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07 outubro 2020

Oryx e Crake, de Margaret Atwood

Devo começar esta resenha dizendo: é um livro impressionante. Maravilhosamente bem escrito, maravilhosamente bem narrado, perturbador, instigante e sugestivo. Conseguiu me fisgar desde as primeiras páginas. Margaret Atwood tem um talento ímpar para confeccionar uma prosa elegante e precisa que nos captura e nos deixa completamente à mercê do que ela tem para contar. Os seus melhores livros são assim, uma verdadeira arapuca, no melhor sentido do termo, porque você entra neles e não consegue mais sair, tamanha é a sedução dos mundos fantasiados por essa autora canadense.

E, bem, é sempre importante ouvir o que ela tem a nos dizer. Atwood faz parte daquele grupo de escritores cuja mensagem é sempre urgente.


Ilustração de Sam Chivers


Oryx e Crake tem como personagem principal um sujeito autointitulado “Homem das Neves”. Ele é basicamente o último representante do Homo sapiens na Terra e passa os seus dias empoleirado no alto de uma árvore, à beira-mar, sobrevivendo como pode e contemplando melancolicamente o que sobrou da civilização como a conhecemos – ele encontra destroços que chegam até a praia e vê prédios abandonados ao longe, caindo aos pedaços, ao pôr-do-sol. Nessa vida reduzida a pó que parece muito a de um náufrago sem ilha, o Homem das Neves cuida de uma tribo humana evoluída que mora próximo a ele, na praia: são homens, mulheres e crianças perfeitas, produzidas para serem perfeitas, inocentes e bondosas, uma espécie de versão 2.0 da humanidade, com atributos corporais e comportamentais ligeiramente alterados. Mas, o leitor logo se pergunta, como as coisas chegaram até esse ponto? Quem é o Homem das Neves e por que ele se dedica a passar seus dias cuidando desses estranhos vizinhos?

À medida que avança na narrativa, o leitor ou a leitora vai conhecendo as respostas para essas perguntas, porque o eixo principal da história é uma narração em retrospecto. É quando passamos a saber que o Homem das Neves na verdade se chamava Jimmy e vivia uma vida muito parecida com a nossa – a minha e a sua. Ele ia à escola, seus pais trabalhavam, ele gostava do seu bicho de estimação (não vamos entrar aqui no mérito de que bicho de estimação era esse) e tinha fama de ser alguém engraçado entre os colegas da mesma idade. O que muda completamente o seu destino (e o de toda a civilização humana) é o fato de Jimmy ter conhecido Crake e Oryx na adolescência, cada um a seu modo, cada um no seu tempo; e de, já adulto, ter aceitado embarcar em um projeto ambicioso capaz de colocar de cabeça para baixo todo o planeta.

Contar mais do que isso pode estragar a experiência da leitura; e se tem uma coisa que eu de fato não gostaria de fazer é estragar a experiência de quem pretende ler esse livro. Porque se trata de uma obra-prima. Estamos falando de um romance Sci-Fi/distópico que seguramente está no mesmo patamar de Admirável Mundo Novo e Fahrenheit 451.

A quem não pretende entrar na piscina sem antes checar a temperatura, porém, aqui vai uma informação útil: Oryx e Crake (2003) é o primeiro volume de uma trilogia. O segundo é O ano do dilúvio (2011), e o terceiro, Maddadão (2013).


Ilustração de Jason Courtney


O fato é que Oryx e Crake é uma porta aberta para reflexões profundas sobre o limite ético das pesquisas científicas (ou, melhor, sobre a falta desse limite) e sobre o uso que nós fazemos das tecnologias que somos capazes de criar coletivamente com base nessas mesmas ciências. De modo geral, é um livro que nos mostra que de fato é possível subjugar a natureza a nosso bel-prazer, mas que isso nos leva a todas as consequências previsíveis e imprevisíveis dessa ambição, e que o perigo reside aí, no caminho ético degradante que vamos trilhando sem perceber. É também um convite à crítica sobre como o sistema neoliberal pode cooptar as universidades e os institutos científicos para os seus domínios e transformá-los em verdadeiras indústrias especializadas, aprofundando desigualdades sociais e criando um mundo instrumentalizado para o lucro, em prol dos que podem pagar pelos seus luxos, e onde as liberdades individuais parecem estar sempre um passo à frente da moral.

O livro retrata uma realidade onde, por exemplo, as academias de arte estão em franca decadência, onde a competição entre os grandes conglomerados farmacêuticos prospera como fungo no pântano, e onde as pessoas podem assistir com relativa facilidade a qualquer coisa na internet (qualquer coisa mesmo, desde noticiários com jornalistas sem roupa até suicídios ao vivo e abusos sexuais de todo tipo. Sim, pense em uma deepweb que aos poucos vai alcançando a superfície da internet, porque qualquer tipo de regulação é impensável nessa sociedade de liberdades irrestritas).

