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25 outubro 2009

O Escafandro e a Borboleta, de Jean-Dominique Bauby

"Longe desse escarcéu, no silêncio reconquistado, posso ouvir as borboletas voando pela minha cabeça." (p. 105)

O escafandro e a Borboleta Jean D. Bauby

Na minha cabeça existe uma lista de histórias que mais me impressionaram e mais me inspiraram a viver uma vida de dedicação, esforço e altruísmo. Essas histórias ainda fizeram com que eu visse que os meus problemas mundanos, perto dos problemas extraordinários retratados nessas histórias, não são absolutamente nada dignos de nota.

Senão, vejamos...

Nessa minha lista está o verídico drama do Milagre dos Andes, em que um time de rúgbi teve de enfrentar as cadeias geladas de montanhas dessa cordilheira latina, após o seu avião chocar-se contra uma delas. Depois de 72 dias na neve, os rapazes conseguiram voltar para casa, não sem antes passarem por uma sucursal do inferno, onde a força de vontade e a fé teve de atingir o seu grau máximo para que a sobrevivência fosse possível.

Na mesma lista está a história famosíssima de Anne Frank, a adolescente alemã que, durante o período em que se manteve escondida com a família e alguns "amigos" em um prédio na Holanda, escreveu um diário que mais tarde se tornaria símbolo do Holocausto e da luta pela justiça, além de ser "um dos livros mais importantes do século XX", segundo o New York Times.

Continuando a seqüência da minha lista de "histórias humanas incríveis", temos a surpreendente aventura do norte-americano Christopher Johnson McCandless, jovem de família abastada que, embora de maneira um pouco equivocada e egoísta, abandonou o conforto de sua vida para ir trilhar os caminhos áridos do país, numa jornada de puro auto-conhecimento e simplicidade, onde a busca pela felicidade frugal reinava.

Pois bem. Devo dizer que, com o término da leitura do livro O Escafandro e a Borboleta (Le Scaphandre et le Papillon, 1997), essa minha lista de admirações ganhou mais um item.

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Sinopse: No dia 8 de dezembro de 1995, o redator-chefe da revista francesa Elle, Jean-Dominique Bauby, sofreu um terrível derrame cerebral que lhe deu uma das mais terríveis conseqüências prognósticas clínicas: todos os músculos do seu corpo ficaram paralisados e não permitiam o menor movimento, com a exceção de um - a pálpebra do olho esquerdo. E é com esta pálpebra que Bauby aprendeu a se comunicar com o mundo externo e, por fim, por incrível que pareça, conseguiu escrever um livro sobre a sua rotina no Hospital Becker, à beira-mar.

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Um feito extraordinário. Essas três palavras são capazes de resumir, de forma simples e precisa, a imagem de O Escafandro e a Borboleta. É um livro em que os limites do possível - como em muitas outras ocasiões que se vê por aí - são colocados à prova. Afinal de contas, como alguém que só consegue mexer a pálpebra do olho esquerdo pode escrever um livro de memórias?

"Simples" assim: um alfabeto distinto (em que as letras mais usadas do idioma são as primeiras) é ditado em voz alta para Jean-Dominique. Quando a letra pretendida por ele é proferida, Dominique pisca o olho uma vez. A letra é escrita então em um caderno à parte e a pessoa volta a ditar o alfabeto conveniente, desde o início, letra por letra. De súbito Dominique pisca o olho outra vez. E assim vão-se formando as palavras. E as frases. E as páginas inteiras.

Parece propício para nós imaginar que, pelo fato de se tratar de um escritor enfermo por uma debilidade tão devastadora, o relato de O Escafandro e a Borboleta seja constituído por uma espécie de telegrama mórbido onde as palavras são jogadas a esmo e o leitor que se vire para decifrar as derradeiras impressões de um doente tetraplégico como Bauby. No entanto, é um engano pensar assim. Este é um livro lindo e, muito mais que um simples relato funesto das semanas no hospital, é também um verdadeiro haicai de parábolas e pensamentos metafóricos escritos em linguagem viva e penetrante. Por sinal, às vezes passava pela minha cabeça o seguinte pensamento: Como é que o cara consegue manter uma calma tão estóica assim diante de uma guinada avassaladora em sua vida? Parece realmente ser algo que de fato não pertence ao mundo das coisas normais.

