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24 maio 2021

O afinador de piano, de Daniel Mason




O afinador de piano (The piano tuner, 2002) foi um verdadeiro achado para mim. Uma dessas experiências de leitura que são puro deleite. Geralmente os leitores reconhecem esses livros especiais antes mesmo de passar das 30 primeiras páginas.

Eu já conhecia o autor através de Um país distante (A far country, 2006), que li há muitos anos e do qual lembro pouquíssima coisa. Mas lembro que a prosa bem cuidada, poética, e o olhar sensível do protagonista para o mundo já estavam lá. Reencontrei esses elementos aqui sem grande surpresa, portanto. Isabel, de Um país distante, e Edgar Drake, de O afinador de piano, são quase duas faces da mesma moeda.

Daniel Mason gosta de escrever sobre figuras que se encontram deslocadas de seu lugar de origem porque toparam embarcar em uma jornada de corpo e alma com caráter de "missão" - algo que deve ser feito quase que por um chamado ético, e deve ser feito apenas por elas, porque diz respeito a elas e a mais ninguém. Assim Isabel foi atrás do irmão na cidade grande, e assim Drake partiu para a Birmânia para afinar um piano no meio da selva. São destinos e objetivos que se revelam no final das contas muito maiores do que parecem à primeira vista, e esse sentido é construído no caminho, no deslocamento. E é por isso que, nos dois romances que li de Mason, a trajetória do herói se revela muito mais importante do que qualquer ponto de chegada.

Li pela internet a resenha de um leitor que, desapontado, disse ter achado ruim o fato de que Edgar Drake demore metade do romance para chegar até o forte de Mae Lwin, onde deve cumprir a missão de afinar o piano de cauda Érard do Exército britânico, a pedido do major Anthony Carroll (nada disso é spoiler, a propósito). Me surpreendeu a falta de sensibilidade de alguém que não pôde perceber que a riqueza da história está justamente - como eu disse - na travessia, na jornada até esse objetivo final inusitado. Seria um descuido achar que um livro sobre um personagem do século XIX, que sai da Inglaterra para ir à Birmânia consertar um piano a pedido da Coroa, fosse eleger o mero destino final como o ponto mais valioso da trama inteira.

Ocorre que O afinador de piano é um livro de rara beleza. Embora tenha muita aventura e muita ação (se engana quem acha que não tem), a prosa do autor é quase meditativa, muito contemplativa. É uma escrita poética essencialmente visual, que convida o leitor a mergulhar de cabeça nas florestas birmanesas - sentir os cheiros do lugar, ouvir os sons, apreciar o exotismo da paisagem. Há quem ache esse estilo de escrita maçante, mas para mim foi um bálsamo. É um troço muito imersivo, não tem como negar. 

Daniel Mason escreveu este livro com 26 anos de idade, enquanto estava morando no lugar para onde seu protagonista viaja, mais de um século antes. Seu trabalho é um feito impressionante, considerando que estamos falando de um romance de estreia com um volume de pesquisa assombroso e uma história coerente e original. Há veteranos que não alcançam o que Mason alcançou aqui.

26 abril 2021

Auto-engano, de Eduardo Giannetti




A escrita de Eduardo Giannetti é clara e envolvente, talento que eu já havia constatado no seu ótimo Felicidade (2002) e no seu maravilhoso Trópicos utópicos (2016). Aqui, o autor se propõe a investigar ("por conta própria", como ele mesmo enfatiza no prefácio, um salvo-conduto que vem a calhar) um conceito aparentemente paradoxal no estudo da psicologia humana: o auto-engano, ou a ideia de que alguém, ou algum grupo, pode acreditar em uma coisa mesmo sabendo que essa coisa não corresponde à realidade.

