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08 agosto 2020

'Incidente em Antares', tão atual.

Às margens das 100.000 mortes de brasileiros vítimas de covid-19 neste 2020 histórico, cai como um raio na minha cabeça a lembrança de um livro do escritor que mais amo, Erico Verissimo. A lembrança veio de repente, deflagrada por algo que custei a discernir, e ainda estou me perguntando por que o romance não me ocorreu antes, já que motivos para isso não faltavam. 

Falo de um dos seus últimos livros publicados em vida, Incidente em Antares (1971): um realismo fantástico no melhor estilo latino-americano, daquela estirpe que mistura tudo de pitoresco e assombroso na mesma panela – como coisas caindo do céu sem explicação, tapetes voadores, doenças misteriosas, aparições e desaparições repentinas e, como não poderia deixar de ser, nossa trágica história militar ditatorial associada à opressão contra a vida de pessoas comuns que pulsam no contracontrole, arranjando um jeito de viver o dia-a-dia apesar das torturas – físicas e psicológicas – perpetradas pelo poder autoritário. A história do realismo fantástico na literatura da América do Sul é íntima da história das veias abertas do nosso continente; julgo até que este gênero sempre se alimenta destas veias, com tudo o que elas representam para a nossa identidade. 

Porque, como na ficção científica, no realismo fantástico não interessa o absurdo ou a imaginação por eles mesmos: interessa falar dos problemas que já nos massacram no agora, na mais palpável das realidades, e que são ilustrados, às vezes pela didática, às vezes pela ironia e pelo sarcasmo, com coisas que não existem – doenças absurdas do sono, chuvas torrenciais que duram anos seguidos ou pequenos animais que sugam a alma das pessoas e se escondem sob os travesseiros à noite. 


Incidente em Antares é a história da cidade fictícia de Antares, interior do Rio Grande do Sul, e de seus habitantes, pessoas comuns com as mais ordinárias das ocupações e dos prazeres. Mas a história do livro não tem nada de ordinária. Pulando o denso retrato histórico a que o livro se propõe, podemos dizer que ocorre o seguinte: sete pessoas muito conhecidas entre os habitantes de Antares morrem e, como os coveiros estão em greve, dada a péssima – ridícula, mesquinha, interesseira – administração pública, os defuntos eventualmente levantam dos seus esquifes e se recusam a ser sepultados de maneira tão vil, tão indigna, tão desumana, às pressas. 

Como um movimento político organizado, ainda que composto por pessoas muito diferentes entre si, os sete mortos de Antares saem do cemitério e começam a perambular pela cidade, perturbando o prefeito e as demais autoridades do município, e visitando parentes para lhes explicar que a situação política do país está em frangalhos – um apelo para que os vivos se deem conta do abuso de poder daqueles que não conseguem nem enterrar os cidadãos que os escolheram para governar. 

Pois é. A certa altura, alguém fala isto: “O progressismo repousa essencialmente sobre a morte. Os vivos são sempre e cada vez mais governados pelos mortos”. (Está grifado na minha edição, vejo agora não sem tomar um susto.) 

Há conservadores em Antares, incluindo os apadrinhados do prefeito e o próprio prefeito (um major do Exército), que se recusam a acreditar no óbvio: que os mortos estão vivos, estão protestando e estão trazendo à luz toda a podridão (moral) humana dos vivos. Há quem diga que se trate de uma mentira, de uma alucinação coletiva, e sugira mesmo que seja alguma coisa ligada a “esquerdistas” perturbadores da ordem republicana. Está no livro. 

Um dos aliados do prefeito, diante de uma comitiva de mortos e da escalada de vivos que protestam, diz para o seu cúmplice (uma frase que poderia estar no obituário do Brasil hoje): “Não há de ser nada, major. O grosso da população desta terra nos apoia”. 

Mesmo com a óbvia indicação de que alguma coisa deve ser feita imediatamente para resolver o problema, os “patrões”, informados da situação pelo prefeito incompetente, decidem não conceder o aumento do salário dos coveiros – “são problemas distintos”, dizem. E assim o caos se instala entre a iniciativa privada, a gestão pública e os cidadãos requerentes, sem que as duas primeiras consigam juntar esforços para solucionar um problema sanitário e obviamente ético. 

Por fim, no ápice do livro, há uma marcha dos mortos de Antares em direção ao grande coreto da praça do centro da cidade, acompanhados por parentes e demais populares, clamando pelos seus direitos de morrer em paz, com justiça e com responsabilidade. Agora gosto de imaginar, talvez assim como Eliane Brum, que metaforicamente 100.000 pessoas possam ter o direito de marchar em direção a Brasília pelos mesmos motivos, reivindicando as mesmas coisas com a ajuda dos vivos que restaram e que podem lutar por eles. Como é claro, Incidente em Antares é um livro crítico da ditadura militar brasileira, e não é por coincidência que possa ser um livro crítico ao Brasil de hoje.

05 maio 2020

Aventuras urbanas em sebos

Sebo O Geraldo, em Fortaleza-CE


Hoje pensei com saudade sobre esse hábito, comum entre alguns leitores, de perambular pela cidade à procura de sebos escondidos em pequenas ruas e travessas que mal aparecem nos mapas urbanos. E lembrei com nostalgia de garimpar nesses lugares, por entre amontoados de brochuras descolando e lombadas desbotadas, segurando o espirro, um livro bom o suficiente para fazer as férias da escola valerem a pena.

Rastrear e conhecer pequenos sebos espalhados pela cidade é uma experiência já comprometida, claro. Esse hábito entrou em declínio quando todos nós descobrimos que é muito mais fácil comprar um livro usado clicando algumas vezes o botão do mouse do nosso computador e recebendo, na porta de casa, alguns dias depois, um pacote com o livro dentro. A praticidade da internet suprimiu o esforço de ter de sair do conforto do nosso lar em direção ao ambiente incerto das livrarias físicas, onde podíamos não encontrar o que estávamos procurando.

E assim definharam e morreram aos poucos os sebos físicos; e, com eles, as histórias das peripécias de leitores e livreiros que se procuravam às tateadelas pelos labirintos da cidade, ignorando o fato de serem ignorados pelo movimento urbano caótico de todo dia. Esses sebos acabaram migrando para uma versão digital, todos reunidos em um catálogo só – funcionando à perfeição, diga-se de passagem – listados com a impessoalidade do mundo dos algoritmos. Ganhamos em praticidade e perdemos em experiência.

Daqui a um tempo, quem não viveu fisicamente o circuito dos sebos ou nunca experimentou a sensação de ficar encolhido entre três prateleiras enormes cheias de livros velhos cheirando a mofo, em uma casa antiga com piso de tacos soltos – uma experiência tão impressionante que era meio impossível não se perguntar “O que diabos eu estou procurando, mesmo?” ou “Será que o dono da casa esqueceu que eu estou aqui?” – não acreditará nas histórias que eu tenho para contar sobre livreiros tão antigos quanto os próprios livros usados, livros do século XIX guardados em cofres de metal com aqueles botões de senha que você tem que rodar para abrir, sebos inusitados – um deles incluía o banheiro de uma casa, e, sim, eu tive que procurar D. H. Lawrence dentro de um box de chuveiro e Michael Crichton debaixo de uma pia –, sebos suspeitos – já fui advertido por um livreiro idoso que não queria que eu entrasse por uma porta do segundo andar da sua casa, sob o risco de ter de ver “coisas desagradáveis lá dentro” – e idas ao Centro à procura de revender meus Erico Verissimo – Incidente em Antares e Noite, lembro ainda quais eram –, barganhando com um homem que fumava um charuto provavelmente falsificado e que me dizia, entre uma baforada e outra, que a leitura seria a minha ruína, porque era a ruína de todos os acadêmicos – sábio vendedor de livros, conhecia a causa, alertou um adolescente para o perigo que estava por vir, e eu não lhe dei ouvidos.

