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14 fevereiro 2013

Viagem de autocarro, de Josep Pla

"Viaja-se, geralmente, para ver as chamadas coisas inúteis do mundo – que são as únicas importantes." (p. 16)

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Quando estive em Portugal durante a última semana de janeiro deste ano, fiz um breve passeio de mochileiro pela cidade de Lisboa, e por "passeio de mochileiro" quero dizer que andei a esmo durante um dia completo, perambulando nas imediações do Rio Tejo e do Shopping Center Vasco da Gama. O Rio Tejo exercia um grande fascínio sobre mim não só porque é um dos rios mais famosos do mundo, mas também porque sempre foi uma das principais fontes de inspiração para o poeta Alberto Caeiro, heterônimo de Fernando Pessoa.

Nesse meu turismo descompromissado com visitas a monumentos históricos e outros pontos de interesse genérico (tão apreciados pelos pacotes de agências turísticas, cujos programas acabam minando o verdadeiro prazer da viagem), fui parar na Estação Oriente, que é uma das estações ferroviárias mais próximas do aeroporto de Lisboa. Graças a uma coincidência milagrosa, ocorria nesse dia uma feira de livros nos subsolos da estação, e os volumes eram vendidos a preços bem mais baixos do que os que constavam nos catálogos das livrarias. Quando pus minha mochila no chão e comecei a folhear Viagem de autocarro (Viaje en autobús, 1942-1991), percebi que aquele livrinho escrito pelo catalão Josep Pla tratava exatamente do que eu estava vivendo naquele momento: viagens sem compromisso com o turismo comercial, viagens nas quais a principal preocupação é buscar a própria identidade.


Sinopse: Josep Pla percorre a Catalunha de autocarro. Vai de aldeia em aldeia, numa geografia rural onde a paisagem se impõe como motor para reflexões, divagações e devaneios. É uma viagem pessoalíssima, onde uma conversa aparentemente banal se transforma numa reflexão sobre a condição humana. As intuições de Josep Pla são sempre extraordinariamente agudas, e é esse um dos encantos deste livro. O que faz actualíssima esta «Viagem de Autocarro» é a escrita de Pla: de uma clareza sem um pingo de superficialidade, sempre temperada pelo sal da ironia, por vezes tocada por uma ligeira amargura que nunca se confunde com rancor. Josep Pla tinha a obsessão do adjectivo certo, e o rigor com que descreve paisagens e pessoas corresponde à capacidade rural de nomear com exactidão cada árvore, cada planta, cada elemento da natureza. Saber sempre a palavra exacta para cada coisa é um poderoso meio de transporte. É nele que Pla nos conduz ao território a que chamamos literatura.


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O livro, ainda inédito no Brasil, traz o relato pessoal das excursões de autocarro que Josep Pla realizou pela bucólica região da Catalunha, na Espanha ("Autocarro" é a palavra lusitana usada para designar o que no Brasil nós chamamos de "ônibus"). O resultado dessa viagem é contada no pequeno livro de capa verde que comprei no subsolo da Estação Oriente e li ao longo das minhas próprias viagens de autocarro, trem e metrô: fascinado pelo encanto que as paisagens da natureza despertam no viajante, Pla é levado a imergir em um mundo de reflexões sobre a condição humana e o espírito ganancioso das pessoas que trocam as experiências subjetivas mais enriquecedoras em troca de simples aquisição material.

A escrita de Josep Pla transpira a sensação de leveza, auto-ironia e aventura que perpassa pelo espírito de todo viajante itinerário. Ao longo das páginas somos convidados a participar dos diálogos entre Pla e motoristas de ônibus, jovens nativos e outros transeuntes que captam a atenção do escritor – fala-se sobre a vida no campo, a vida nas cidades grandes, os conceitos de amor, vida e morte. Dividido em capítulos curtos que, embora sejam independentes entre si, possuem uma certa ordem cronológica, a obra vai traçando um roteiro tortuoso que é pontilhado de provocações e indagações sobre a existência em geral e sobre as viagens, em particular.

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Viagem de autocarro é basicamente um livro de cunho arqueológico, na medida em que o autor busca "desenterrar" as próprias origens e mostrar ao leitor o percurso da própria identidade. É a típica obra de auto-conhecimento que visa imprimir um interesse universal nas vivências particulares do escritor – e esta é uma das vertentes da literatura de que mais gosto, tal como visto em Álbum de viagens, de Michael Crichton.

Depois de comprar o livro de Pla em Lisboa, voltei de trem para a cidade de Aveiro no final do dia. Comprei os bilhetes na própria Estação Oriente, esperei o trem chegar à plataforma e, quando ele finalmente chegou, despejei minha mochila no bagageiro acima da poltrona e comecei a ler a obra que havia acabado de adquirir. Observando os campos e as aldeias desfilarem sob a luz mortiça do final da tarde através da janela, tive a nítida sensação de que estava vivendo exatamente aquilo que Pla descreve no livro – sendo tocado pelas mesmas questões fundamentais e levado a suscitar o mesmo tipo de reflexão. Foi uma experiência muito enriquecedora.

A seguir, meu trecho favorito de toda a obra, grifado por mim:

"Tem de se viajar para se descobrir, com os próprios olhos, que o mundo é muito pequeno e que é portanto absolutamente necessário fazer um esforço para dignificar a visão até se acabar por ver as coisas em grande. Tem de se viajar para nos darmos conta de que uma paixão, uma ideia, um homem só são importantes quando resistem a uma projeção no tempo e no espaço. Não há nada como nos afastarmos um pouco para nos curarmos da psicose da proximidade, da deformação da proximidade, que nos atacou a todos. Tem de se viajar para se aprender – apesar de tudo – a conservar, a aperfeiçoar, a tolerar." (p. 17)

As fotografias que ilustram esta postagem foram batidas na cidade de Aveiro, em Portugal.