É claro que, apesar da aparente descontração narrada naquelas páginas, Bauby passa por momentos de melancolia bem difíceis. São situações cujas implicações realmente nos devem pôr para pensar. Por exemplo, o que dizer do momento em que Bauby vai passear pela orla da praia, de cadeira de rodas, em um dia de sol, na companhia da ex-mulher e dos filhos pequenos? Theóphile, o rapazinho, o contempla num mutismo doloroso; Celéste, a mocinha (mais nova que o irmão), limpa a boca babante do pai e lhe sorri de modo afetado. E Bauby reflete que é mais que horrível não poder passar a mão pelos cabelos dos filhos. Deve ser, mesmo.

Como muitas pessoas já devem saber, existe uma adaptação cinematográfica homônima deste livro. É uma produção francesa dirigida por Julian Schnabel (que foi indicado a melhor diretor pelo Cannes justamente por causa dessa obra) e produzida por Katheleen Kennedy (a mesma de Jurassic Park e O Curioso Caso de Benjamin Button).


Apesar de haver no filme muitos elementos largamente alterados ou fictícios - como naturalmente haveria de ser, já que seria uma história levada para os cinemas -, há também toda a gama de sensações que são encontradas no livro e que, de fato, são responsáveis por nos comover. Portanto, além do livro, recomendo o filme.

Em suma, como diria Elie Wiesel, O Escafandro e a Borboleta "conta como transformar dor em criatividade, sofrimento humano em milagre literário." Sem sombra de dúvidas, estamos diante de um livro incrível e altamente recomendado para aquelas pessoas que, sobretudo, amam a vida.

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Abaixo, segue-se uma passagem curta e aleatória do livro:

"É domingo. O sino badala gravemente as horas. Na parede, o pequeno calendário da Assistência Pública, cujas folhas vão sendo arrancadas dia após dia, já indica que é agosto. Por qual paradoxo o tempo, imóvel aqui, corre ali desenfreadamente? No meu universo encolhido as horas se espicham e os meses passam como relâmpagos. Não me conformo de estar em agosto. Amigos, mulheres, filhos se dispersaram no vento das férias." (p. 109)

A seguir, um pensamento muito interessante de Bauby, que (estranho) não se encontra no livro.

"Considero saudável estar só na maior parte do tempo. Estar acompanhado, mesmo pelos melhores, cedo se torna enfadonho e dispersivo. Adoro estar só. Nunca encontrei um companheiro tão sociável como a solidão. Estamos geralmente mais sós quando viajamos com outros homens do que quando permanecemos nos nossos aposentos. Um homem quando pensa ou trabalha está sempre só, deixai-o pois estar onde ele deseja; a solidão não é medida pelas milhas de espaço que separam um homem e os seus congêneres."

22 outubro 2009

Algumas palavras sobre o Twitter.

Twitter

Depois de uma longa conversa que tive hoje com alguns de meus amigos mais esclarecidos, e depois de ler um texto em um blog que elogiava copiosamente o Twitter, senti certo interesse -- e por que não dizer, certa necessidade -- em escrever algumas palavras sobre essa ferramenta da Internet que já rendeu milhões de usuários no mundo todo.

Antes de tudo, eu queria deixar bem clara a minha posição acerca do assunto. Porque às vezes eu falo quilos sobre uma coisa e, no final das contas, ninguém sabe se sou contra ou a favor da coisa em questão. Portanto, já vou logo adiantando que a minha posição sobre o Twitter é exatamente esta: não vejo criatividade nenhuma nesse sistema de "microblog" criado por um ex-funcionário do Google.

De qualquer forma, não estou aqui para bancar o céptico conservador extremista e criticar acidamente o passarinho azul só porque é algo novo a que as massas aderiram rapidamente, quase que sem refletir. Não quero, de modo algum (e que isso também fique bem claro), depredar o Twitter, nem criticar as pessoas que o utilizam, e nem criticar a necessidade que elas têm de se comunicar com outras pessoas. Não é esse o objetivo. Eu queria apenas dizer que, para mim -- e para muitas outras pessoas, sei bem -- o Twitter é um negócio inútil e nada criativo. Só isso.