A excelente introdução me induziu a acreditar que o tema seria tratado como deve: como fenômeno complexo em que estão envolvidas diversas variáveis de diferentes níveis de determinação do comportamento humano, sejam elas biológicas (filogenéticas), ontogenéticas (da vida de cada pessoa em particular) e culturais (das crenças e dos valores sociais que aprendemos a cultivar com os outros). Na introdução, Giannetti esclarece que o que chamamos de "engano" está presente não apenas na vida humana, mas na própria natureza, como aspecto central da luta pela sobrevivência e da reprodução das espécies. Obviamente, o ser humano é um ser social, porque capaz de linguagem, e isso adicionaria elementos novos ao problema do engano inter e intrapessoal. Até aqui, portanto, um olhar tão original quanto complexo sobre o tema. De quebra, imaginei, a reflexão sobre os processos concernentes ao auto-engano seria regada à boa atitude filosófica de que o autor é capaz.

Muito cedo, porém, Auto-engano (1997) começa a patinar. E patina até cair. Dois pecados capitais nos argumentos de Giannetti ficam logo evidentes para quem não é leigo no assunto: tratar subjetividade como sinônimo de mente (ou, o que é pior, de "vida interior psíquica" apartada do corpo) e confundir a ciência e o saber científico com os seus instrumentos tecnológicos. São dois erros fundamentais porque, infelizmente, o autor os repete à exaustão, o que leva ao abalo de toda a estrutura argumentativa do livro.

Se tivesse recorrido a leituras de psicologia comportamental enquanto escrevia, ou mesmo da psicogenética de Lev Vygotsky, Giannetti descobriria que é possível falar de subjetividade - do que nos torna sujeitos únicos dotados de história pessoal - como tudo aquilo que deriva de nossas experiências diretas ou indiretas com o ambiente ao nosso redor, a partir do que aprendemos a nos relacionar com o mundo, seja ele natural ou social, constituindo o que somos no momento presente. Subjetividade, por assim dizer, é todo o nosso repertório comportamental único, aprendido na vida, que sublinha nossa individualidade - e não uma instância mental autônoma situada no "interior" do ser humano. Inclusive, a noção de subjetividade como repertório comportamental aprendido no contato do sujeito com o seu ambiente único é uma das chaves para o conceito de autoconhecimento, sobre o qual o autor se debruça demoradamente em certo ponto.

No texto, o excesso de mentalismo (o entendimento de que um suposto mundo interior psíquico determinaria sobremaneira nossas condutas) descamba para os chavões da literatura de auto-ajuda: "palco da mente", "cada pessoa é protagonista de sua vida interior", "a vida de cada um é vivida de dentro", "cada um é autor de seu próprio enredo" etc. E a consequência desse tipo de pensamento, tão pouco científico quanto filosófico, é uma só, e ela não tarda a chegar: o autor diz que, assim sendo, a subjetividade não se presta de jeito nenhum a um estudo científico. Bem, felizmente há toda uma literatura especializada que o contradiz.

O mentalismo atravessa de forma tão contundente as ideias do livro que não é raro encontrar inferências curiosas como esta: "Nossas conclusões sobre nós mesmos, não importa quais sejam, são o produto de uma parte de nossa mente interagindo com outras partes dela por caminhos e de maneiras que pouco compreendemos." Ou seja, nossa avaliação de nós mesmos não vem do repertório verbal que nos é ensinado, nem dos padrões morais a que estamos submetidos: é uma luta entre partes hipotéticas de uma instância hipotética situada em lugar nenhum. Esse raciocínio solipsista, do sujeito soberano autodeterminado, ficou para trás no saber psicológico há muito tempo.

Mas o livro tem seus bons momentos, apesar de tudo. Principalmente quando Giannetti se propõe a fazer um inventário comentado das proposições filosóficas sobre o tema. O mesmo ponto forte havia sido notado por mim nas duas obras anteriores que mencionei no início. Ele sabe expor as ideias dos filósofos de modo claro e inspirador, com citações diretas e proposições próprias, e isso é vital no trabalho que ele se propõe a fazer. É pena, no entanto, que isso não sustente o edifício todo.