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31 julho 2009

O Resto é Silêncio, de Erico Verissimo

"Olha o mundo com uma curiosidade temperada de indolência e uma malícia misturada de ternura". (pág. 75, 20ª edição)

O Resto é Silêncio Erico Verissimo

Ontem pelo entardecer eu finalizei a leitura de O Resto é Silêncio (1943), romance nacional do escritor gaúcho Erico Verissimo, cuja obra estou lendo em rápida sucessão ao longo dos últimos tempos. Este já é o quinto trabalho que devoro do autor, depois de ter passado por Ana Terra, Olhai os Lírios do Campo, Música ao Longe e Um Lugar ao Sol - todos resenhados aqui, com exceção do primeiro. 

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Sinopse: Abril. Sexta-feira da Paixão. A queda de uma rapariga "loura, alva e franzina" de um dos últimos andares do edifício Império é o ponto de partida para unir o trágico acontecimento à vida de sete outras pessoas, testemunhas do fato. O escritor Antônio Santiago, alter-ego do autor e uma das personagens que testemunham a queda, encarrega-se de investigar o paradeiro da moça antes do acidente (que se tem por suicídio); e, ao longo da trajetória, percebe que "os seres humanos pouco ou nada sabem uns sobre os outros".

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Influenciado pelas novelas do escritor norte-americano Aldous Huxley - as quais traduzia para a Editora Globo -, Erico Verissimo incorporou a idéia de utilizar nos seus livros a técnica da "ausência de personagem principal" e das "muitas tramas entrelaçadas", coisa que não poderia deixar de acontecer em O Resto é Silêncio.

Particularmente, gosto das duas técnicas: sem personagem central, não há a preocupação de deixar as demais caírem no esquecimento ou se tornarem psicologicamente superficiais, tendo todas elas, pois, o mesmo valor; e por outro lado, as histórias entrelaçadas (batizadas de "contraponto", por causa do romance homônimo de Huxley) deixam o enredo bem mais interessante, sem dúvida.

É curioso notar que nos livros do autor sempre há uma espécie de molde caricatural de que ele se vale para construir as suas personagens. Por exemplo: temos amiúde o caso do "aristocrata pomposo" (Aristides e Ximeno, no romance em questão), do "politicamente revoltado" (Roberto, namorado de Nora), do "ingênuo e correto com ar professoral" (Antônio), da "apaixonada platônica" (Rita), do "pobre-diabo que faz reflexões filosóficas" (O Chicharro), entre tantas outras.

Lendo assim, tem-se a impressão de que estou zombando do método de construção do autor, mas não é nada disso - muito pelo contrário. Acho incrível que, apesar de o estilo das personagens estar sempre se repetindo, a história dos livros de Erico nunca deixem de ser interessantes e, sobretudo, surpreendentes.

Quanto à questão das tramas entrelaçadas, creio que este estilo de história esteja muito em voga nos dias de hoje. Não é mesmo? Tomemos o caso do longa-metragem estadunidense Crash - No Limite, ou do muito parecido Magnólia (ou ainda do espanhol Amores Brutos e do aclamado Babel): todos trazem uma miríade de personagens - em sua maioria, desajustados e díspares - cujos dramas acabam se misturando e se esbarrando ao longo do roteiro. E é justamente isso o que acontece em O Resto é Silêncio. (Lembro que, quando criança, eu costumava vibrar com este tipo de história, e cheguei até mesmo a esboçar o script de uma desse mesmo jeito. Parou na página 70.)

Quanto às personagens do romance, em si, é muito fácil gostar de todas elas. Como sempre ocorre nos livros de Erico Verissimo, suas personagens são pessoas sinceras (na maioria das vezes), simples, ingênuas, e que buscam um sentido paupável para a existência. No entanto, apesar da simpatia que senti por todas as figuras do livro, me senti bastante inclinado a identificar-me com duas delas em especial - femininas, a propósito: Nora e Marina.

Nora é uma das jovens filhas do escritor Antônio Santiago e possui uma espécie de cinismo e ternura que, misturados,  combinam bem comigo. A discussão que ela tem com o namorado Roberto, por exemplo, entre as páginas 289 e 297, é simplesmente marcante. Assumindo o papel do "politicamente revoltado", ele repugna os hábitos burgueses e, sem querer, na cena em questão, manifesta a sua antipatia denegrindo o costume que as mulheres têm de se pintarem.

E eis que Nora retruca: "Roberto, de fato a pintura das minhas unhas não é totalmente necessária. Assim como essa sua gravata, que também não me parece absolutamente indispensável". Nora possui ainda um desligamento da realidade tal que, em determinadas situações - mesmo as mais sérias -, ela consegue se visualizar como se estivesse representando um papel de teatro ou encenando em um filme. Vez por outra eu tenho a mesma sensação.

Marina, por sua vez, é a esposa do vaidoso maestro Bernardo Rezende, que está de passagem pela cidade de Porto Alegre a título de conduzir uma orquestra no Theatro São Pedro; assumindo o papel do "vaidoso deplorável", ele tem os olhos voltados apenas para a carreira em ascensão. A propósito da perda da pequena filha Dicinha em um passado distante - e da qual Bernardo não parece sentir a menor mágoa -, Marina acha o mundo triste, hostil e opaco, além de estar sempre na ânsia de encontrar algo que mude o rumo de sua vida.

Enfim... Estamos talvez diante de um dos romances mais maduros e profundos do autor, O Resto é Silêncio, sendo até mesmo considerado por muitos críticos estrangeiros como "a essência da literatura brasileira". É um romance também bastante sombrio, talvez o mais sombrio de sua obra.