Essa história de querer se comunicar virtualmente com outras pessoas, criando amigos à distância ou não, já é bem antiga. Na verdade, a sua origem se confunde com a da própria Internet. Desde os primórdios do "www" nós já tínhamos sites especializados em bate-papo e coisas parecidas, que, por sinal, arrecadavam milhões de usuários por aí (tudo bem, não tanto porque naquela época os que tinham acesso à internet ainda eram poucos), todos eles atravessando a madrugada nos chats porque, depois da meia-noite, a conexão com a Internet era de graça. Há lendas vivas sobre episódios no bate-papo UOL, no mIrc, no Encontros Amorosos do Yahoo! (sim, isso é muito antigo) e em outros serviços de relacionamento obsoletos.

Pois bem. Depois de algum tempo de especulação e tentativas, evoluímos para o MSN Messenger (o mensageiro instantâneo mais utilizado no planeta) e, anos depois, para o Orkut em sua forma mais decente -- aquela que permite a privacidade seletiva. Sim, repito, evoluímos. Não sou cínico absoluto a ponto de negar ou afrontar os avanços da Internet e as possibilidades de sociabilidade que daí surgem. Comunicar-se com outras pessoas é fundamental para qualquer um; até comunicar-se com quem não conhecemos. Quanto a isso, não tenho nada a falar.

Ainda seguindo a escala cronológica, temos, depois dos dois mais importantes supracitados, o serviço pioneiro sério em questão de redação e publicação de textos longos na web -- o blog. Esta é a ferramenta ideal para quem quer expor na Internet aquilo que pensa todos os dias, todas as horas e todos os minutos, se for o caso -- e, ainda, faz-se isso para o mundo inteiro, pois o blog é um site. A essência é parecida com a do Twitter, não? No blog as pessoas encontram um verdadeiro diário universal. Escreve-se sobre os filmes que se vê e os livros que se lê. E há a possibilidade, ainda, de "seguir" um blog de sua preferência, só para usar o termo mais freqüente do Twitter.

Portanto... Quer conversar com os amigos, a sós? MSN Messenger. Quer se relacionar com outras pessoas, desconhecidas, trocar idéias, se reunir em grupos de discussão e produção? Orkut. Quer publicar, sozinho, as suas idéias (textos) e as suas fotos na web? Faça um blog.

Tudo bem, não estou ganhando um centavo sequer nem da Microsoft nem do Google (seria tão bom se estivesse...), mas o que quero deixar claro aqui é que, depois que essa tríade de serviços virtuais foi inventada -- mensageiros instantâneos privados, Orkut e blog --, ainda há algo mais a se fazer? Pensem bem. Tudo o que se origina daí são derivados. Derivados... supérfluos. É o caso do Twitter.

No blog que eu citei no primeiro parágrafo deste artigo, a dona do texto disse que houve inúmeros mitos criados em torno do Twitter, desde a sua criação, e que esses mitos pejorativos foram responsáveis pelo fato de o Twitter ser tão duramente criticado por alguns hoje em dia. Por exemplo, lá ela diz que o Twitter não deve servir de modo algum para responder à pergunta inicial "O que você está fazendo?", proposta pelo próprio Twitter.

Cá penso eu: Graças a Deus ele não foi feito para responder a essa pergunta. Imagina-se a torrente de coisas inúteis que se seguiriam daí. Aliás, essa não foi a idéia original?

É, na verdade, um bar -- diz o blog em questão. O Twitter é um bar, aquele seu barzinho preferido da esquina, aonde você vai todas as noites para se reunir com os amigos, tomar aquele chope e conversar abobrinhas. Tudo bem, penso eu, gostei muito da analogia. Na verdade, ela esclarece bastante as coisas. No bar, naturalmente, existem aquelas pessoas que aparecem só para brigar, só para criar confusão e denegrir a imagem dos outros. Existem também, no bar, os momentos de solidão, os momentos em que você se encontra numa roda que não é a sua e o momento em que você gostaria de sair porta afora, mas não consegue.