Mas este é um mundo que prospera (ou decai, depende do ponto de vista) pela ordem da biomedicina atrelada ao sistema capitalista. As pessoas pagam caro pelos produtos farmacêuticos alcançados graças à ciência, e é isso que mantém o mercado ativo – um mercado desnaturalizante, porque busca reverter e corrigir todas as pequenas e grandes falhas do nosso corpo, sem ligar para as consequências a longo prazo envolvidas nessa empreitada. Toda a fragilidade humana que vem com o nosso medo de morrer é explorada pelo mercado em Oryx e Crake. Será este sistema muito diferente no nosso mundo real?


Ilustração de Jason Courtney


Além de crítica social, o livro é uma digressão filosófica sobre as bases da ciência biológica. No meu mundo idealizado, Oryx e Crake deveria ser leitura obrigatória em qualquer curso que envolvesse os estudos de bioética. Um dos questionamentos que saltam das páginas é, por exemplo: uma vida criada artificialmente, em condições ambientais artificiais e invariáveis, é vida, no sentido biológico da palavra? Ou é simplesmente um produto? Ou, ainda: a partir de que ponto podemos deixar o corpo padecer de males naturais, sem a intervenção imperiosa e intrusiva da tecnologia? Trata-se do mesmo velho enigma que nos assombra desde os primeiros passos do Iluminismo: “Pode o ser humano ocupar o lugar de Deus?”

O livro chega a dar medo em alguns momentos. Porque tudo o que Margaret Atwood faz – e não é pouca coisa – é juntar os elementos que nós temos agora e projetá-los no futuro, quando estarão mais desenvolvidos. É algo do tipo: “Se nós continuarmos por aqui, as consequências serão essas, o mundo que teremos será esse”.

E o resultado dessa “ficção especulativa” (como ela mesma gosta de chamar) é perturbador. Porque é muito familiar. Impossível não identificar o nosso mundo naquelas páginas que mostram um mundo tão submisso ao dinheiro, ao poder, aos poderosos, à tecnologia usada arbitrariamente. Bairros de luxo projetados como autossuficientes e isolados do resto da cidade? Já temos. Manipulação genética praticamente sem freios? Logo ali. Desprezo pelo conhecimento “inútil” da arte? Galgando espaço a cada dia. Transformação da educação em uma fábrica de alunos que possa atender ao mercado produtivista? Prática em ascensão agora mesmo. (A propósito, a ideia do “Leilão de Alunos” é de um sarcasmo atroz.)

O enredo que embala todas essas críticas e ponderações filosóficas é atraente e prende a atenção. Muito cedo você se vê envolvido na trajetória de Jimmy, o personagem principal, e no enigma que as duas pessoas mais próximas a ele representam – as que dão nome ao livro.

Oryx e Crake é para ser lido com calma, porque exige um leitor paciente e atento. É como um baú de tesouro, que você encontra escondido e sente que deve passar horas e horas manuseando e apreciando o que está lá dentro.

E, sim, o livro precisa de um leitor disposto a dar de cara com o que podemos estar fazendo de pior neste século XXI.





08 agosto 2020

'Incidente em Antares', tão atual.

Às margens das 100.000 mortes de brasileiros vítimas de covid-19 neste 2020 histórico, cai como um raio na minha cabeça a lembrança de um livro do escritor que mais amo, Erico Verissimo. A lembrança veio de repente, deflagrada por algo que custei a discernir, e ainda estou me perguntando por que o romance não me ocorreu antes, já que motivos para isso não faltavam. 

Falo de um dos seus últimos livros publicados em vida, Incidente em Antares (1971): um realismo fantástico no melhor estilo latino-americano, daquela estirpe que mistura tudo de pitoresco e assombroso na mesma panela – como coisas caindo do céu sem explicação, tapetes voadores, doenças misteriosas, aparições e desaparições repentinas e, como não poderia deixar de ser, nossa trágica história militar ditatorial associada à opressão contra a vida de pessoas comuns que pulsam no contracontrole, arranjando um jeito de viver o dia-a-dia apesar das torturas – físicas e psicológicas – perpetradas pelo poder autoritário. A história do realismo fantástico na literatura da América do Sul é íntima da história das veias abertas do nosso continente; julgo até que este gênero sempre se alimenta destas veias, com tudo o que elas representam para a nossa identidade. 

Porque, como na ficção científica, no realismo fantástico não interessa o absurdo ou a imaginação por eles mesmos: interessa falar dos problemas que já nos massacram no agora, na mais palpável das realidades, e que são ilustrados, às vezes pela didática, às vezes pela ironia e pelo sarcasmo, com coisas que não existem – doenças absurdas do sono, chuvas torrenciais que duram anos seguidos ou pequenos animais que sugam a alma das pessoas e se escondem sob os travesseiros à noite. 