Da minha parte, a minha confiança em Erico ainda está alta. Vamos esperar para ver o que Clarissa e Caminhos Cruzados têm de bom para trazer.

(Pequeno parênteses: lamento apenas o fato de eu, mais uma vez, ter sido vítima dos editores que insistem em colocar revelações de enredo nas orelhas dos livros e afins. Se bem que, nesse caso, confesso ter sido eu o único culpado: li sem querer a Crônica Literária que está no final da edição, sem nem mesmo ter acabado a leitura do romance. Tsc, tsc. Resultado: fiquei sabendo antes do tempo que a personagem... Ah, deixa pra lá.)

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Segue abaixo um dos trechos mais interessantes do livro, na minha opinião. Há outros tão e mais interessantes quanto ele, obviamente, mas resolvi transferi-lo para cá por causa da brevidade. Está localizado na altura da página 285 - 20ª edição.

É uma pequena passagem que trata de uma conversa entre o jornalista Roberto e o ex-tipógrafo O Chicharro. Este último e misterioso senhor, divagando, afirma:

"Você é muito menino, ainda não sabe de certas coisas... Mas viver é morrer em prestações. Cada criança que nasce assina com a vida um contrato de compra e venda... e nós nunca sabemos o prazo certo do vencimento. [...] A criança assina o contrato e o vendedor, que é a Morte, passa a cobrar as prestações anualmente. Cada ano nós morremos um pouco. Quando vamos ficando velhos, as prestações já não são anuais, e sim semanais. Por fim o contrato se vence. E o pior de tudo é que nós continuamos sem saber o que compramos. Por acaso você sabe?"

18 julho 2009

Sobre a fragilidade dos sonhos - parte primeira.

Nota:

"Fragilidade dos sonhos" é uma expressão literária que me lembra muito uma música. Uma música instrumental chamada "Best Unsaid", do compositor norte-americano Michael Brook. Quem tiver a saudável oportunidade de escutá-la, escute. É uma linda melodia: suave e ondulante como o marulho de um oceano, dessas que nos fazem pensar em dias melhores, em desligamento da realidade, em pródigos dias de utopia... Coisas desse tipo.

Bem, o texto a seguir fala de um episódio que ocorreu comigo e com uma amiga, há muito tempo - ainda na época em que Crepúsculo não era febre, em que Barack Obama não era presidente dos E.U.A e em que eu acreditava na boa fé ingênua das pessoas. Na realidade não sei por que razão escrevi sobre isso, quais as forças que me obrigaram a fazê-lo.

A verdade é que o escrito aí está.

O final pode ser interpretado como uma filosofia salvacionista barata, mas eram essas as idéias que povoavam a minha cabeça na época. E como o objetivo aqui é ser sincero, não pude deixá-las passar. Tentando ofuscar um pouco essas filosofias de folhetim, me senti inclinado para o humor na hora de escrever esta primeira parte do texto; na segunda, a tendência foi mais para o lado sério. Não sei se fui bem-sucedido em qualquer uma das duas.

A verdade é absoluta e sempre triunfará. Não há nada de errado nisso, apenas não é assim. (Mark Twain)

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"Vamos rápido, Marlo... Ou você quer perder a aula da professora Fátima?", diz Sabrina, à minha frente, enquanto percorremos os corredores apertados do Shopping Center Del Paseo, abarrotado de gente naqueles dias de outubro. Minha amiga está a mais ou menos dois metros de distância de mim e, preocupada com o horário da aula de Biologia, faz questão de andar mais rápido que eu, que não estou tão empolgado quanto ela.

"Se você me esperasse, Sabrina, ficaria mais fácil acompanhá-la", digo. Não estou muito familiarizado com os antros labirintosos do Del Paseo, e perdê-la de vista ali seria algo desastroso. Ela então abre os braços, divertida. "Tudo bem, tudo bem", concede e atrasa o ritmo, sempre olhando para o relógio do pulso e para as fachadas das lojas ao redor.

São duas horas de uma tarde de sexta-feira, e estamos procurando juntos naquele shopping um restaurante que possa nos oferecer comida boa e barata àquela hora do dia. Saímos do colégio à uma hora da tarde, pegamos o bonde que vai direto ao Del Paseo (estabelecimento mais próximo) e agora cá estamos, à procura de um almoço decente, antes que a aula de Biologia comece e tenhamos de assistir à preleção da professora Fátima mortos de fome.

"Essas aulas em horários quebrados são ridículas", Sabrina fala, desviando-se das pessoas e abrindo caminho. Sigo-a por trás, cruzando com os transeuntes. "Poderiam colocar todas em um turno só", ela continua. "Ficaria bem melhor, bem mais fácil". Um curto silêncio. "O que será que há de errado com as autoridades?"

"Olha, podemos comer um hamburguer", proponho, já tentando acompanhar os passos da minha amiga, que outra vez aumentaram e me deixaram para trás. "Ou um simples Kalzone", arremato. Mas ela olha para mim por sobre o ombro, sorri o seu sorriso de esfinge, e corta: "Não fale besteiras. Almoçar um hamburguer? Um Kalzone? É por isso que você não se alimenta direito, menino".

É por isso que você não se alimenta direito. Faço reflexões. Sabrina não é do tipo de garota que se preocupa em ter uma alimentação saudável, pelo menos não em larga medida. Eu sei disso. Muitas horas de conversa já me revelaram esse detalhe. E ela também não é do tipo que se preocupa febrilmente com o horário de uma aula. Por outro lado, não sou do tipo de pessoa que come hamburguers e Kalzones toda a semana - na verdade, sequer me lembro da última vez em que comi este último.