Essa relação com o bar é a imagem perfeita de alguns sites de relacionamento comunitário; inclusive, claro, o Orkut. No entanto, o ponto positivo do Orkut é que você pode se esquivar das coisas desagradáveis, ignorando-as completamente, até banindo-as, e se dedicar a outras coisas de seu interesse. A área lá dentro é muito mais ampla. O Twitter, por seu lado, é exclusivamente voltado para uma única atividade: escrever, em um espaço limitado por 140 caracteres, alguma coisa relacionada à sua vida -- ou, como diria alguém, "dar voz ao lado sombrio da sua personalidade".

Se eu, particularmente, fosse dar voz ao lado sombrio da minha personalidade, diria apenas uma única coisa de antemão para os que se apresentam: que saiam todos da frente.

Já ouvi alguém falando que o Twitter serve também, e especialmente, para ver o que as pessoas famosas fazem em suas vidas. Acho que sei o que responder a essa observação: elas tomam banho, escovam os dentes e levam as crianças à escola. Não, não, diriam os mais radicais, o Twitter não serve para ver o que as outras pessoas estão fazendo: serve para ver o que elas estão pensando. E respondo: elas pensam as mesmas coisas que você. As celebridades que são inteligentes pensam coisas inteligentes; se você é inteligente que nem elas, não precisa do Twitter para lê-las. Quanto às celebridades desprovidas de cérebro... melhor nem comentar.

Aliás, o Twitter serve mais para criar problemas que antes não existiam. O próprio criador da ferramenta disse que a idéia do Twitter não era necessária até ser inventada. Quanto aos escândalos que são criados a partir de coisas que antes não eram necessárias, basta lembrar do "Caso Sasha". Cena com S.

Bem, é isso. Eu não gostaria de deixar este texto mais longo do que ele já está. Aliás, nem queria que ele tivesse ficado tão longo, por que sei que muitas pessoas não o lerão, e aí eu terei perdido 20 minutos da minha vida trabalhando nele. Mas, bem, estamos na Internet, e perder tempo é uma das suas maiores virtudes, não?

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Falando sobre esse negócio do Twitter e de relacionamentos abertos, eu lembrei de uma das primeiras frases ditas no filme O Show de Truman (The Truman Show, 1998). Seria conveniente citar aqui essa passagem, em que uma das personagens diz o seguinte: "Hoje em dia praticamente não existe diferença entre a vida pública e a privada. Isto é, não se sabe onde termina uma e onde começa a outra."

17 outubro 2009

A Dama das Camélias, de Alexandre Dumas (filho)

"A história de Marguerite é uma exceção, repito, mas se fosse uma generalidade, não teria valido a pena escrevê-la." (p. 203)

A Dama das Camélias A. Dumas Filho

Hoje pela tarde eu finalizei a leitura do romance A Dama das Camélias (La Dame Aux Camélias, 1848), escrito pelo francês Alexandre Dumas (filho), cuja ascendência, como podemos ver, já está evidente no próprio nome do rapaz.

O que esperar de um escritor que é filho do autor de O Conde de Monte Cristo e de Os Três Mosqueteiros? Essa foi uma das razões que me fizeram levar A Dama das Camélias da livraria.

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Sinopse: O romance, escrito em 1848, teve pouca repercussão em seu lançamento. (...) A obra é um documento social, mas sobretudo um hino ao Amor, escrita em linguagem forte, com admiráveis diálogos; narra a comovente história da cortesã Marguerite Gautier e Armand Duval, jovem estudante de Direito em Paris.

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Acima de tudo, A Dama das Camélias é um ótimo livro. Gostei bastante. Tem o caráter e a forma de uma obra de Machado de Assis - intrigas amorosas em primeiro plano - e, como todo romance europeu da primeira metade do século XIX, tem também passagens de declaração de amor efusivas e exasperadas, quase irreais. Isso sem contar com as cordialidades entre as personagens masculinas e femininas, que são coisas dignas de nota e que, hoje, julgamos risíveis.