Atualmente, isso já parece inacreditável mesmo para mim. Quem dirá que um dia existiu aventura no simples fato de comprar um livro? Mapas imprecisos que eu fazia à mão – nada de GPS, sequer existiam –, ônibus cheios de personagens atípicos, pessoas estranhas, becos sem saída, ruas sem fim, estabelecimentos escondidos, portas para além das quais eu não sabia o que esperar. Se eu tivesse desaparecido naquela época de peregrinação literária, ninguém poderia se dar por surpreso. Mas se envolvia aventura, a ida aos sebos envolvia também drama, às vezes tragédia e comédia urbana, e às vezes – muitas vezes – as histórias eram bem serenas, um peixe beliscando a superfície de um lago sob o sol do verão.

Um dos últimos sebos que visitei foi com o intuito de presentear um amigo com um livro que já estava fora de circulação. Peguei um ônibus e desci vinte minutos depois em uma rua curta e vazia cercada por altas antenas de rádio e televisão, em um bairro de Fortaleza conhecido justamente por elas. O sebo era uma casa de aspecto colonial ampla, arejada; de manhã o sol batia de frente, bem na varanda da entrada, onde um gato dormia entre vasos de taiobas. O som da campainha parecia ter atravessado a história dos séculos. Entrei, a própria livreira me recebeu: uma mulher idosa, grande, imponente e muito simpática. Diferentemente das outras vezes, em outros lugares, nesse dia eu achei com uma rapidez impressionante o livro que eu estava procurando – achei o livro antes mesmo de a dona me dizer onde ele estava.

O recibo eu guardo até hoje, talvez como lembrança daquele dia. Quando paguei, a mulher me olhou com cuidado e perguntou se eu queria um café com torradas. Sentamos na varanda, a uma mesinha velha de madeira que ficava na sombra, e ela começou a fazer carinho no gato e a me contar do problema de ter de lidar com o computador para cadastrar no site dos sebos virtuais aquela montanha colossal de livros que ela tinha em casa – cadastrar um por um –, uma casa que leitor nenhum visitava mais porque os grandes conglomerados praticavam preços que anulavam completamente a concorrência. Assim, seria impossível se livrar de todos aqueles livros antes de se mudar para a casa dos filhos, coisa que ela planejava; e nem ela esperava que fosse vender todos, aliás, por isso já estava dando alguns. Depois ela falou do marido falecido com toda a serenidade do mundo, o que me pareceu muito bonito, e de como ele lia muito, e que na verdade a maioria daqueles livros era dele, principalmente os do Carl Sagan, que ele adorava. Falou do filho engenheiro e da filha dentista. Falou da época em que ela lecionava em uma escola normal. Falou das colegas professoras dela na escola e dos livros que eram proibidos para as moças naquela época (dentre eles, ‘Caminhos cruzados’, de Erico Verissimo, um dos meus livros favoritos de sempre, o que depois deu início a um novo galho da nossa conversa) e falou também da música que os bons livros tocam sem que a gente perceba.

Bebi café como nunca, saí de lá muito depois da hora do almoço, e antes mesmo de pegar o ônibus de volta eu já tinha a certeza de que um episódio como aquele nunca mais ia acontecer de novo.


13 dezembro 2011

Solo de clarineta (vol. I), de Erico Verissimo

"Carrego sempre comigo uma boa provisão do sal da malícia e da dúvida para temperar muitas das coisas que digo, escrevo, penso ou faço." (p. 292)

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Dois anos antes de falecer, Erico Verissimo achou viável começar a redigir as suas memórias. Sentou-se na frente da sua máquina de datilografar, velha companheira, e iniciou o que viria a ser o primeiro volume da obra Solo de clarineta (1973), destinado a contar desde os primeiros passos (literalmente, primeiros passos) do pequeno Erico até a rotina de seu posto no Departamento de Assuntos Culturais da União Pan-Americana, quando o novelista brasileiro já gozava de largo prestígio internacional.

No meu caso, a leitura desse livro veio do desejo de entrar mais uma vez em contato com o autor. Fazia já muito tempo desde que eu lera Noite, e, tendo Erico como um dos meus autores favoritos (senão o favorito), decidi partir para a leitura de uma nova obra sua. Depois de ter lido praticamente toda a sua ficção, optei pelas memórias. Nunca fui um grande fã de auto-biografias, mas, no caso de Erico Verissimo, tive a certeza de que valia a pena conferir.


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Casa em que Erico Verissimo morou, em Cruz Alta


Há alguns anos, um dos seus parentes mais próximos (não me lembro quem) disse que era curiosa a sensação de ler um livro de Erico Verissimo, porque ele escrevia exatamente da mesma forma que falava. Não duvido disso nem um pouco. Em todos os seus romances, a maneira de contar a história é precisamente igual, nesse tom de escrita falada, cadenciada, típica das conversações. Essa é uma das características do autor que eu mais gosto, e ela pode ser encontrada também no seu livro de memórias. Há um leve tom de descompromisso nos seus escritos, como se escrever fosse apenas o meio pelo qual a história propriamente dita passasse a existir. Aqui, a sensação de que autor e leitor estão conversando é imensa e não passa despercebida por ninguém.

Nessa obra, Erico expõe toda a sua intimidade, revelando seus laços com os pais, o irmão, os tios e até mesmo com as namoradas de sua adolescência, sempre passageiras e genéricas. Sem dúvida, um dos pontos fortes de Solo de clarineta é o estudo que o próprio autor faz da figura de seu pai, Sebastião Verissimo, pelo qual ele sentia um misto de fascinação, respeito e até desprezo (sentimentos paradoxos, como o próprio Erico admite). Seu pai é uma figura tão presente no livro que, mesmo nas partes em que ele não está, o autor trata de trazê-lo à tona.


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Erico com seus dois filhos, Clarissa e Luis Fernando


Paralelamente ao estudo que Erico faz de sua relação com seus familiares, é tecida também toda a sua formação de escritor, desde os primeiros contos, na adolescência, até a confecção de O tempo e o vento, obra máxima dele. Isso certamente vai deleitar muitos dos seus leitores. É interessantíssimo entrar em contato com o processo criativo do autor, descobrindo suas principais inspirações e dificuldades. Sem dúvida, este é outro ponto forte do relato.

Na minha opinião, as passagens mais curiosas e novelescas do livro vêm da experiência que Erico teve com as farmácias de sua família. A primeira, chefiada por seu pai, constituiu uma espécie de pano de fundo na sua infância; em diversas ocasiões ele narra episódios que aconteceram dentro dessa farmácia e que o impressionaram quando menino (incluindo o famoso episódio da metáfora da lâmpada). A segunda farmácia, fundada a partir do fracasso da primeira, foi inaugurada pelo próprio Erico, anos mais tarde, em sociedade com um amigo da família. Mais uma vez, o negócio fracassou.

E o livro segue esse embalo, narrando casos um tanto quanto dispersos, seguindo uma tênue seqüência cronológica – às vezes se detendo mais em um determinado contexto, à escolha do autor. Não é um defeito, evidentemente. É uma opção, uma maneira de contar a própria vida, destacando os elementos importantes e passando por cima dos menos relevantes.


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Sempre achei difícil resenhar uma auto-biografia. Deve ser porque não está em jogo a qualidade do livro, nem a sua "importância literária". Quem sou eu para dizer que um determinado livro de memórias é importante ou não para a literatura, como um todo? Em primeiro lugar, aliás, quem sou eu para dizer que um livro desses é de fato bom ou ruim, no puro sentido dos termos? Considero as memórias uma coisa muito pessoal de cada autor, e, se ele resolveu publicá-las, é porque julga que elas terão alguma importância para os seus leitores. É o caso de Solo de clarineta.

O próprio Erico diz: "Não esperem que estas memórias formem um documento histórico. Elas não têm a intenção de fazer nenhum perfil de minha época ou dos meus contemporâneos. É antes um livro sincero, que dedico especialmente àqueles que me têm lido durante todos esses anos." Eu, que o tenho lido durante todos esses anos, achei o livro muitíssimo interessante. Quem não é fascinado pelo autor e pelos seus romances (coisa difícil) pode ter uma opinião diferente. Mas o fato é que eu recomendo Solo de clarineta para quem quiser entrar de cabeça na vida de um dos mais importantes escritores brasileiros de todos os tempos.

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Para ler o curto prólogo do livro, clique aqui.