As coisas estão trocadas, concluo. Comportamentos contraditórios em pessoas que não apresentam determinado naipe de personalidade. Isso geralmente acontece em indivíduos que se encontram sob pressão.

"Aqui!", exclama Sabrina no momento em que entramos na praça de alimentação e passamos pelo mosaico grandioso que há no piso da entrada. "Já sei, comeremos comida chinesa", diz, escrutinando os arredores. "É uma comida saudável e barata, pelo menos até onde eu saiba", conclui.

As vidraças do shopping, em tons azulados, lá no alto, deixam passar a luz do dia e a transformam em feixes luminosos coloridos, que recaem sobre o piso lustroso de granito. Pelos meus olhos desfilam as fachadas das lanchonetes e dos restaurantes. A verdade é que as minhas costas estão totalmente doloridas por conta da mochila e do enorme peso que ela traz, e a minha vontade real é de sentar sem se importar bem onde. "Ótima escolha, comida chinesa", concordo, e me ponho a procurar mesas vazias.

Encontro uma, sento-me pesado a uma das mesas e ponho a minha mochila ao lado, em uma das cadeiras de alumínio. Assim é melhor, concluo, executando uma série de leves exercícios corporais. E bate então uma saudade da época em que eu levava para o colégio uma mochila com rodinhas, e saía arrastando-a pela rua, de mãos dadas com a minha mãe. Minhas costas agradeciam por aqueles dias.

Lá na frente, já na fila do estabelecimento e com bandejas e pratos na mão, Sabrina acena para mim e pergunta com gestos o que eu vou querer. Abano a mão e grito: "Qualquer coisa!" Ela sorri e se volta novamente para o balcão. Consulto o relógio do celular. Fico observando os dígitos por um bom tempo, até perceber que já é tarde demais.

Quanto a mim, tenho a leve sensação de que não vamos assistir a aula de Biologia nenhuma.

[Para ser sincero, tenho um escondido e tépido desejo de não comparecer a esta aula. Não que eu seja gazeteiro, vagabundo ou simplesmente desleixado - longe disso. Acontece que a professora Fátima tem uma famosa e asquerosa tendência a querer mostrar o lado negro e vil da Biologia para os seus alunos; entenda-se por "lado negro e vil" todas aquelas fotos repugnantes de feridas carnais, lesões epidérmicas e vermes saindo pelas bocas de um mortal. Eu já vi isso uma vez. E até mesmo, na penumbra da sala iluminada apenas pelo retro-projetor, vi a professora Fátima, a um canto, sorrindo entre divertida e irônica ante a pavorosa surpresa dos alunos. Ela é sádica, acima de tudo, e não poupa palavras grotescas durante as suas preleções.

Hoje, no caso, às duas horas da tarde, teremos uma aula sobre Doenças Sexualmente Transmissíveis, com direito a vídeos de dissecação de genitálias e fotografias com avisos do tipo "Conteúdo Não-Aconselhado para Pessoas Emocionalmente Instáveis". Certa vez, um amigo meu, durante uma dessas aulas tenebrosas, me confessou: "Droga, Marlo, vendo essas coisas a gente até perde a vontade de ir para a cama com uma garota!" (Lembro bem dessas palavras saltando no meio da escuridão e me pegando de surpresa. Pobre Rafael... Por onde será que ele anda hoje em dia? O que estará fazendo?)

Pelos quatro cantos do colégio percorre o rumor de que a professora Fátima, sexualmente impotente após um acidente com barbitúricos, desconta a raiva e a amargura nos alunos. Será verdade? Ninguém sabe. Mistério.

É por isso que, depois do almoço, não me sinto totalmente inclinado a entrar naquela classe. Não sem antes me certificar de qual é o "espetáculo" que a professora Fátima nos reserva.]

Cruzo então as mãos sob a nuca e, quando me ponho a contemplar a grande cúpula de vidro que há sobre a praça de alimentação do Del Paseo - uma clarabóia bem-feita e digna de apreço -, Sabrina chega com uma bandeja, dois pratos fumegantes e dois copos com suco. Põe tudo em cima da mesa e se senta à minha frente, arrastando a cadeira ao fazê-lo.

"Suco, Sabrina? Suco?!", brinco.

"Eles estavam sem Coca".

Coço a cabeça. "Está vendo? Esse é um dos problemas do monopólio".

(...)

Sobre a fragilidade dos sonhos - parte segunda.

(...)

"Grande cavalheiro você é", ela brinca e tira o garfo e a faca do invólucro de plástico. "Sequer me ajuda a carregar as coisas!" Sorrimos e começamos a comer sossegadamente. Há por todo o ambiente um zumzum sedativo de vozes de pessoas que conversam e talheres que tilintam. Ponho um naco de frango na boca e curto um pouco o sabor daquele incrível molho de "não-sei-o-quê".

"Está gostoso", aprovo. "Confesso que você fez uma ótima escolha".

No entanto, a nossa paz dura pouco, ao passo que, ao nosso lado direito, em uma das mesas vizinhas, acontece um espetáculo deplorável: um grupo de adolescentes competem entre si para ver quem arrota mais alto. Eles bebem goles e mais goles de Coca-Cola, concentram o gás na garganta e arrotam. O barulho é poderoso e enche o lugar. Há garotas no meio do grupo, também, percebo, o que é mais execrável e hediondo ainda.

