que permite que uma elite enriqueça às custas do povo e, em seu lugar, instaurar um sistema que dá margem ao mesmo tipo de exploração, mas com uma aparência e um discurso ideológico diferente.