Solo de clarineta – vol. I (1973)

Erico Verissimo

334 páginas

Companhia das Letras

Nota: 10/10

20 março 2011

Do mundo de Erico Verissimo

Na falta do que postar aqui, e para não deixar o blog passar duas semanas sem atualizações, copio na íntegra um depoimento que prestei a uma amiga minha, no período em que ela estava fazendo um trabalho de mestrado sobre escolas públicas e Erico Verissimo.

Convidado a falar (ou melhor, escrever) tudo o que viesse à cabeça sobre o meu "primeiro contato" com esse escritor gaúcho, eu pus no papel as primeiras impressões que tive quando me deparei com seus livros, bem como o contexto no qual eu estava inserido quando li boa parte de sua obra.


O escritor em momentos de criação, em seu escritório. Foto: Leonid Streliaev


Para quem interessar, aí vai:

"Conheci Erico Verissimo numa época árida da minha vida afetiva e, talvez por isso mesmo, eu o tenho agora como escritor favorito de todos os tempos – aquele que me acompanhou na hora em que mais precisei de companhia. Lembro como se fosse ontem: eu passeava pelos corredores da minha livraria predileta quando entrevi, solto em uma prateleira de literatura nacional, o clássico Olhai os lírios do campo, na edição que a Companhia das Letras lançou em homenagem ao centenário do autor.

Nesse tempo, eu andava profundamente desolado pelo término de um namoro. Mergulhar na literatura foi o ópio e o remédio que eu encontrei não somente para afogar as mágoas de uma relação não-resolvida, mas para também viajar sem sair de cima da minha cama ou, por extensão, da minha poltrona, coisa que sempre gostei de fazer. Em tese, eu era capaz de ler qualquer coisa em qualquer estado de espírito, e se o estado de espírito fosse pior, tanto melhor era. Para grandes enfermidades, somente grandes soluções – os livros.

Quando adentrei no mundo de Eugênio, Eunice e Olívia – protagonistas da obra-prima de Erico – fiquei perplexo diante da veracidade do que estava escrito ali. Lembro bem disto: fiquei abismado, porque nunca havia visto um livro com tantas verdades escritas no mesmo lugar. Foi uma pura e total identificação de pensamentos, meus e os do Erico. Quanto mais lia Olhai os lírios do campo, mais forte ia ficando a sensação de que era o livro que me lia, e não o contrário.

O escritor em momento de descanso em seu escritório. Foto: Leonid Streliaev

Percebi como eram pequenos os meus problemas diante do mundo, e também que esses problemas faziam parte do mundo, do mundo gigantesco e complexo das incompreensões humanas. O problema não-resolvido que eu tinha com a minha ex-namorada era somente uma parcela diminuta desse mundo, uma parte que, aos poucos, começou a diminuir até ficar esquecida. Todos os dilemas de Eugênio, todas as reflexões humanísticas de Olívia, tudo, tudo era assimilado por mim como se fizesse parte natural do mundo; como se as frases do livro fossem axiomas, e não apenas frases.

Li os romances de Erico Verissimo em rápida sucessão, e, quanto mais lia os livros desse escritor gaúcho, mais gostava dele – não só como excelente autor de novelas, mas também como a pessoa modesta e exemplar que ele era. Então fiquei totalmente fascinado pelas suas obras. Nunca vi noutro lugar uma gama de sensações humanas tão bem retratada como em Um lugar ao sol, por exemplo. Li o Ciclo dos Romances Urbanos fora de ordem e de maneira esparsa, mas, ainda assim, eu acho que essa foi a mais bela trilogia urbana escrita na literatura mundial. Engraçado: sempre que falo de Erico, o faço em escala mundial, porque para mim ele é medido em termos globais, e não meramente nacionais, tampouco regionais, como ele gostava de fazer referência a si próprio: “Sou o melhor escritor da minha rua”, dizia, sem falsa modéstia.

Curioso: lembro também que, depois de terminar a leitura de todos os seus livros – ou, pelo menos, da grande maioria deles – eu fiquei com raiva do escritor. Fiquei aborrecido porque julgava, então, que eu jamais encontraria outro autor de cujos livros gostasse tanto.

Erico pousando para as lentes de Leonid Streliaev

Em suma, foi devorando os romances desse grandessíssimo escritor que conheci uma outra faceta da vida – a face maior, pode-se dizer, a mais pungente – que é o lado pitoresco e ao mesmo tempo ofensivo do cotidiano. A realidade nua e crua (se bem que Erico tem a habilidade de diluir tudo numa linguagem floreada) saiu das páginas dos seus livros e como que caiu aos meus pés. A hipocrisia veio à tona. A falha no plano das relações humanas. O abismo social. O ritmo frenético de atividades do dia-a-dia que suplanta o amor entre os seres…

De tudo isso eu já tinha conhecimento, naturalmente, mas foi somente ao vê-lo refletido nas obras do autor que eu pude enfim perceber o poder da literatura – e, em particular, o poder da literatura nacional."

03 maio 2010

Vale a pena ler de novo: Música ao longe, de Erico Verissimo

“No fundo de todas as coisas só existe esta verdade triste: Nós vivemos em solidão.” (p. 33)

Música ao longe Erico Verissimo

Recentemente eu reli o romance Caminhos cruzados (1934) – que faz parte do ciclo de romances urbanos de Erico Verissimo – mas, infelizmente, não comentei a releitura aqui no blog porque eu ainda não havia criado o quadro do Vale a Pena Ler de Novo.

No entanto, agora que ele foi criado, e agora que acabei de reler Música ao longe (1934), eu aproveito esse espaço para comentar as minhas impressões sobre esse livro maravilhoso, que compõe uma das mais belas sagas da literatura: o ciclo de romances urbanos protagonizados por Clarissa e Vasco.

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Não é só Música ao longe que merece ser relido. Na verdade, toda a obra de Erico o merece, e eu digo isso sem o risco de parecer exagerado, bajulador ou as duas coisas juntas. Alguém já disse que Ulisses (1922), de James Joyce, é um livro interessante porque, se você o reler a cada cinco anos (haja fôlego!), terá sempre uma visão diferente da história, de acordo com a sua maturidade.

É isso o que ocorre com o ciclo dos romances urbanos de Erico Verissimo, composto por Clarissa (1933), Caminhos cruzados (1934), Música ao longe (1934), Um lugar ao sol (1936), Olhai os lírios do campo (1938) e Saga (1940). Como esses livros são praticamente concebidos como uma história única, cujos personagens estão sempre interagindo, e como ela é perpassada por ideais humanitários muito fortes, isso significa que, se você reler esses seis livros de vez em quando (tarefa não muito difícil), terá sempre uma visão diferente deles.

Para começo de história, eu reli Música ao longe meio que acidentalmente. Eu tinha uma edição muito antiga desse livro e, como toda a minha coleção dos livros do Erico pertence às recentes edições da Companhia das Letras, achei conveniente adquirir Música ao longe também dessa safra nova. Resultado: comprei o livro de novo e, para todos os efeitos, reli-o. (Guardei a edição antiga.)

Devo confessar que a sensação de lê-lo foi, outra vez, empolgante. Não foi psiquicamente muito diferente da primeira vez, porque faz pouco tempo desde lá, mas é verdade que eu já agora o vejo sob um outro olhar. Música ao longe tem um plano narrativo aparentemente simples, mas ao mesmo tempo (não sei como, talvez devido à escrita do autor) é uma obra grandiosa, reflexiva, capaz de mover uma multidão intelectual. Afeta os inteligentes, comove os sensíveis, empolga os críticos da sociedade.

Sim, porque além de nos embalar com uma história sensível e poética, em que a menina Clarissa agora é professora na cidadezinha provinciana de Jacarecanga, e assiste à decadência da família ao mesmo tempo em que vê se avolumar uma espécie de paixão pelo primo Vasco – além de nos mostrar essa cativante história –, a trama tece comentários sobre as tendências da sociedade, as sutilezas dos planos sociais rígidos e a mobilidade (muitas vezes negativa) das elites locais.

Vale lembrar também que as personagens do livro são todas muito contemporâneas, principalmente o rapaz Vasco, subversivo e áspero para com os mais velhos. Isso confere à obra (não só com relação a Música ao longe, mas a todas as demais do ciclo) um caráter atemporal mesmo, capaz de lançar luzes às pessoas de qualquer idade, de qualquer lugar, de qualquer época. Acho meio impossível alguém ler um livro de Erico Verissimo e sair indiferente.