Volto a cabeça e digo, alto, sorrindo: "Poxa, Sabrina, estamos mesmo cercados por imbecis. O que a gente faz?" Um dos adolescentes sardentos olha para mim, tentando dar ao olhar um caráter de fuzilamento, mas a única coisa com que ele fica se parecendo é um boi inofensivo doente ruminando capim. Um outro rapaz, mais baixo e de nariz aquilino, fica tentando me encarar com ares de irascível, sem sucesso.

Com uma das mãos, Sabrina transforma um pedaço de guardanapo em uma pequena bolinha de papel e, fazendo mira, a lança no cabelo de uma das garotas, piscando o olho em seguida. Coisas desse tipo fazem parte da sua campanha de má vontade, da sua rebeldia organizada. E então, após muita insistência muda da nossa parte, conseguimos que os porcos saiam da mesa para se alojarem noutro lugar.

"Pensar que adolescentes como esses farão parte da nova geração e comandarão o mundo dentro de algumas décadas me deixa apreensivo", digo, bebendo um gole do suco. E arremato: "Esse suco de maracujá vai nos dar sono. Vamos dormir sobre as carteiras enquanto a professora Fátima fala de sífilis e outras coisas. Culpa sua".

Minha amiga dá de ombros, ri e anuncia: "Escuta, nós não vamos para essa maldita aula de Biologia. Já está muito em cima da hora. Percebeu? E, convenhamos, conversar sobre qualquer coisa é mais interessante do que olhar para aquelas fotografias terríveis que a professora Fátima coloca no retro-projetor. E depois do almoço, então! Acho que eu sou capaz de passar mal. Tudo bem?" "Tudo ótimo", respondo.

"Fechado. Mas será que vamos ser suspensos por causa da falta?", ela pergunta, mais brincando do que falando sério. "Tomara que sim, sabe", respondo, também na brincadeira. "Ficar uns dias sem a companhia do Túlio [nosso professor de Física] seria muito bom." (Ele é tido como um dos professores mais carrascos e ignorantes do nosso colégio. Até mesmo os coordenadores já travaram rixas com o velho Túlio. Ele é detestável, tão detestável que nem as pessoas detestáveis o suportam.)

Sabrina sorri melancolicamente ante a visão do irascível professor de Física, suspira e deixa o garfo a meio caminho da boca, com pedaços de macarronada pendendo do talher. Ela então gira o garfo lentamente em 360 graus - no seu rosto não há mais o sorriso -, enrodilhando a extensão do macarrão e, só depois que os fiapos estão todos fixados, ela os leva à boca. Pelos anos de convivência que tenho com esta menina, sei que ela está procurando palavras para iniciar um diálogo mais sério comigo.

E, de fato, é o que acontece.

"Às vezes", ela começa, "eu fico pensando em como seria bom se nós não dependêssemos de um colégio para sermos alguém na vida. Pense bem. Não seria? Não quero dizer só os colégios, mas todo o tipo de estabelecimento que é de certa forma 'ruim' para o nosso ego, para a nossa... alma, sei lá... para o nosso bem-estar. Mas, não: temos de passar por lugares maçantes, temos de conviver com pessoas imbecis, fazer relações com pessoas imbecis, para depois pisar em cima delas e sorrir para um ideal apagado".

Quem está falando não é a Sabrina, penso, divertido. É Henry David Thoreau, seu escritor irreverente favorito.

Olhá-la falando daquele jeito, vestida com o uniforme de uma instituição educacional, me faz sorrir com o canto da boca. Penso: O problema é que ela lê muitos livros de literatura que tratam de denúncia pública. Esse tipo de literatura nos faz sentir na pele a dolorosa pulsação da existência humana e das mazelas que a acompanham. De alguma forma, ela pensa nisso. De alguma forma, a maioria das pessoas que me cercam pensam nisso: na sofrida labuta que os mortais têm de levar para encararem a vida.

"Eu sempre quis ser pintora, sabe?", ela continua, mordendo um pedaço de frango empanado. Eu sei que ela sempre quis ser pintora. Sabrina continua: "E certo dia resolvi dizer isso para a minha mãe, apenas por brincadeira. Queria ver qual era a reação dela. Mas quis parecer que eu estava falando sério, e que aquela seria a resolução da minha vida. Então disse: 'Mãe, vou abandonar os estudos e ser pintora. O que a senhora acha?'"

"Sabe o que foi que ela respondeu?", prosseguiu. "Bem, primeiramente, é lógico, ela ficou super-preocupada, assustada mesmo. Achou que eu estava enlouquecendo, achou que eu estava doente, delirando. E disse: 'Mas, minha filha, ser pintora... ser pintora não dá dinheiro. Ninguém vive da venda de telas. Faça alguma coisa que lhe dê finanças melhores e, depois, quem sabe, você pratica a pintura como hobby'".

Percebi, meio melancólico, que não era só a mãe de Sabrina que lhe vedava o sonho de ser pintora, mas a sociedade humana inteira. A voz da sua mãe era acompanhada pela voz das convenções sociais. "É curioso", verbalizo, "mas ninguém tem a coragem de chegar para um jovem e dizer: 'Vá lá, meu amigo, vá ser pintor, ou escritor, ou fotógrafo... Contanto que você faça aquilo de que goste!' Incrível, não é? Ninguém tem a coragem de dizer isso, embora todos tenham o impulso; embora todos saibam que isso deixaria as coisas mais fáceis".

E penso: Não é a primeira vez que eu tenho uma conversa deste tipo com alguém. E não será a última. É o tipo de conversa que pessoas que sabem estar desamparadas têm umas com as outras.