Bem, o livro é narrado em primeira pessoa, só que por várias pessoas diferentes: começa com um personagem sem nome, que se encarrega das primeiras páginas e articula a história; passa então pelo relato longuíssimo de Armand Duval - que é, na verdade, o miolo do romance - e acaba com a narração da própria Marguerite, nas últimas páginas, através de uma extensa carta. Não vou, claro, me alongar nesses detalhes porque aí acabaria com a graça do enredo, e acabar com a graça de qualquer coisa é uma das atitudes que mais detesto.

Confesso que o livro demora um pouco a engatilhar. As primeiras dez ou vinte páginas são interessantes, mas é aí que começa o relato de Armand Duval e, então, os acontecimentos seguem um ritmo de madorna. No entanto, logo depois da metade - estamos falando de um livro de 205 páginas, note-se bem - a trama dá uma reviravolta que impressiona e que faz com que o leitor não largue o livro até que o fim seja alcançado.

O que mais me chamou a atenção em A Dama das Camélias é que, apesar da vontade que se tem, não podemos julgar nenhuma das personagens pelas atitudes que tomaram ao longo da história. Por quê? Porque todas elas seguiram o contexto social no qual se encontravam, e fugir desse contexto para tomar outras decisões soaria algo falso, tanto no caso de Marguerite como no caso de Duval e mesmo de Prudence. Portanto, no romance não há aquele que procedeu mal, aquele que procedeu certo, aquele coitado que sofreu pelas decisões do outro e aquele que tudo manipulou; não. Todos eles agiram de acordo com as suas inclinações, e isso afetou as pessoas circundantes de modo especial em cada caso. Desse modo, não há julgamento moral possível para ninguém ali.

Indico o livro para quem quiser uma boa leitura de final de semana e peço desculpas pela resenha simples.

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Eu poderia deixar como trecho especial a seguinte passagem:

"Não se trata simplesmente de colocar duas colunas na entrada da vida, uma delas sustentando esta inscrição: Caminho do Bem, e a outra este aviso: Caminho do Mal, e de dizer aos que se apresentam: 'Escolham'. É preciso (...) mostrar os caminhos que conduzem da segunda via à primeira para aqueles que se deixarem tentar pelos desvios e, principalmente, é preciso que o início desses caminhos não seja demasiado doloroso, nem pareça demasiado impenetrável."

(DUMAS, Alexandre; A Dama das Camélias, p. 28, editora Martin Claret)

08 outubro 2009

Saga, de Erico Verissimo

"(...) Que fazemos todos nós, senão viver numa constante renúncia das coisas que mais amamos?" (p. 289)

Saga0001 Erico Verissimo3

Hoje pela noite - depois de experimentar uma espécie de pimenta no jantar que só faltou pôr as minhas tripas para fora - eu finalizei a leitura do romance nacional Saga (1940), escrito pelo gaúcho Erico Lopes Verissimo durante o momento de eclosão da 2ª Guerra Mundial na Europa.

Saga é o livro que conclui o que o próprio autor denominou de Ciclo de Romances - que é o conjunto de seus seis romances urbanos ambientados em Porto Alegre, cujas histórias se entrelaçam, formando assim um tipo singular de trilogia.

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Sinopse: Nos campos de batalha da Guerra Civil Espanhola, Vasco Bruno presencia atrocidades de toda sorte. Quando volta a Porto Alegre, os horrores da batalha dão lugar às dificuldades cotidianas: em vez de fuzilamentos e bombardeios, os golpes baixos da sociedade burguesa. (...) Saga é um libelo humanista, um romance que denuncia a miséria social e ao mesmo tempo aponta uma luz de esperança em meio às nuvens escuras que chegam da Europa.

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Assim como aconteceu com os meus oito livros anteriores de Erico Verissimo, não me arrependi, de modo algum, de ter comprado este. Levei o único exemplar da livraria, quase que na impulsividade, mesmo lendo no prefácio que o autor considera Saga o seu pior romance (chamou-o inclusive de "monstro" e "medíocre"). Não me abalei com este julgamento e pensei: Um livro de Erico Verissimo falando sobre a guerra e sobre as torpezas do cotidiano não pode ser menos que interessante. Sem mais, irei levar.

E não me arrependi.