A obra deste escritor gaúcho é uma leitura altamente recomendada, de preferência na ordem cronológica do ciclo dos romances urbanos.

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“O velho se levanta, aproxima-se da mesa e explica. Tirem os olhos ao homem: ele não vê mais o mundo. Tirem-lhe o olfato: ele não sentirá mais os cheiros do mundo. Vão lhe tirando todos os sentidos: o tato, o gosto… Que fica no fim? Nada. O homem não vê, não ouve, não sente cheiros, nem contatos, nem nada. Logo, o mundo não existe: é uma ilusão dos sentidos.” (p. 72)

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Como a partir de agora eu farei de tudo para colocar um vídeo relacionado com o conteúdo de cada post, segue-se abaixo um comercial feito pela televisão brasileira para comemorar o centenário do autor, em 2005.

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17 abril 2010

Do Diário de Sílvia, de Erico Verissimo

“Devemos ter a coragem de examinar de quando em quando a coleção de faces que não usamos em público.” (p. 44)

Do Diário de Sílvia Erico Verissimo

Durante a tarde modorrenta de hoje (chuvosa, silenciosa e fria, perfeita), eu finalizei a leitura do livro Do Diário de Sílvia (1962), parte integrante da saga O Tempo e o Vento. Assim como Ana Terra e Um Certo Capitão Rodrigo (dois outros volumes que fazem parte da saga), Do Diário de Sílvia foi editado em um pequeníssimo volume (de 100 páginas) e vendido como história à parte.

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Sinopse: Em Do Diário de Sílvia, uma professora de 25 anos passa a limpo sua vida, o casamento em ruínas, o amor pelo cunhado e a perda paulatina da fé.

O exército de Hitler invade a França. No Brasil, Getulio Vargas faz um discurso pró-Eixo. Enquanto isso, na pequena cidade de Santa Fé, Sílvia vê desmoronar seu casamento com Jango Cambará, um fazendeiro rude e pouco carinhoso. Ela se casou sem amor e agora, em sua vida de casada, "fala e se movimenta sem convicção". Como tudo foi dar tão errado?

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Eu costumo dizer que O Diário de Anne Frank é um ótimo livro (como documento histórico, então, nem se fala), mas ele pode parecer enfadonho para alguns leitores porque, sobretudo, não há um enredo que segue uma determinada linha padronizada, clássica da literatura: apresentação dos personagens, apresentação do conflito, desenrolar do conflito, clímax e desfecho. A evidente ausência desses elementos ocorre porque, como todo diário pessoal, as notas do confidente não passam disso: notas de confidente.

Do Diário de Sílvia apresenta esse mesmo… defeito? Não, claro que não; isso não é um defeito. O problema é que, como o livro é vendido independentemente da saga O Tempo e o Vento, o leitor espera encontrar nele algo que tenha aquilo que eu disse antes, e que os diários de fato não possuem: começo, meio e fim bem definidos. Ou seja, esperam encontrar uma história.

Há ainda outra coisa importante: embora eu não tenha lido O Tempo e o Vento inteiro, sei que Do Diário de Sílvia é uma espécie de transição de uma determinada parte para outra parte. Em outras palavras, é através do diário da senhorita Sílvia que o leitor da trilogia fica sabendo o que aconteceu com personagens que surgiram antes (como é o caso de Maria Valéria, Toríbio Cambará, Arão Stein, e outros).

Em suma, não acho que a Cia. das Letras deveria vender esse livro isoladamente, porque é necessária a leitura de boa parte da saga para aproveitar a leitura deste.

No mais, como não poderia deixar de ser aqui, tudo o que Erico Verissimo escreveu é digno de nota. Tudo o que ele escreveu é belo, universal e faz as pessoas refletirem. Não é à toa que o tenho na mais alta conta: depois de ler livros como Caminhos Cruzados e Um Lugar ao Sol, percebi que tudo o que a literatura brasileira tem de mais belo está ali – ali naquele autor.

No caso de Do Diário de Sílvia, nosso Erico Verissimo dá uma de Liev Tolstoi e encarna um personagem feminino. O resultado: já vi mulheres comentando em sites como o Skoob que muitos sentimentos profundos do universo delas está contido ali no livro. Quem sou eu para dizer o contrário?

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“A solidão e o tédio são as duas mais graves doenças de nossa época. Podem levar o homem ao desespero e ao suicídio. (Quem foi mesmo que escreveu que é o tédio que leva as nações à guerra?) São enfermidades do espírito a que estão sujeitas principalmente as pessoas sem fé. Porque não pode sentir-se só quem conta com Deus, a mais poderosa e confortadora presença do Universo. Não pode sucumbir ao tédio quem sabe apreciar em toda a sua beleza, riqueza e mistério o mundo e a vida que o Criador lhe deu.” (p. 71)

P.S.: não sou religioso.

14 março 2010

5 livros que eu li em 2009 e que você gostará de ler em 2010

Sei que já é meio tarde para eu escrever um tópico desse tipo, mas, mesmo assim, na falta do que postar aqui, vou listar a seguir 5 livros que li em 2009 e que recomendo sem ressalvas para serem lidos em 2010 – ou em qualquer outro ano, obviamente. São livros que me fizeram passar a noite acordado, lendo com avidez, e que, mesmo depois de terminados, ficaram ecoando pela minha cabeça durante muitos dias. Um livro assim precisa ser recomendado, não é mesmo?

Então, vamos lá. Vale ressaltar que a lista não segue uma ordem de preferência. (Odeio listar coisas por ordem de preferência, principalmente livros.)

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   Um Lugar ao Sol Erico Verissimo

1) Um Lugar ao Sol, de Erico VerissimoNaturalmente, meu escritor favorito não poderia deixar de figurar aqui. Tenho vontade de indicar mais de um livro seu nesta lista, mas, como isso soaria algo parcial demais, vou me conter. Portanto, indico somente este, que ainda é o meu preferido.

Um Lugar ao Sol dá prosseguimento à história iniciada em Clarissa e Caminhos Cruzados, mas, mesmo assim, não é necessário estar a par das obras anteriores para poder ler a obra presente, tamanha é a independência entre elas.

No romance em questão, temos uma trupe de personagens jovens lutando pela sobrevivência financeira na árdua Porto Alegre da década de 30: os primos Vasco e Clarissa, que vieram da pequena cidade interiorana de Jacarecanga; o casal Fernanda e Noel, espécie de Romeu e Julieta moderno; e mais uma miríade de personagens secundários ricamente elaborados, cujas tramas se entrelaçam ao longo do texto, que toma um rumo surpreendente.

Um Lugar ao Sol é o mais belo romance nacional que eu já li. E, por que não dizer, um dos mais belos do mundo.

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Jurassic Park Michael Crichton

2) Jurassic Park, de Michael Crichton – Na verdade, li esse livro pela primeira vez há muito tempo, quando criança ainda, mas reli-o oficialmente no ano passado, com uma mente muito mais amadurecida. Como todos sabem, a idéia central da história gira em torno da (trágica) visita de alguns cientistas à sombria Ilha Nublar, que é um território particular situado no litoral da Costa Rica, onde um ambicioso empresário recria dinossauros com a ajuda da tecnologia de manipulação genética e onde, futuramente, ele pensa em abrir um parque temático.

Longe de ser um enredo absurdo, Jurassic Park trata com assustadora verossimilhança uma idéia que, nos dias de hoje, ganha proporções cada vez mais factíveis. Este tecno-thriller é indispensável para os fãs de aventura e tecnologia.

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Kafka à Beira-mar Haruki Murakami

3) Kafka à Beira-mar, de Haruki MurakamiSegundo livro que li do japonês Murakami; fascinou-me totalmente, a ponto de eu virar uma noite lendo capítulo depois de capítulo, acompanhado por minha indefectível xícara de café. A história, originalíssima (embora inspirada livremente em uma peça de Sófocles, Édipo Rei), é contada através de uma narrativa elegante e precisa, além de poética, marca registrada do autor.