"Não é chato receber na cara a afirmação de que os nossos sonhos não valem a pena?", Sabrina pergunta. E fica calada, mastigando. Esta pergunta tem um peso excessivamente desagradável, um peso de que toda a humanidade quer se livrar, concluo. É uma indagação que traduz o sentimento desconfortável de milhares de pessoas no planeta inteiro.

Balbucio alguma evasiva em resposta. Ficamos na esteira dessa conversa ainda por um bom tempo. Enquanto outras pessoas, com bandejas na mão, procuram um lugar para se sentarem, eu e ela conversamos aspectos de metafísica e do sofrimento que aflinge a alma da maioria dos mortais.  Até que terminamos o nosso almoço e fomos rever assuntos de Química, sentados perto de uma fonte d'água que não estava funcionando direito.

"Niels Bohr era gênio", ela comenta, rabiscando uma espécie de modelo atômico no caderno.

De qualquer modo, a única coisa de que ainda me lembro bem neste dia - neste dia de sexta-feira, às portas do vestibular, com dezenas e dezenas de tópicos a conferir para as provas - foi que, na hora de nos despedirmos, na saída do estacionamento do Shopping Del Paseo, Sabrina colocou sobre os ombros a sua mochila de ursinho e, sorrindo para mim o seu eterno sorriso de esfinge, apenas balançou a cabeça. Balançou lentamente, sorrindo, cerrando os olhos um pouco. Depois, sumiu-se por entre as fileiras de táxis, acenando.

Fiquei com a impressão daquele sorriso e daquele balançar de cabeça por muito tempo ainda e, talvez somente hoje, percebi o que significavam. De certa forma, Sabrina estava querendo dizer que, efetivamente, por mais que digam o contrário - pais, professores, amigos - a verdade é que nós não pertencemos a este mundo real, de injustiças e incoerências, onde raramente temos a oportunidade de vingar nossos sonhos. Não: com aquele sorriso e com aquele meneio de cabeça ela quis dizer que pertencemos a outro mundo, um mundo de ilusões, de possibilidades amplas, flexíveis, pródigas, alheio à realidade contundente, onde fazemos aquilo que queremos, a nosso bel-prazer, e mandamos os outros às favas sem se importar com as conseqüências.

Não sei bem por quê, mas a minha interpretação foi essa.

Ela pode estar errada; e a única coisa que a minha amiga quis dizer com aquele sorriso foi: "Tchau, Marlo. Boa sorte nos estudos". Mas a verdade é que raramente sabemos o que um sorriso quer dizer. Ainda bem.

07 julho 2009

Um Lugar ao Sol, de Erico Verissimo

um lugar ao sol

Hoje - ao final de uma tarde fria e monótona de inverno, ao longo do qual praticamente não fiz nada além de ler e comer Fandangos -, finalizei a leitura de um belo e inesquecível romance nacional: Um Lugar ao Sol (1936), do incrível e ímpar escritor gaúcho Erico Verissimo. (Sem acento, mesmo!)

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Sinopse (Livraria Travessa, com algumas modificações minhas): [Depois que o pai é assassinado a mando do prefeito de Jacarecanga e a família perde seu suntuoso casarão por uma hipoteca não paga, a jovem professora Clarissa se muda para Porto Alegre com a mãe, Clemência, e o primo, Vasco. Primeiro eles se hospedam na pensão de tia Eufrasina; depois, na casa da professora Fernanda; e, enquanto Clarissa enfrenta precocemente a luta pela sobrevivência na cidade grande, Vasco se envolve com a boêmia local e conhece um estudante de medicina cujas atividades revolucionárias incitam a ira do Estado policial.

Uma miríade de subtramas e personagens secundários desfila ao longo do romance: um conde austríaco bem-apessoado e cavalheiresco que lê Dom Quixote; uma dona de pensão pardacenta e bolachuda, mas extremamente simpática; um ex-bancário que aprecia as mais finas valsas de Chopin; um imigrante espanhol que vive a falar da política brasileira... O resultado é uma dose alentada de vida, capturada em sua essência mais laboriosa e vibrante, por vezes negra, mas sempre profundamente emocionada.]

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O que falar de um livro cuja leitura tanto amámos? Como traduzir em palavras todos os sentimentos, imagens e reflexões que aquelas páginas nos despertaram? Eu não sei muito bem como fazer isso. Corro o sério risco de parecer bajulador demais, mas a verdade absoluta é que Erico Verissimo mudou a minha concepção do que é possível esperar da literatura brasileira - aliás, é uma pena que ele já tenha falecido há 34 anos e nada mais seu venha a ser publicado.

Antes, eu lia escritos de certos autores nacionais pomposos e invariavelmente acabava pensando: "De onde será que vem toda essa aura ao redor do Fulano? De onde vem esse título de 'um dos melhores romancistas do Brasil' de Cicrano? Não vejo nada de brilhante nestas páginas". Sim, era isso o que eu pensava quando entrava na minha livraria predileta e percorria as prateleiras dos meus conterrâneos. Julgava a literatura brasileira algo estéril, seco, opaco, desprovido de verdadeira arte; porém, com a aparição de Verissimo, vi que ainda é factível descobrir nomes brasileiros realmente bons no ramo da 3ª Grande Arte.

Mas, sem mais volteios, vamos ao romance em si. Um Lugar ao Sol é a continuação de Música ao Longe (já resenhado aqui no Artigos Efêmeros), que por sua vez é a continuação de Clarissa (obra cuja posse pretendo ter dentro em pouco). Apesar de comporem uma trilogia, os três romances podem ser lidos muito bem separadamente em ordem aleatória, sem que isso afete qualquer coisa na compreensão da história da Família Albuquerque - os personagens e as situações anteriores são apresentados com a devida contextualização.