Incidente em Antares é a história da cidade fictícia de Antares, interior do Rio Grande do Sul, e de seus habitantes, pessoas comuns com as mais ordinárias das ocupações e dos prazeres. Mas a história do livro não tem nada de ordinária. Pulando o denso retrato histórico a que o livro se propõe, podemos dizer que ocorre o seguinte: sete pessoas muito conhecidas entre os habitantes de Antares morrem e, como os coveiros estão em greve, dada a péssima – ridícula, mesquinha, interesseira – administração pública, os defuntos eventualmente levantam dos seus esquifes e se recusam a ser sepultados de maneira tão vil, tão indigna, tão desumana, às pressas. 

Como um movimento político organizado, ainda que composto por pessoas muito diferentes entre si, os sete mortos de Antares saem do cemitério e começam a perambular pela cidade, perturbando o prefeito e as demais autoridades do município, e visitando parentes para lhes explicar que a situação política do país está em frangalhos – um apelo para que os vivos se deem conta do abuso de poder daqueles que não conseguem nem enterrar os cidadãos que os escolheram para governar. 

Pois é. A certa altura, alguém fala isto: “O progressismo repousa essencialmente sobre a morte. Os vivos são sempre e cada vez mais governados pelos mortos”. (Está grifado na minha edição, vejo agora não sem tomar um susto.) 

Há conservadores em Antares, incluindo os apadrinhados do prefeito e o próprio prefeito (um major do Exército), que se recusam a acreditar no óbvio: que os mortos estão vivos, estão protestando e estão trazendo à luz toda a podridão (moral) humana dos vivos. Há quem diga que se trate de uma mentira, de uma alucinação coletiva, e sugira mesmo que seja alguma coisa ligada a “esquerdistas” perturbadores da ordem republicana. Está no livro. 

Um dos aliados do prefeito, diante de uma comitiva de mortos e da escalada de vivos que protestam, diz para o seu cúmplice (uma frase que poderia estar no obituário do Brasil hoje): “Não há de ser nada, major. O grosso da população desta terra nos apoia”. 

Mesmo com a óbvia indicação de que alguma coisa deve ser feita imediatamente para resolver o problema, os “patrões”, informados da situação pelo prefeito incompetente, decidem não conceder o aumento do salário dos coveiros – “são problemas distintos”, dizem. E assim o caos se instala entre a iniciativa privada, a gestão pública e os cidadãos requerentes, sem que as duas primeiras consigam juntar esforços para solucionar um problema sanitário e obviamente ético. 

Por fim, no ápice do livro, há uma marcha dos mortos de Antares em direção ao grande coreto da praça do centro da cidade, acompanhados por parentes e demais populares, clamando pelos seus direitos de morrer em paz, com justiça e com responsabilidade. Agora gosto de imaginar, talvez assim como Eliane Brum, que metaforicamente 100.000 pessoas possam ter o direito de marchar em direção a Brasília pelos mesmos motivos, reivindicando as mesmas coisas com a ajuda dos vivos que restaram e que podem lutar por eles. Como é claro, Incidente em Antares é um livro crítico da ditadura militar brasileira, e não é por coincidência que possa ser um livro crítico ao Brasil de hoje.

05 maio 2020

Aventuras urbanas em sebos

Sebo O Geraldo, em Fortaleza-CE


Hoje pensei com saudade sobre esse hábito, comum entre alguns leitores, de perambular pela cidade à procura de sebos escondidos em pequenas ruas e travessas que mal aparecem nos mapas urbanos. E lembrei com nostalgia de garimpar nesses lugares, por entre amontoados de brochuras descolando e lombadas desbotadas, segurando o espirro, um livro bom o suficiente para fazer as férias da escola valerem a pena.

Rastrear e conhecer pequenos sebos espalhados pela cidade é uma experiência já comprometida, claro. Esse hábito entrou em declínio quando todos nós descobrimos que é muito mais fácil comprar um livro usado clicando algumas vezes o botão do mouse do nosso computador e recebendo, na porta de casa, alguns dias depois, um pacote com o livro dentro. A praticidade da internet suprimiu o esforço de ter de sair do conforto do nosso lar em direção ao ambiente incerto das livrarias físicas, onde podíamos não encontrar o que estávamos procurando.

E assim definharam e morreram aos poucos os sebos físicos; e, com eles, as histórias das peripécias de leitores e livreiros que se procuravam às tateadelas pelos labirintos da cidade, ignorando o fato de serem ignorados pelo movimento urbano caótico de todo dia. Esses sebos acabaram migrando para uma versão digital, todos reunidos em um catálogo só – funcionando à perfeição, diga-se de passagem – listados com a impessoalidade do mundo dos algoritmos. Ganhamos em praticidade e perdemos em experiência.