No romance, conhecemos Kafka Tamura, um menino de 15 anos que foge da casa do pai para trilhar os caminhos do mundo, em busca da mãe e da irmã, que o abandonaram ainda na infância. Na sua viagem, ele chega até uma biblioteca misteriosa que revelará, aos poucos, a sua identidade. A jornada do jovem Tamura encontrar-se-á inevitavelmente com a de Nakata, um homem idoso que adquiriu poderes sobrenaturais depois de um estranho acidente na infância.

Kafka à Beira-mar é um livro altamente recomendável, sem dúvida, para os amantes da literatura de qualidade.

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Os Aparados Leticia Wierzchowski

4) Os Aparados, de Leticia Wierzchowski – Ainda é de se admirar que tenhamos aqui nesta lista dois escritores nacionais, uma vez que até o ano retrasado eu considerava os autores brasileiros maçantes, por parecerem pretensiosos demais com os seus livros. Triste engano: alguns escritores do Brasil merecem ser levados muito, muito a sério.

Neste romance original (e quase profético, levando-se em conta as notícias dos últimos tempos), Wierzchowski narra a história de Marcus e sua neta, Débora, durante os primeiros meses que antecedem um fim de mundo paulatino. Enquanto cidades são submergidas pelas águas do mar e pessoas morrem ou desaparecem, Marcus leva Débora para um refúgio particular construído sobre as serras gaúchas. Lá em cima, longe do núcleo das catástofres naturais, ambos terão de rever a vida pessoal e lidar com questões afetivas difíceis e dramas familiares insistentes.

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Os Sobreviventes Piers Paul Read

5) Os Sobreviventes, de Piers Paul Read – Dotado de uma maestria poucas vezes vista no gênero romance não-ficcional (difundida pelo americano Truman Capote), Piers Paul Read narra em Os Sobreviventes a trágica história do time uruguaio de rugby que, em 1972, após fretar um avião que o levaria ao Chile, despencou em meio à Cordilheira dos Andes e por lá ficou 72 dias, antes de os sobreviventes serem resgatados.

Como numa bela ficção, Read mostra todo o contexto do acidente, a angústia dos familiares dos jovens jogadores de rugby e os esforços desesperados que fizeram para tentar resgatar a equipe o quanto antes das gélidas cordilheiras; tudo isso além de detalhar todos os 72 dias passados nas montanhas.

Outro livro altamente recomendável, sem dúvida.

14 fevereiro 2010

Fantoches e Outros Contos, de Erico Verissimo

“(…) Mário sentiu uma absurda revolta não contra si mesmo, por não ter fé, mas contra Deus, por não existir.” (p. 274)

Fantoches e outros contos Erico Verissimo

Hoje pela tarde eu finalizei a leitura da antologia Fantoches e Outros Contos (1972), uma coletânea peculiar de contos do brasileiro Erico Verissimo. É peculiar porque, convidado a reler seus textos de principiante para celebrar uma edição comemorativa do livro, o Erico de 66 anos de idade escreveu, à margem dos contos, pequenas e hilárias observações sobre o Erico contista da década de 30.

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Sinopse: Reconhecido como um dos clássicos brasileiros do século XX, Erico Verissimo estreou na literatura em 1932 com o volume de contos ‘Fantoches’. Décadas depois, fez apontamentos manuscritos e ilustrações à margem do texto, para a edição comemorativa do quadragésimo aniversário da publicação do livro. Nesses apontamentos, o escritor consagrado observa as narrativas do jovem principiante com olhar exigente, mas também com humor.

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Embriagado. Essa é a palavra que define muito bem o estado de espírito com que saio de uma leitura de Erico Verissimo. O escritor gaúcho consegue me envolver (tanto com as suas estórias quanto com o seu estilo de escrita) de uma maneira tão forte, tão plena, que eu acho difícil encontrar um outro escritor com que possa me identificar tão bem.

Considero Fantoches e Outros Contos simplesmente indispensável para os fãs de Erico. Contudo, não o aconselho aos que estão começando a ler a obra dele agora. Para ler a primeira parte de Fantoches e Outros Contos, acho que o leitor já deve estar adaptado há muito tempo ao universo do autor.

Essa primeira parte do livro (“Fantoches”) tem um valor evidentemente mais histórico que literário, embora lá haja algumas histórias interessantes. Encontramos nessas primeiras páginas um Erico ainda imerso em clichês, mas que procura, a todo custo, livrar-se deles, coisa que consegue com sucesso anos mais tarde. Achei muito interessantes os textos em que, no desenrolar da trama, as personagens se rebelam contra o autor da história. O ápice deste tipo de enredo está na peça “Criador versus Criatura”.

Aliás, uma coisa interessante de se notar é a profusão de textos escritos em forma de peça, forma esta com que o autor nunca simpatizou de todo. No mais, em resumo, “Fantoches” é uma boa experiência que fez com que Erico alçasse vôos mais longos, anos mais tarde.

A segunda parte do livro (“Os Outros Contos”) mostra-nos um Erico Verissimo muito mais maduro do que no início, já totalmente dono de sua escrita e suas idéias. Esses contos eu já aconselho aos que estão começando a ler a obra do autor agora. Lá encontramos histórias muito sensíveis, humanas, poéticas e reflexivas. Adorei particularmente do conto “A Ponte”, cuja filosofia é bem parecida com aquela que cultivo desde pequeno.

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Abaixo, transcrevo um trecho que retrata essa filosofia.

“Não quero que o senhor imagine que sou um papa-hóstia – sorriu o rapaz – e que acredite, como mamãe, num Deus barbudo que distribui prêmios e castigos… Minha religião tem muito mais a ver com a Arte do que com a Igreja Católica. Acredito numa Inteligência Superior, numa força luminosa que governa o Universo… Pode ser meio obscuro, mas é o que penso ou, melhor, o que sinto. Creio na existência duma Entidade cuja definição e explicação escapam à lógica humana de causa e efeito… O que quero deixar claro é que não aceito a gratuidade da vida. Se aceitasse, acho que ficaria louco… ou me matava… ou ambas as coisas. O absurdo da vida é apenas aparente. Há nas pessoas e nas coisas uma beleza e uma verdade imanentes.” (p. 289)

10 janeiro 2010

Noite, de Erico Verissimo

Tudo isto pode ser apenas um sonho e ninguém nunca nos pede contas de que fazemos em sonhos.” (p. 107)

Noite Erico Verissimo

Hoje pela manhã, eu finalizei a leitura da novela brasileira Noite (1954), escrita pelo gaúcho Erico Verissimo e recentemente editada pela Cia. Das Letras, em uma derradeira homenagem ao centenário de nascimento do escritor.

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Sinopse: Na cidade grande, um homem a quem o autor chama de Desconhecido vagueia ao acaso envolto pela multidão apressada. Anoitece e a hora é de um calor sufocante. Ele não sabe quem é, onde vive, o que lhe sucedeu. Pode apenas sentir, e seu corpo lhe diz que está amedrontado. Em sua mente há uma tênue figura de mulher e o reflexo insistente de um fato terrível, mas nada mais consegue lembrar.

Um dúbio sentimento de culpa o atormenta, impelindo-o à fuga, sem que possa refrear-se. De súbito está na zona do cais, num café de baixa categoria, e duas criaturas equivocadas o abordam. Parecem adivinhar nele um irmão, insinuam mesmo que é o assassino procurado pela morte de uma mulher naquela tarde. Um estranho fascínio o domina e o Desconhecido se deixa arrastar noite a fora, aos lugares mais sórdidos, sem reagir.

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Noite é um tratado psicológico de grande naipe. A densidade do embaraço do protagonista, ao longo da trama, é digna de um estudo mais detalhado. No entanto, como eu havia acabado de sair de um Dan Brown (O Símbolo Perdido), não estava totalmente preparado para analisar psicologicamente um personagem, esmiuçando detalhes de sua personalidade.

E deve ter sido por esse motivo que a leitura, nas suas primeiras páginas, me pareceu desinteressante. Minha cabeça não estava voltada para as metáforas, para as analogias e alegorias. Os acontecimentos estavam sendo narrados de uma forma pouquíssimo convincente, beiravam o ilógico, eram de fato incongruentes, como se Erico estivesse escrevendo a primeira coisa que lhe viesse à mente. Nenhum fato da narrativa estava sendo explicado, e isso confunde o leitor, sendo preciso (no meu caso) uma gotinha de força de vontade para segurar o livro nas mãos.