A prosa rica em adjetivos inauditos e metáforas bem elaboradas, além de um texto enxuto e desprovido de rodeios - sem contar, ainda, com a incrível atualidade do livro -, faz de Um Lugar ao Sol um romance cuja leitura não podemos postergar por falta de interesse ou por monotonia. Apesar de ter sido escrito no começo do século passado e de ter algumas conjugações verbais fixadas no "tu" (coisa de que algumas pessoas não gostam), o estilo de escrita é agradabilíssimo e conversado, espraiado, sem passagens muito densas.

E, nossa, como é fácil gostar dos personagens do livro! Na verdade, como é fácil se sentir atraído por todos os personagens que o autor cria! São sempre indivíduos simples, frugais, carcomidos por pequenas frustrações e sempre à cata de um sentido aceitável para a vida! Temos, no caso de Um Lugar ao Sol, o jovem Vasco Bruno Albuquerque - primo de Clarissa -, em cujas veias parece correr ainda o sangue aventuresco e rebelde do pai, que fugiu da família há tempos e foi percorrer o mundo sozinho "como um gato orgulhoso". É essa espécie de atavismo que faz Vasco sentir uma ânsia desenfreada por abandonar tudo e todos e andar pelo planeta de Norte a Sul, como o pai, conhecendo lugares longínqüos e misteriosos, vivendo do que o dia traz, do que as pessoas oferecem e do que é possível fazer com as próprias mãos - sim, me senti brutalmente identificado com este sujeito, Vasco Bruno.

Ainda falando de personagens: outra que me chamou bastante atenção foi "la bela madonina dos olhos tropicales", Lu, dezessete anos, cuja irreverência e despropósito para com a família me fez lembrar e muito os jovens desvairados de hoje - xingando os pais, batendo os pés no chão, fugindo de casa para ir com o namorado às baladas da noite no Cassino. O comportamento da garota é tão próximo dos dias atuais que, sem querer, acabei imaginando a jovem Lu vestida de calças jeans e camisetas apertadas contra os seios - visto que naquela época provavelmente imperavam os vestidinhos bem-ajustados e comportados. Curioso, não, a força da expressão?

Bom, não quero me demorar aqui falando de cada um dos muitos personagens do livro... Mas não poderia deixar de citar também o velho, irascível e cínico dr. Seixas (Seria o mesmo de Olhai os Lírios do Campo?), que, iludido com a vida e com os homens de idade, vituperava para Dona Magnólia e para o rev. Bell: "O mundo está perdido! E a culpa é nossa, dos velhos, que deixamos para os jovens todos os nossos malditos erros! É por isso que eles são assim, arredios!" E não posso deixar de citar a hilária cena em que, entrando na casa do sr. Orozimbo, Seixas flagra Lu e o namorado na cozinha, entregues a amassos pesados, somente para falar: "Então, brincando de ioiô?" (xDDD)

Existe uma imensa amplitude de reflexões que o autor empresta aos seus personagens ao longo da obra; reflexões que vão desde a vacuidade carnal do amor até a filosofia por trás da arte de escrever livros, passando pela metafísica profunda da existência dos seres humanos e pelos sentimentos emanados por causa da simples falta de um emprego. Em dados momentos, damos com Noel pondo-se a pensar sobre o trabalho artesanal e regozijante que é fazer literatura, enquanto, do outro lado da cidade, o conde austríaco Oskar conversa com Vasco sobre a existência humana e a resume em metáforas, enquanto tomam café.

"Eu acho, jovem amigo", diz ele, "que a humanidade não passa de um parque de diversões que foi lotado por máquinas que os homens construíram - máquinas cinzentas, sujas, engraxadas, que espirram óleo nas pessoas que estão no parque. E eu, como bom gentleman, tento apenas passear pelo belo parque, fazendo o possível para que estas máquinas terríveis não me espirrem qualquer coisa da sua sujeira". (Estas palavras são minhas, e não do autor; somente resumi o pensamento do personagem Oskar.)

Enfim... É a prosa irresistível de Erico, a boa edição da Companhia das Letras (se bem que, para uma edição comemorativa, faltou as orelhas), o otimismo incurável da personagem Fernanda (24 anos e já dona-de-casa), a insaciável sede de viagens de Vasco ("O mundo! Que coisa bela é o mundo!"), as aventuras rocambolescas de Lu ("Ela é jovem, está em busca do prazer."), as frustrações cômicas de Amaro Terra ("Ex-bancário. Desempregado e pianista."), a docilidade frágil e enervante de Clarissa ("Ela sorri aos canários da primavera.") - enfim, é tudo isto, e mais todo o resto, que fazem de Um Lugar ao Sol um dos livros mais impressionantes que já li.

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Aqui vai um pequeno fragmento do texto que, como de praxe, sempre costumo colocar no final das minhas resenhas. Longe de ser "O melhor" trecho, esta passagem me chamou a atenção apenas por ser de uma docilidade e expressão únicas. (Não sei se quem que não leu o livro vai achá-la tão marcante quanto eu achei.)

Na cena em questão, acontece que o dr. Seixas é chamado em domicílio para dar o prognóstico do enfermo sr. Orozimbo, e, atendendo aos pedidos insistentes de Dona Magnólia, vai ver também o caso da irreverente Lu e "dar-lhe conselhos para que ela pare com esta revolta enervante" e com esta vida de "rapariga farrista".

