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26 abril 2021

Auto-engano, de Eduardo Giannetti




A escrita de Eduardo Giannetti é clara e envolvente, talento que eu já havia constatado no seu ótimo Felicidade (2002) e no seu maravilhoso Trópicos utópicos (2016). Aqui, o autor se propõe a investigar ("por conta própria", como ele mesmo enfatiza no prefácio, um salvo-conduto que vem a calhar) um conceito aparentemente paradoxal no estudo da psicologia humana: o auto-engano, ou a ideia de que alguém, ou algum grupo, pode acreditar em uma coisa mesmo sabendo que essa coisa não corresponde à realidade.

A excelente introdução me induziu a acreditar que o tema seria tratado como deve: como fenômeno complexo em que estão envolvidas diversas variáveis de diferentes níveis de determinação do comportamento humano, sejam elas biológicas (filogenéticas), ontogenéticas (da vida de cada pessoa em particular) e culturais (das crenças e dos valores sociais que aprendemos a cultivar com os outros). Na introdução, Giannetti esclarece que o que chamamos de "engano" está presente não apenas na vida humana, mas na própria natureza, como aspecto central da luta pela sobrevivência e da reprodução das espécies. Obviamente, o ser humano é um ser social, porque capaz de linguagem, e isso adicionaria elementos novos ao problema do engano inter e intrapessoal. Até aqui, portanto, um olhar tão original quanto complexo sobre o tema. De quebra, imaginei, a reflexão sobre os processos concernentes ao auto-engano seria regada à boa atitude filosófica de que o autor é capaz.

Muito cedo, porém, Auto-engano (1997) começa a patinar. E patina até cair. Dois pecados capitais nos argumentos de Giannetti ficam logo evidentes para quem não é leigo no assunto: tratar subjetividade como sinônimo de mente (ou, o que é pior, de "vida interior psíquica" apartada do corpo) e confundir a ciência e o saber científico com os seus instrumentos tecnológicos. São dois erros fundamentais porque, infelizmente, o autor os repete à exaustão, o que leva ao abalo de toda a estrutura argumentativa do livro.

Se tivesse recorrido a leituras de psicologia comportamental enquanto escrevia, ou mesmo da psicogenética de Lev Vygotsky, Giannetti descobriria que é possível falar de subjetividade - do que nos torna sujeitos únicos dotados de história pessoal - como tudo aquilo que deriva de nossas experiências diretas ou indiretas com o ambiente ao nosso redor, a partir do que aprendemos a nos relacionar com o mundo, seja ele natural ou social, constituindo o que somos no momento presente. Subjetividade, por assim dizer, é todo o nosso repertório comportamental único, aprendido na vida, que sublinha nossa individualidade - e não uma instância mental autônoma situada no "interior" do ser humano. Inclusive, a noção de subjetividade como repertório comportamental aprendido no contato do sujeito com o seu ambiente único é uma das chaves para o conceito de autoconhecimento, sobre o qual o autor se debruça demoradamente em certo ponto.

No texto, o excesso de mentalismo (o entendimento de que um suposto mundo interior psíquico determinaria sobremaneira nossas condutas) descamba para os chavões da literatura de auto-ajuda: "palco da mente", "cada pessoa é protagonista de sua vida interior", "a vida de cada um é vivida de dentro", "cada um é autor de seu próprio enredo" etc. E a consequência desse tipo de pensamento, tão pouco científico quanto filosófico, é uma só, e ela não tarda a chegar: o autor diz que, assim sendo, a subjetividade não se presta de jeito nenhum a um estudo científico. Bem, felizmente há toda uma literatura especializada que o contradiz.

O mentalismo atravessa de forma tão contundente as ideias do livro que não é raro encontrar inferências curiosas como esta: "Nossas conclusões sobre nós mesmos, não importa quais sejam, são o produto de uma parte de nossa mente interagindo com outras partes dela por caminhos e de maneiras que pouco compreendemos." Ou seja, nossa avaliação de nós mesmos não vem do repertório verbal que nos é ensinado, nem dos padrões morais a que estamos submetidos: é uma luta entre partes hipotéticas de uma instância hipotética situada em lugar nenhum. Esse raciocínio solipsista, do sujeito soberano autodeterminado, ficou para trás no saber psicológico há muito tempo.

Mas o livro tem seus bons momentos, apesar de tudo. Principalmente quando Giannetti se propõe a fazer um inventário comentado das proposições filosóficas sobre o tema. O mesmo ponto forte havia sido notado por mim nas duas obras anteriores que mencionei no início. Ele sabe expor as ideias dos filósofos de modo claro e inspirador, com citações diretas e proposições próprias, e isso é vital no trabalho que ele se propõe a fazer. É pena, no entanto, que isso não sustente o edifício todo.