Li as 50 primeiras páginas sem vontade. Isso é muito, se formos levar em conta que o livro possui 126 páginas. Porém, com o advento de novos fatos e novas revelações da trama, processou-se uma guinada muito boa e li as 76 folhas restantes num fôlego só. Algumas coisas começaram a ser explicadas, elucidadas, os diálogos foram ficando mais interessantes, tangíveis, e (mais importante) tudo foi sendo explicado aos poucos.

Posto na balança, Noite merece ser lido, sim, sem sombra de dúvida. Principalmente para quem é fã do autor.

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A propósito…

Noite provavelmente foi o último livro que li do escritor Erico Verissimo. Não porque me decepcionei com a leitura dessa novela, mas porque realmente o que me restou para ler de sua obra de fato não me interessa muito, incluindo os livros infantis e as biografias. Acho que já li o melhor que Erico tem a oferecer (desde o inicial Ciclo de Romances, que é simplesmente magnífico, até o ácido Incidente em Antares).

E é com grande saudade que me despeço desses livros (e desse autor), que regraram tão bem a minha adolescência.

Infelizmente, não me anima muito a perspectiva de ler o glorioso O Tempo e o Vento; o tipo de romance histórico lá retratado não me atrai, e, pelas rápidas folheadas que dei nos volumes, isso só se tornou mais claro. Sei que essa minha aversão à trilogia dói nos olhos dos outros fãs do gaúcho. Mas não tenho culpa… Eu até queria que O Tempo e o Vento me atraísse, porque aí eu teria um prato cheio de leitura, principalmente agora que a Cia. Das Letras lançou todos os volumes em um belo box…

Mas, pelo menos por enquanto, não tenho planos para lê-los.

29 dezembro 2009

O Prisioneiro, de Erico Verissimo

“No fundo, todos somos atores. Representamos vários papéis ao mesmo tempo. Uns mal, outros bem.” (p. 121)

O Prisioneiro Erico Verissimo

Hoje pela noite, depois de dar uma volta a pé pela cidade e voltar para casa com uma latinha de Pepsi na mão, eu finalizei a leitura da novela nacional O Prisioneiro (1967), escrita pelo romancista gaúcho Erico Verissimo durante a intervenção dos Estados Unidos da América na Guerra do Vietnã.

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Sinopse: Envolvido numa guerra fratricida em terra estrangeira, um tenente prestes a voltar a seu país presencia uma cena dramática: uma bomba destrói o bordel onde ele estava poucos momentos antes e mata a moça por quem se apaixonara. Um dos terroristas, capturado logo depois pelas forças aliadas, é um jovem de apenas dezenove anos cujas feições o remetem à amante morta. O coronel encarrega o oficial de interrogar o prisioneiro e descobrir o paradeiro de uma segunda bomba. Não há tempo a perder, e o tenente dispõe de duas horas para obter a verdade, por meios lícitos ou ilícitos de interrogatório.

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Como nos informa a sinopse da contracapa do livro, O Prisioneiro foi escrito para contestar e criticar a intervenção norte-americana na famosa guerra política (penso enquanto escrevo: Qual é a guerra que não é política?) do Vietnã, na qual o Vietnã do Norte (comunista) atacava violentamente o povo do Vietnã do Sul (capitalista), que se recusava a transformar-se em comunista após o conhecido plebiscito que obrigou o país a adotar a famosa Estrela Vermelha. Reconhecendo o perigo pelo qual seu sistema econômico passava, os EUA interviram na Guerra e tomaram partido do lado sulista.

O que está em jogo, percebe-se logo cedo, não é a vida dos milhares de civis e militares que estão entre o fogo cruzado, mas sim o destino do sistema político que seria adotado naquele país. Bombas de fabricação caseira são plantadas em hospitais, asilos, infantários e hotéis de luxo, e isso é interpretado pelos guerreiros apenas como uma espécie de sinal, como se o lado terrorista, autor desses atos macabros, simplesmente estivesse mostrando que possui mais poder.

Como ficção e entretenimento, O Prisioneiro é uma boa novela. Também elucida alguns detalhes e põe à mostra certas atrocidades que não podem ser esquecidas. Algumas passagens trazem à baila questões sobre o destino dos seres humanos em um mundo hostil, confuso e, em determinados momentos, acéfalo, burro.

No entanto, Erico Verissimo mexe em uma política delicada que, se analisada com certo levianismo, pode dar mal-entendidos. E foi isso o que aconteceu quando li O Prisioneiro; senti um certo desapontamento quando fechei o livro, lido em dois dias. Não é um desapontamento causado pela trama da história, nem pelo estilo de escrita do autor, e sim pelo ponto de vista que o escritor parece adotar e defender.

Fiquei com a desagradável sensação de que Erico Verissimo apoiou o lado comunista do Vietnã, que enfrentava os “brancos” norte-americanos com unhas e dentes para proteger o povo da sua terra contra os avanços do imperialismo estadunidense, mesmo que para isso se usasse meios nada decentes.

Só a título de ilustração: em certo momento da história, um guerrilheiro comunista é preso e interrogado por um sargento americano bruto e violento; o guerrilheiro é responsável pela implantação de uma bomba em um Bar/Café (que fez várias vítimas) e pela implantação de uma bomba cujo local ainda é ignorado. Ainda assim, mesmo com essa ficha criminal, Erico parece querer passar a mão sobre os cabelos do guerrilheiro e perdoá-lo, só porque ele “é um humano como todos nós.” Já o oficial norte-americano é narrado como um monstro. Não sei se isso encerra uma metáfora.

Mesmo assim, talvez Erico tenha querido transmitir a idéia de que somos todos humanos, sim, mas estamos inseridos nessa Engrenagem sistemática que nos disforma e suja. Mesmo assim: nenhum ato terrorista merece perdão, nem o de plantar bombas em bares nem o de ser violento para com um prisioneiro de guerra.

Por bem ou por mal… depois de ler este livro, cheguei à conclusão de que Erico Verissimo escreve melhor quando não toca em assuntos políticos delicados. A mensagem de O Prisioneiro para o leitor, por exemplo, é confusa.

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Talvez esta passagem da página 67 possa resolver tal questão que levantei acerca do lado que o autor apóia. (ou seja, nenhum)

É uma fala da professora, amiga do tenente:

“A idéia da existência de Deus não tem impedido que os homens, através de milênios, se tenham matado em guerras brutais. O importante, me parece, não é temer a Deus, mas amarem-se os homens uns aos outros… ou pelo menos não se odiarem tanto, a ponto de recorrerem à violência para resolverem problemas de coexistência.”

21 dezembro 2009

Incidente em Antares, de Erico Verissimo

"Há navios que andam por todos os mares da Terra, mas um dia encalham, enferrujam e se resignam a não continuar a viagem." (p. 164-5)

 Incidente em Antares Erico Verissimo

Ontem pela tarde, antes de trocar a água do aquário da Mila (meu peixe-espada), eu finalizei a leitura do romance nacional Incidente em Antares (1971), a última ficção escrita pelo gaúcho Erico Verissimo. Depois disso, o escritor apenas redigiu uma biografia (Um Certo Henrique Betarso) e as suas próprias memórias (Solo de Clarineta, Vol. 1 e 2), inacabadas.

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Sinopse: É 11 de dezembro de 1963. Há uma greve geral em Antares. O fornecimento de luz é interrompido, os telefones não funcionam mais, os coveiros encostam as pás. Dois dias depois, uma sexta-feira 13, sete pessoas morrem – entre elas, d. Quitéria, matriarca da cidadezinha.

Insepultos e indignados, os defuntos ganham vida e resolvem agir: querem ser enterrados. Reunidos no coreto principal da cidade, decidem empestear com sua podridão o ar da cidade. Enquanto ninguém os enterra, porém, resolvem acertar as contas com os vivos e passam a bisbilhotar e infernizar a vida dos familiares.

Como os personagens são cadáveres – livres, portanto, das pressões sociais – podem assim criticar violentamente a sociedade em que vivem e esfregar no rosto dos vivos todas as misérias humanas que os homens corruptos praticam.