Mas o dr. Seixas, como sempre, apesar de ser amigo da família, acaba se revoltando contra a arenga da senhora e despeja:

"Olhe bem, dona Mag. Nós somos os culpados, nós os mais velhos. Fazemos guerras, loucuras, não temos juízo no miolo, estragamos o mundo e os jovens que vêm atrás de nós é que sofrem. Que culpa têm eles? Por que é que fizemos a Grande Guerra? Que foi que o mundo lucrou? Lucrou isto: toda essa pobre rapaziada hoje não sabe a quantas anda. Nós os velhos malucos, viciados e egoístas é que temos a culpa..."

O dr. Seixas fumava, sombrio. Continuou:

"Não adianta, não adianta. Hoje, depois... Mais tarde ou mais cedo a Lu vai embora, foge. Tem dezessete anos. Os mais moços não compreendem os mais velhos. É a vida. Não se iluda."

(...)

O doutor entrou no quarto de Lu. Segurou a menina pelos braços e olhou-a bem no rosto. Lu sorriu. Com o toco do cigarro colado ao lábio inferior, o doutor olhava firme para aqueles olhos dum verde sensual fresco e vítreo. Depois sorriu e largou-a. Voltou para a sala.

"Não houve nada. Boto a minha mão no fogo por aquela garota."

Enterrou o chapéu na cabeça e encaminhou-se para a porta. Voltou-se antes de sair.

"Não tem jeito, dona Mag. Nós somos os culpados. Nós, as pessoas que já estiveram antes aqui nesta terra e fizeram do mundo um lugar pior. Não se iluda. E não culpe a menina."

Disse isso e se foi.

***

(VERISSIMO, Erico. Um Lugar ao Sol, págs. 362-3. Companhia das Letras, 2005.)

02 julho 2009

A Paisagem para além da janela do trem - parte primeira.

Bem, este texto se trata basicamente de uma história fantástica que eu criei levado em grande parte pela impulsividade frenética; isto é, foi um texto feito quase que às três pancadas, como se diz, à base do "Quanto mais imaginação e imprevisibilidade, melhor". Portanto, se porventura o leitor achar alguma passagem enfadonha, incongruente ou simplesmente aborrecível - o que sem dúvida vai acontecer -, então perdoe a mente conturbada do escritor que a redigiu. :)

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estação meires

A Estação Ferroviária Meires fica localizada à margem da cidade de Fortaleza; digo, muito distante mesmo da metrópole, numa região rural e silenciosa aonde quase ninguém consegue chegar de automóvel, a vários e vários quilômetros dos ônibus barulhentos e dos edifícios cheios de gente que abarrotam o centro da Cidade da Luz. Se alguém se der ao trabalho de consultar um mapa geográfico, por exemplo, de qualidade cartográfica ímpar, verá em detalhes que a Estação Meires fica situada a aproximadamente 50 quilômetros da periferia de Fortaleza, na direção Leste da Rosa dos Ventos, rumo às Colinas Distantes, em uma localidade onde os trens são tidos como o principal meio de transporte.

Acho que isso é o máximo que eu posso dizer.

Depois de sair da cidade a bordo de ônibus intermunicipais muito surrados (com direito a motoristas ouvindo "Let the Sunshine"), aqui cheguei eu, na Estação Ferroviária Meires, praticamente fugido do centro urbano e dos aborrecimentos que assaltam nossos dias. Estou sentado em um dos muitos bancos de madeira que pontilham a plataforma de espera da Estação Ferroviária Meires, uma grande plataforma de concreto envelhecido.

Devo dizer que não há mais ninguém além de mim por aqui, ninguém em meu campo de visão, nenhum ruído humano. Apenas eu, mesmo, como indivíduo.

Ao meu lado, sobre o banco de madeira, está a minha mochila de viagem com os meus poucos pertences dentro. À minha frente, em um nível um pouco mais rebaixado, estão os trilhos do trem. Para além deles e para aquém do banco onde estou sentado não há vivalma num raio de muitos quilômetros, exceto, é claro, o sujeito que me vendeu as passagens: um chefe-de-estação idoso que tem o olhar perdido e vago e que gagueja a cada duas palavras ditas. Lá está ele, a dez metros atrás de mim, assistindo a um programa de televisão dentro da sua minúscula portaria onde se lê sobre a entrada: Compra de Passagens. Ele usa sobre a cabeça uma espécie de quepe militar e fuma vez por outra um charuto barato. O som da sua televisão chega até os meus ouvidos apenas como um leve murmúrio chiado e artificial, ao longe, intercalado por estática; o vento se encarrega de levar estas ondas sonoras desagradáveis para bem longe daqui.

Da minha parte, enquanto o trem não dá as caras por aqui, ponho-me a esquecer o ruído distante da televisão do senhor e a refletir sobre a beleza misteriosa deste lugar. Olho ao redor: a Estação Meires é um lugar interessante e bonito porque é um lugar vazio, amplo e plano – e silencioso, conseqüentemente. Acima da minha cabeça, a muitos metros, estende-se o clássico telhado de ferro na forma de parábola, em cujos trançados de vigas muitos passarinhos já fizeram seus ninhos e voam de lá para cá, cantarolando. A imensidão espacial que há entre esse telhado de ferro e o piso de concreto da estação deixa qualquer um enlevado. Para os lados do banco onde estou sentado, consigo apenas divisar alguns contêineres de carga que jazem silenciosamente sobre o piso da estação, uns atrás dos outros e uns sobre os outros, à espera de algum guindaste que os coloque sobre os vagões de algum trem específico. Uma golfada de vento forte quase regular atravessa a Estação e faz voar uma miríade de papéis abandonados.