Daqui a um tempo, quem não viveu fisicamente o circuito dos sebos ou nunca experimentou a sensação de ficar encolhido entre três prateleiras enormes cheias de livros velhos cheirando a mofo, em uma casa antiga com piso de tacos soltos – uma experiência tão impressionante que era meio impossível não se perguntar “O que diabos eu estou procurando, mesmo?” ou “Será que o dono da casa esqueceu que eu estou aqui?” – não acreditará nas histórias que eu tenho para contar sobre livreiros tão antigos quanto os próprios livros usados, livros do século XIX guardados em cofres de metal com aqueles botões de senha que você tem que rodar para abrir, sebos inusitados – um deles incluía o banheiro de uma casa, e, sim, eu tive que procurar D. H. Lawrence dentro de um box de chuveiro e Michael Crichton debaixo de uma pia –, sebos suspeitos – já fui advertido por um livreiro idoso que não queria que eu entrasse por uma porta do segundo andar da sua casa, sob o risco de ter de ver “coisas desagradáveis lá dentro” – e idas ao Centro à procura de revender meus Erico Verissimo – Incidente em Antares e Noite, lembro ainda quais eram –, barganhando com um homem que fumava um charuto provavelmente falsificado e que me dizia, entre uma baforada e outra, que a leitura seria a minha ruína, porque era a ruína de todos os acadêmicos – sábio vendedor de livros, conhecia a causa, alertou um adolescente para o perigo que estava por vir, e eu não lhe dei ouvidos.

Atualmente, isso já parece inacreditável mesmo para mim. Quem dirá que um dia existiu aventura no simples fato de comprar um livro? Mapas imprecisos que eu fazia à mão – nada de GPS, sequer existiam –, ônibus cheios de personagens atípicos, pessoas estranhas, becos sem saída, ruas sem fim, estabelecimentos escondidos, portas para além das quais eu não sabia o que esperar. Se eu tivesse desaparecido naquela época de peregrinação literária, ninguém poderia se dar por surpreso. Mas se envolvia aventura, a ida aos sebos envolvia também drama, às vezes tragédia e comédia urbana, e às vezes – muitas vezes – as histórias eram bem serenas, um peixe beliscando a superfície de um lago sob o sol do verão.

Um dos últimos sebos que visitei foi com o intuito de presentear um amigo com um livro que já estava fora de circulação. Peguei um ônibus e desci vinte minutos depois em uma rua curta e vazia cercada por altas antenas de rádio e televisão, em um bairro de Fortaleza conhecido justamente por elas. O sebo era uma casa de aspecto colonial ampla, arejada; de manhã o sol batia de frente, bem na varanda da entrada, onde um gato dormia entre vasos de taiobas. O som da campainha parecia ter atravessado a história dos séculos. Entrei, a própria livreira me recebeu: uma mulher idosa, grande, imponente e muito simpática. Diferentemente das outras vezes, em outros lugares, nesse dia eu achei com uma rapidez impressionante o livro que eu estava procurando – achei o livro antes mesmo de a dona me dizer onde ele estava.

O recibo eu guardo até hoje, talvez como lembrança daquele dia. Quando paguei, a mulher me olhou com cuidado e perguntou se eu queria um café com torradas. Sentamos na varanda, a uma mesinha velha de madeira que ficava na sombra, e ela começou a fazer carinho no gato e a me contar do problema de ter de lidar com o computador para cadastrar no site dos sebos virtuais aquela montanha colossal de livros que ela tinha em casa – cadastrar um por um –, uma casa que leitor nenhum visitava mais porque os grandes conglomerados praticavam preços que anulavam completamente a concorrência. Assim, seria impossível se livrar de todos aqueles livros antes de se mudar para a casa dos filhos, coisa que ela planejava; e nem ela esperava que fosse vender todos, aliás, por isso já estava dando alguns. Depois ela falou do marido falecido com toda a serenidade do mundo, o que me pareceu muito bonito, e de como ele lia muito, e que na verdade a maioria daqueles livros era dele, principalmente os do Carl Sagan, que ele adorava. Falou do filho engenheiro e da filha dentista. Falou da época em que ela lecionava em uma escola normal. Falou das colegas professoras dela na escola e dos livros que eram proibidos para as moças naquela época (dentre eles, ‘Caminhos cruzados’, de Erico Verissimo, um dos meus livros favoritos de sempre, o que depois deu início a um novo galho da nossa conversa) e falou também da música que os bons livros tocam sem que a gente perceba.

Bebi café como nunca, saí de lá muito depois da hora do almoço, e antes mesmo de pegar o ônibus de volta eu já tinha a certeza de que um episódio como aquele nunca mais ia acontecer de novo.