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Confesso que, embora a sinopse supracitada sempre me parecesse interessante, não era a minha intenção ler este livro. Depois de me deliciar com todas aquelas aventuras humanas narradas no ciclo dos romances urbanos de Erico, Incidente em Antares – um romance político que critica a ditadura – me pareceu enfadonho e fora do círculo de coisas que eu chamo de empolgantes. Política nunca foi uma coisa que me chamou a atenção. A ditadura… muito menos.

Foi então que ganhei um cartão-presente da livraria que mais visito nos finais-de-semana. O valor do cartão era compatível com o valor do livro (edição de bolso, note-se bem). Pensei na possibilidade de adquiri-lo e finalmente decidi: Se eu não gostar do livro, pelo menos ele me saiu de graça.

Incidente em Antares é dividido em duas grandes partes. A primeira, “Antares”, narra os primordiais acontecimentos e circunstâncias que tornaram possível o surgimento da comunidade que dá nome à história. Nessa primeira parte é narrada toda a rivalidade que recai sobre as famílias Vacariano e Campolargo – a primeira, já fixada na região há muitas décadas, teve de enfrentar a segunda, que imigrou com pompa para Antares e pôs em risco a hegemonia vacariana. As duas famílias simplesmente se odeiam através de um ódio de morte, e isso gera pano de fundo para muitas situações engraçadas e, claro, terríveis assassinatos.

Até então, o livro é ótimo. Percebe-se que Erico não perdeu nunca a técnica do estilo que o consagrou na década de 30, e, embora entre o ciclo de romances e Incidente em Antares haja quase quarenta anos, as semelhanças entre as duas fases de sua obra são nítidas.

Entretanto, o momento enfadonho do livro começa cedo. Para ser mais preciso, eu diria que começa na página 46, capítulo 22. É aí que Erico Verissimo começa a traçar todo um panorama da vida política brasileira, desde a ascensão de Getúlio Vargas, passando pelos feitos de Juscelino até a tomada do poder por João Goulart. Embora haja uma trama ficcional por trás disso tudo – protagonizada por Tibério Vacariano –, a narrativa não me empolgou devidamente.

Pensei: Erico é Erico. Vou fazer um esforço.

Valeu a pena. Depois de algum tempo e várias páginas, a empolgação de novo bate à porta e o livro toma um rumo incrível, fantástico, em todos os sentidos desta última palavra. Naturalmente, como não é do feitio do Artigos Efêmeros (nem do meu feitio), não vou contar nenhuma revelação de enredo. Mas uma coisa é certa: o leitor volta a se empolgar com a narrativa antes mesmo da metade do livro. A segunda parte, “O Incidente”, é maravilhosamente ácida e cômica, sem nunca perder o bom-senso.

Quanto à crítica à ditadura… acho que não posso falar muita coisa a respeito. Não vivi naquela época. Não sei muito bem que tipo de coisas ocorriam naqueles tempos. Não posso saber se realmente eram tempos tão terríveis como dizem os mais velhos. Mas uma coisa é certa: é uma boa crítica, essa feita em Incidente em Antares.

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Abaixo, um dos muitos trechos interessantes de Incidente em Antares, que trata de forma metafórica o surgimento de uma mentira.

“Nasciam em Antares os boatos mais desencontrados. Ora, um boato é uma espécie de enjeitadinho que aparece à soleira duma porta, num canto de muro ou mesmo no meio duma rua ou duma calçada, ali abandonado não se sabe por quem; em suma, um recém-nascido de genitores ignorados. Um popular acha-o engraçadinho ou monstruoso, toma-o nos braços, nina-o, passa-o depois ao primeiro conhecido que encontra, o qual por sua vez entrega o inocente ao cuidado de outro ou outros, e assim o bastardinho vai sendo amamentado de seio em seio ou, melhor, de imaginação em imaginação, e em poucos minutos cresce, fica adulto – tão substancial e dramático é o leite da fantasia popular –, começa a caminhar com as próprias pernas, a falar com a própria voz e, perdida a inocência, a pensar com a própria cabeça desvairada, e há um momento em que se transforma num gigante, maior que os mais altos edifícios da cidade, causando temores e até pânico entre a população, apavorando até mesmo aquele que inadvertidamente o gerou.” (p. 127-8)

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edição:

VERISSIMO, Erico. Incidente em Antares. São Paulo: Cia. das Letras. (2006)

08 outubro 2009

Saga, de Erico Verissimo

"(...) Que fazemos todos nós, senão viver numa constante renúncia das coisas que mais amamos?" (p. 289)

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Hoje pela noite - depois de experimentar uma espécie de pimenta no jantar que só faltou pôr as minhas tripas para fora - eu finalizei a leitura do romance nacional Saga (1940), escrito pelo gaúcho Erico Lopes Verissimo durante o momento de eclosão da 2ª Guerra Mundial na Europa.

Saga é o livro que conclui o que o próprio autor denominou de Ciclo de Romances - que é o conjunto de seus seis romances urbanos ambientados em Porto Alegre, cujas histórias se entrelaçam, formando assim um tipo singular de trilogia.

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Sinopse: Nos campos de batalha da Guerra Civil Espanhola, Vasco Bruno presencia atrocidades de toda sorte. Quando volta a Porto Alegre, os horrores da batalha dão lugar às dificuldades cotidianas: em vez de fuzilamentos e bombardeios, os golpes baixos da sociedade burguesa. (...) Saga é um libelo humanista, um romance que denuncia a miséria social e ao mesmo tempo aponta uma luz de esperança em meio às nuvens escuras que chegam da Europa.

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Assim como aconteceu com os meus oito livros anteriores de Erico Verissimo, não me arrependi, de modo algum, de ter comprado este. Levei o único exemplar da livraria, quase que na impulsividade, mesmo lendo no prefácio que o autor considera Saga o seu pior romance (chamou-o inclusive de "monstro" e "medíocre"). Não me abalei com este julgamento e pensei: Um livro de Erico Verissimo falando sobre a guerra e sobre as torpezas do cotidiano não pode ser menos que interessante. Sem mais, irei levar.

E não me arrependi.

Posso dizer que o livro Saga (narrado em primeira pessoa por Vasco Bruno) é dividido em dois momentos muito distintos: o primeiro recebe o título de "O Círculo de Giz" e mostra as aventuras de Vasco durante a sua estada na Espanha, aventuras estas oriundas da sua decisão de entrar no exército da Brigada Internacional e lutar na Guerra Civil Espanhola; o segundo momento do livro intitula-se "O Destino Bate à Porta" e discorre sobre a volta de Vasco ao Brasil e a Porto Alegre, onde ele reencontra seus velhos amigos (Fernanda, Noel e a prima Clarissa) lutando pela sobrevivência cotidiana na cidade grande.

É interessante notar que todos os enredos dos romances anteriores de Erico convergem para este último: revemos Eugênio Fontes, de Olhai os Lírios do Campo; Chinita e Manuel Pedrosa, de Caminhos Cruzados; doutor Seixas, de Um Lugar ao Sol, e assim sucessivamente. Todas as tramas não-resolvidas dos livros anteriores têm a sua conclusão traçada em Saga. Só por isso, eu diria, o livro já vale a pena.

Apenas não entendi muito bem por que Erico Verissimo foi tão severo no seu julgamento quanto a este livro. É um romance absolutamente normal - ou melhor, "normal" em termos, porque o livro é maravilhoso, na minha opinião de fã. É um romance que pode muito bem ser acolhido com efusividade elogiosa pela crítica e pelo público. Por que então ser tão auto-crítico? Saga é um romance extraordinário! Não se deixem levar por comentários!

Como sempre, os personagens de Erico estão às voltas com questões existencialistas, sentindo-se deslocados em um mundo de tanta miséria moral e de tantas injustiças. Como conseqüência disso, temos diálogos belíssimos sobre viver uma vida justa e simples, sobre a doença mental da humanidade, sobre questionamentos de natureza ética e etc., sobre sonhos e amor ao próximo - isso tudo passando longe da pieguice, note-se bem. O autor é simplesmente especialista em diálogos, e, especialmente neste caso, nada deixa a desejar.