Posso dizer que o livro Saga (narrado em primeira pessoa por Vasco Bruno) é dividido em dois momentos muito distintos: o primeiro recebe o título de "O Círculo de Giz" e mostra as aventuras de Vasco durante a sua estada na Espanha, aventuras estas oriundas da sua decisão de entrar no exército da Brigada Internacional e lutar na Guerra Civil Espanhola; o segundo momento do livro intitula-se "O Destino Bate à Porta" e discorre sobre a volta de Vasco ao Brasil e a Porto Alegre, onde ele reencontra seus velhos amigos (Fernanda, Noel e a prima Clarissa) lutando pela sobrevivência cotidiana na cidade grande.

É interessante notar que todos os enredos dos romances anteriores de Erico convergem para este último: revemos Eugênio Fontes, de Olhai os Lírios do Campo; Chinita e Manuel Pedrosa, de Caminhos Cruzados; doutor Seixas, de Um Lugar ao Sol, e assim sucessivamente. Todas as tramas não-resolvidas dos livros anteriores têm a sua conclusão traçada em Saga. Só por isso, eu diria, o livro já vale a pena.

Apenas não entendi muito bem por que Erico Verissimo foi tão severo no seu julgamento quanto a este livro. É um romance absolutamente normal - ou melhor, "normal" em termos, porque o livro é maravilhoso, na minha opinião de fã. É um romance que pode muito bem ser acolhido com efusividade elogiosa pela crítica e pelo público. Por que então ser tão auto-crítico? Saga é um romance extraordinário! Não se deixem levar por comentários!

Como sempre, os personagens de Erico estão às voltas com questões existencialistas, sentindo-se deslocados em um mundo de tanta miséria moral e de tantas injustiças. Como conseqüência disso, temos diálogos belíssimos sobre viver uma vida justa e simples, sobre a doença mental da humanidade, sobre questionamentos de natureza ética e etc., sobre sonhos e amor ao próximo - isso tudo passando longe da pieguice, note-se bem. O autor é simplesmente especialista em diálogos, e, especialmente neste caso, nada deixa a desejar.

É com um prazer quase sobrenatural que eu leio essas passagens filosóficas de Erico. Chamo isso de "orgasmo literário". Por mais que o termo pareça chulo, não vejo outro que se aproxime mais do que se sente lendo essas páginas. O que dizer da conversa entre Vasco e o dr. Abel, em que este último explica por que o mundo está totalmente voltado para o consumismo imediato e frenético? O que dizer da filosofia maldita do dr. Seixas? Ou do altruísmo doloroso de Fernanda? Ou do mundo utópico de Noel? Nossa! São trechos que de fato tiram o fôlego de qualquer leitor apreciador da boa literatura.

Portanto, leiam Saga! É um livro excepcional, ainda mais se o leitor já tiver tido contato com os outros romances anteriores do Ciclo de Romances.

"Mais um do Erico Verissimo, heim?", disse-me Natália, minha amiga da universidade, ao ver debaixo de meu braço o volume Saga. "Qualquer dia desses você vai me emprestar os livros dele, todos de uma vez só".

"Com todo o prazer, ora", respondi. "Talvez assim você dê o braço a torcer."

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Abaixo, segue-se um dos trechos do livro que mais achei interessantes. Naturalmente não é o melhor de todos os trechos; selecionei-o por ser pequeno.

"Eu estive pensando numa coisa, Fernanda..."

"Sim?..."

"Em não voltar. Ficar junto da terra, numa vida mais simples..." Ela me olha com a testa franzida e eu prossigo. "Eu já lhe disse uma vez... Aquela aventura na Espanha serviu para que eu me conhecesse melhor, para que eu visse o que tenho de bom e de mau dentro de mim."

"E que é que isso tem a ver com a sua ida para a terra?"

"É que eu cheguei à compreensão de que a vida na cidade, com as suas complicações, faz que a todo momento esteja subindo à tona esse lodo que dorme no fundo de cada um de nós, ao passo que numa vida simples e natural eu poderei conservar em estado de pureza as qualidades boas que sinto existirem em mim."

Fernanda me escuta em silêncio. Entramos na rua da Independência. A garoa cessou. (...)