O silêncio é acolhedor. O ruído do redemoinho das folhas de papel é hipnótico. Não posso deixar de perceber estas maravilhas.

Ainda de onde eu estou, posso divisar os trilhos de trem que surgem lá fora, sobre a terra batida das Colinas, e que entram na Estação como o curso de um rio canalizado e manso. Lá fora, para além da Estação, claro, o sol: brilhando e fazendo do dia um ótimo espaço para divagar. O céu é limpo e azul, e as nuvens, esparsas.

Ótimo horário para escrever.

Na realidade, eu não poderia ter escolhido um dia melhor para iniciar a minha viagem às Montanhas.

Espero que Fernanda não se importe com a minha maneira particular de procurar inspiração e fugir das pessoas.

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[continua...] <-- Parece coisa de folhetim ou de filme de segunda categoria.

A Paisagem para além da janela do trem - parte segunda.

Continuação do post anterior. Mais loucuras, mais imprevisibilidades, mais incongruências. (Assim pareço até o Erico Verissimo, criticando impiedosamente o próprio trabalho.) ^^

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A primeira coisa que eu percebo quando entro no vagão comercial de um trem da tal companhia Railway Trans-142 é que a cabine para os passageiros é muito grande para alguém que pretende fazer uma viagem de dois dias sozinho, como eu, agora, por exemplo.

(Bom, deixe-me explicar o que aconteceu antes. Há alguns minutos, enquanto eu esperava o trem na Estação Meires, este surgiu deslizando silenciosamente pelos trilhos que vêm do campo e conduzem à plataforma, saindo da luz do sol de lá de fora e entrando na sombra daquela imensa estrutura. A locomotiva demorou alguns segundos para estacar, e, quando o fez, um halo gigante de fumaça cinza se formou ao redor da maquinaria [locomotiva a vapor!]

Ótimo. Peguei minha mochila sobre o banco e subi então da plataforma diretamente para o vagão dos passageiros. Agora entro na cabine, percebendo não sem surpresa que eu sou o único passageiro – ou pelo menos um dos únicos – que está a bordo deste trem.)

Entro e me detenho a observar por uns instantes a cabine dos passageiros. É aqui onde eu vou passar a viagem inteira. Há, do lado direito do aposento, uma grande janela envidraçada que ocupa toda a área da parede (ou pelo menos boa parte dela), e que fornece uma bela vista panorâmica da zona rural das Colinas Distantes – um campinho de futebol abandonado, uma casinha rústica de tijolos com quintal, uma indústria fumegante lá ao longe, uma árvore isolada e esquecida dando sombra para ninguém.

campos verdes blog

A luz do sol de 9 horas e 30 minutos da manhã entra por esta janela e inunda toda a cabine, dourando o assoalho de madeira e as prateleiras polidas com uma coloração âmbar ofuscante. Todo o ambiente da cabine é requintado e feito sob medida, digamos assim, ao clássico estilo Belle Époque. Sinto-me verdadeiramente em pleno século XIX. A temperatura deve estar em torno dos 28º C, e eu finalmente vejo razão para tirar o meu casaco.

Suspiro, deixo as minhas bagagens (ou melhor, minha mochila e o meu casaco) sobre uma prateleira que há na parede – numa parte sobre a janela de vidro – e sento-me pesadamente na poltrona acolchoada da cabine; nesse ato, percebo que o tecido do estofado está rasgado em vários lugares, e uma esponja amarelada surge pelas frestas. Minha tentativa de remediar este problema, procurando enfiar as esponjas de volta aos seus lugares, é vã e acabo desistindo.

Demora mais ou menos 20 minutos para que o trem comece então a deslizar pelos trilhos, saindo da Estação Meires e ganhando os campos verdejantes das Colinas Distantes, apitando sua clássica buzina como nos tempos antigos. Este apito agudo característico de trem tem um valor sentimental desagradável muito grande para mim – é verdade. Me faz lembrar dos tempos miseráveis de criança em que Jéssica e eu íamos até a Estação Ferroviária Locastev entregar o almoço de papai, enquanto ele trabalhava como um louco na companhia, sempre sob o olhar raivoso e os sermões severos do sr. Van Dan, seu chefe. Mamãe ficava em casa preparando as comidas e cuidando da nossa criação de galinhas, enquanto Seu Leocádio vendia quinquilharias na lojinha da frente e dormia com ela de vez em quando, sem que nós, filhos, naquela época, soubéssemos.

Mas isto é passado, penso agora, enquanto olho para a paisagem viva que começa a se mexer através da grande janela da cabine. Afundo-me então na poltrona rasgada e me ponho a pensar.

Tenho a leve sensação de que, com esta viagem, estou tentando fugir da cidade e da civilização que nela vive. Estou fugindo de todos: da minha família desagradável, dos meus amigos que nunca tive, das minhas namoradas desvairadas, dos meus sócios interesseiros e ambiciosos. Para ser sincero – sincero de verdade, pois há pessoas neste planeta que mentem com sinceridade – acho que essa questão de fugir dos outros seres humanos e tentar encontrar uma certa paz interior não é algo condenável – de maneira alguma. Creio que este tipo de liberdade não nos deveria ser negada; não somos necessariamente obrigados a viver em sociedade sempre. Também faz parte da natureza humana isolar-se.

É o que eu acho.

Fecho os olhos e recosto a cabeça na guarda da poltrona. O movimento trepidante do vagão me deixa sonolento.

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[Continua...]