É com um prazer quase sobrenatural que eu leio essas passagens filosóficas de Erico. Chamo isso de "orgasmo literário". Por mais que o termo pareça chulo, não vejo outro que se aproxime mais do que se sente lendo essas páginas. O que dizer da conversa entre Vasco e o dr. Abel, em que este último explica por que o mundo está totalmente voltado para o consumismo imediato e frenético? O que dizer da filosofia maldita do dr. Seixas? Ou do altruísmo doloroso de Fernanda? Ou do mundo utópico de Noel? Nossa! São trechos que de fato tiram o fôlego de qualquer leitor apreciador da boa literatura.

Portanto, leiam Saga! É um livro excepcional, ainda mais se o leitor já tiver tido contato com os outros romances anteriores do Ciclo de Romances.

"Mais um do Erico Verissimo, heim?", disse-me Natália, minha amiga da universidade, ao ver debaixo de meu braço o volume Saga. "Qualquer dia desses você vai me emprestar os livros dele, todos de uma vez só".

"Com todo o prazer, ora", respondi. "Talvez assim você dê o braço a torcer."

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Abaixo, segue-se um dos trechos do livro que mais achei interessantes. Naturalmente não é o melhor de todos os trechos; selecionei-o por ser pequeno.

"Eu estive pensando numa coisa, Fernanda..."

"Sim?..."

"Em não voltar. Ficar junto da terra, numa vida mais simples..." Ela me olha com a testa franzida e eu prossigo. "Eu já lhe disse uma vez... Aquela aventura na Espanha serviu para que eu me conhecesse melhor, para que eu visse o que tenho de bom e de mau dentro de mim."

"E que é que isso tem a ver com a sua ida para a terra?"

"É que eu cheguei à compreensão de que a vida na cidade, com as suas complicações, faz que a todo momento esteja subindo à tona esse lodo que dorme no fundo de cada um de nós, ao passo que numa vida simples e natural eu poderei conservar em estado de pureza as qualidades boas que sinto existirem em mim."

Fernanda me escuta em silêncio. Entramos na rua da Independência. A garoa cessou. (...)

04 setembro 2009

Clarissa, de Erico Verissimo

"Onde estará então a menina em flor que corria no pátio atrás das borboletas?" (página 132)

Clarissa Erico Verissimo

Hoje pela manhã - antes de receber a notícia de que os estúdios Disney compraram a Marvel Comics - finalizei a leitura do livro nacional Clarissa (1933), que é o primeiro romance de Erico Verissimo e, conseqüentemente, o ponto de partida para a sua carreira literária meteórica.

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Sinopse: Clarissa é uma jovem de 13 anos que mora na pensão da tia enquanto estuda  em  Porto Alegre.  Curiosa, procura descobrir o mundo e a vida.  Observa com meticulosa atenção as pessoas que moram no pensionato e  na  vizinhança: Ondina, a  infiel  esposa  de Barata; Amaro, o músico triste e contemplativo; o distraído major Pombo; a conservadora tia Zina e seu desempregado marido;  a família rica que mora ao lado; e a viúva com o filho mutilado na casa à direita.

"Clarissa" mostra o despertar de uma adolescente para o mundo. No pequeno universo da pensão onde mora na capital gaúcha, a jovem entra em contato com realidades densas e misteriosas que seu otimismo juvenil não imaginava que existissem. (...)

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Eu acompanho a obra de Erico Verissimo desde o início de junho deste ano. Os seus primeiros livros constituem aquilo a que os críticos mais entendidos chamam de "Ciclo de Romances", que são vários livros com histórias diferentes, mas que, por se passarem no mesmo lugar (Porto Alegre) e no mesmo período (década de 30), acabam tendo os seus enredos entrelaçados.

Desse modo, por exemplo, a personagem Fernanda - do livro Caminhos Cruzados - esbarra com Amaro Terra - de Clarissa - e com Vasco Bruno - de Música ao Longe - no livro Um Lugar ao Sol, que por sua vez nos apresenta o velho doutor Seixas, que aparecerá mais tarde em Olhai os Lírios do Campo e Saga.

Esse embaralhamento de enredos e personagens é uma das coisas que mais me chamam atenção na obra do escritor gaúcho. De qualquer forma, vou me ater aqui ao romance em questão, isto é, ao primeiro do Ciclo de Romances: Clarissa.

Clarissa é uma história extremamente lírica, poética e romântica, coisa de que antes eu não gostava muito, mas que agora passei a apreciar. (Por que não um pouco de lirismo para nos fazer sonhar neste mundo tão grotesco?) O livro nos fala sobre a construção da personalidade de uma garota ingênua de 13 anos que, em contato com as pessoas e coisas da sociedade, começa a montar a sua impressão e o seu caráter diante do mundo.

Como resumiu muito bem um estudioso da obra:

"Na monotonia cotidiana da pensão de sua tia Zina, Clarissa é um raio de sol, uma mancha rutilante de alegria. É a poesia da vida no meio do realismo mesquinho. Nela, tudo encanta porque tem a inocência que a angeliza, e o sabor das coisas naturais que ainda não sofreram as deformações da sociedade... Clarissa é qualquer coisa de agreste e puro. Clarissa é música e é poesia. Menina e moça - olhos abertos para o mistério da vida. Alma que amanhece."

Confesso que não tenho muito o que dizer a respeito deste romance, a não ser o fato de que adorei e o recomendo aos demais fãs de Erico. Isso basta?

Naturalmente, Clarissa está abaixo dos romances posteriores do autor (?), mas esse detalhe não deve ser justificativa para tirar o seu brilho e a sua mensagem fundamental, que tanto inspiraram gerações e gerações ao longo dos anos.

A única imperfeição do livro - que sinceramente não chega a ser uma imperfeição - talvez seja aquela que o próprio Erico - sábio, como sempre - menciona em um prefácio de 1961:

"Como conjunto, talvez o principal defeito dessa novela seja o seu excesso, não de beleza - o que não seria para lamentar - mas de 'boniteza', de joliesse, de prettiness. Eu como que me esmerei em focar instantes pictóricos e poéticos, numa sucessão de haicais e aquarelas."

Com efeito, a linguagem do livro é laureada, dourada, extremamente poética e espichada; e isso confere à obra um caráter romântico quase irreal, o que muito provavelmente desagrada certos leitores contemporâneos. Talvez Clarissa seja uma grande poesia em forma de prosa, ou uma grande suíte sinfônica escrita em caracteres literários, caracteres esses que apenas os olhos de um leitor sensível conseguem captar.

"Céus, como você lê esse homem!", exclamou Natália, minha amiga de universidade, após eu lhe contar que estivera lendo o sétimo livro de Erico Verissimo.

"Ora... Ele é bom!", justifiquei. "Suas histórias impressionam pela narrativa poética e pelas tramas surpreendentes. É um grande escritor brasileiro, sem dúvida. Foi ele que me incitou a fazer as pazes com a literatura nacional. Sério mesmo!"

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Abaixo, uma das bonitas passagens de Clarissa que sublinhei. Aliás, esta é uma mensagem que está constantemente presente em seus livros: a busca pela liberdade, o sonho incansável de percorrer o mundo e se livrar da modorrenta, pragmática, claustrofóbica e enfadonha rotina da cidade:

"Uma vez, há muitos, muitos anos, um menino olhou o mundo com olhos interrogadores. Tudo era mistério em torno dele. Era numa casa grande. O arvoredo que a cercava amanhecia sempre cheio de cantos de pássaros. O mundo não terminava ali no fim daquela rua quieta, que tinha um cego que tocava concertina, um cachorro sem dono que se refestelava ao sol, um português que pelas tardinhas se sentava à frente de sua casa e desejava boa tarde a toda a gente. Não. O mundo ia além. Além do horizonte havia mais terras, e campos, e montanhas, e cidades, e rios e mares sem fim. Dava em nós vontade de correr mundo, andar nos trens que atravessavam as terras, nos vapores que cortam os mares. Nos olhos do menino havia uma saudade impossível, a saudade de uma terra nunca vista."

(VERISSIMO, Erico. Clarissa; páginas 34-5, editora Cia. das Letras, 5ª edição.)