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08 novembro 2010

A estreita visão da realidade

Uma crítica ao edital da revista Superinteressante

Eu já disse isto em algumas postagens anteriores, mas acho que é sempre conveniente repetir: o blog Gato Branco em Fuligem de Carvão não se propõe a meter o bedelho em questões da vida pública, porque, embora muitos fatos sociais que rolam pelo mundo afora sejam dignos de nota, o único e primordial objetivo deste espaço é resenhar sobre literatura, música e cinema…

Bem. Acontece que, vez por outra, eu me deparo com uma coisa que não consigo deixar passar em branco. Essa "coisa" geralmente se resume a uma notícia ou a um artigo qualquer que outra pessoa escreveu em algum outro lugar. E, como só tenho este blog para publicar as esquisitas idéias que passam pela minha cabeça, minhas opiniões inevitavelmente vêm parar aqui. Só espero que um dia eu não seja perseguido por causa delas.

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Sem mais rodeios, foi hoje que folheei a revista mensal Superinteressante (edição 284, novembro/2010) e me vi lendo o editorial escrito por Sérgio Gwercman. A leitura estava correndo muito bem até surgir, logo no começo, a seguinte idéia fundamentalista que me deixou com a pulga atrás da orelha: "Faça do desenvolvimento de um exército brasileiro de nerds prioridade". Isso é um pedido ao presidente da República, o autor deixa claro.

Segundo o texto, precisamos de milhões de sujeitos-crânio que amam números e tudo mais que pode ser quantificado. Porque, segundo o autor do editorial, é desses sujeitos que o Brasil precisa para se tornar o que "todos nós" queremos: um país industrializado, carnívoro, frenético. Mas… quem disse que isso é sinônimo de qualidade de vida? Não é todo mundo que quer um crescimento econômico não-diferenciado.

Na verdade, o que matou o texto de Gwercman foi a idéia de que as ciências humanas devem, atualmente, estar em segundo plano, e a importância maior deve ser dada às exatas. Isso não é dito explicitamente no texto, mas a insinuação geral é perceptível de longe. Muitas pessoas não entendem que o problema no nosso país deixou de ser técnico há muito tempo: é agora mil vezes mais social e político.

Se um país constrói dezenas de indústrias novas por mês, a população sem privilégios continua em péssimas condições e dependendo de programas assistencialistas (viciosos) como o Bolsa Família. Se a nação constrói prédios e instituições mais modernos, muitas pessoas continuam sem ter onde morar, se o sistema reducionista dessas instituições persistir. E esses problemas não são resolvidos com crescimento econômico; pelo contrário, são aprofundados. Então, é com "um exército de nerds" que resolvemos esses problemas? Não somente.

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Não estou aqui para defender nem criticar ninguém – longe disso. Acho que tanto as áreas de ciências humanas quanto as de exatas merecem o mesmo respeito e importância. Apenas tenho a impressão de que a preferência pelas ciências exatas mostrada nesse editorial da revista está, de um modo geral, muito fanática, como se as elegesse a mais importante das áreas atualmente e afirmasse que as demais merecem menos atenção – incluindo, nessa crítica, o próprio jornalismo. Gwercman mesmo escreveu, em um tom sutil de lamento: "Mas a cada ano forma mais músicos que mecatrônicos, mais psicólogos que engenheiros elétricos". Absurdo.

Por fim, um trecho que me deixou realmente perplexo no editorial: "Há uma questão cultural a resolver: mais brasileiros gostam das ciências humanas do que de exatas". E o autor do texto completa dizendo que reverter essa situação é tarefa do presidente da República. No fundo, acho que foi essa frase que me impulsionou a escrever este post.

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Não sei… Eu estou atualmente vindo de uma instigante leitura de um livro de Fritjof Capra, O Ponto de Mutação, no qual a idéia da obsessão pelo crescimento econômico não é tão bem-vinda assim. Do que adianta, por exemplo, inúmeros engenheiros civis se formando se ainda temos uma grande parte da população mundial sem um teto para morar? Como eu disse, não são os engenheiros que vão resolver esse problema – é mais provável que os psicólogos e os assistentes sociais ajudem a resolvê-lo.

Aliás, alguém já pediu a opinião de um bom músico sobre esse assunto? Talvez ele tenha uma boa idéia também.

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Eu poderia continuar os argumentos falando de correntes yin e yang, crescimento não-diferenciado, visão ecológica e sistêmica, e várias outras coisas que pretendem frear a expansão econômica desenfreada, mas vou deixar isso para a resenha do livro do Capra – que deve sair aqui nas próximas semanas.

A tempo: mais "poesia" e menos ambição. E eu não tenho nada contra os nerds. Pelo contrário, as pessoas até me consideram um. Mas dizer que as ciências humanas merecem estar em segundo plano, atualmente, é demais para mim. Um diretor de redação precisa estar mais atento com o que escreve numa revista de circulação nacional.

3 comentários:

  1. Por alguma razão desconhecida, seu comentário não apareceu aqui, Marcos. Então vou colá-lo como apareceu no meu e-mail:

    Acho que você deveria ter se ofendido menos com o editorial, porque ele de maneira nenhuma (ao menos nos trechos citados) foi ofensivo ou mesmo infeliz com a classe de artistas ou psicólogos, ou qualquer área de humanas.

    Novamente, o editorial (segundo a sua opinião) sugeriria que as ciências humanas deveriam estar em segundo plano. Apenas lendo os trechos citados por você, o que deveria me fornecer uma visão parcial do texto (afinal citaste apenas as frases que lhe incomodaram), me parece que o editorial está preocupado com a supremacia das ciências humanas.

    Atualmente parece que a área de humanas é maior no Brasil que a de exatas, e isso seria um desequilibrio (você provavelmente concordará que nenhuma deve estar em segundo plano). Logo, o editorial convoca uma ação vinda de cima para baixo, com o objetivo de equilibrar novamente as áreas de conhecimento.

    Se houvesse um equilíbrio entre ciências exatas e humanas, talvez já tivessemos alcançado o estágio de desenvolvimento desejado.

    Você falou de crescimento econômico e qualidade de vida, e ambos os assuntos pertencem a ciência exata. Você comenta se já perguntaram a um músico como resolver um problema de sem teto, e já tivemos vários artistas como lideranças públicas, inclusive ministros.

    Eu sou um engenheiro civil, deixarei claro, que admira muito a arte. Sinceramente, o Brasil está saturado de engenheiros civis, mas como exemplo deixo a área de Estatística que é de onde a matemática, economia, turismo e inclusive diversas áreas humanas tem buscado soluções para desenvolver. Os diversos cursos de estatística foram menos alunos do que as vagas que disponibilizam ano após ano, sendo que uma área básica para diversos estudos em diversas áreas do conhecimento.

    Isso ocorre muitas vezes, porque "mais brasileiros gostam das ciências humanas do que de exatas"? Talvez.

    Mas o que eu entendi dessa convocação ao poder público é, mais pessoas tem que gostar de áreas exatas para equilibrar as responsabilidades. Isto é função básica da educação, preparar a criança e o jovem para que possa se sentir atraído tanto pela matemática quanto pela literatura. Porque se ele recebe uma educação ruim em matemática, levará esse preconceito por toda sua vida.

    Eu adoro música, arte em geral e não entendo tanto de assistência social ou psicologia.

    Mas eu concordo com o apelo do editorial porque não é só das idéias conceituais que se fazem políticas (inclusive, se elas são a única base de sustentação as políticas falharão sempre).

    Finalmente, eu acredito que o incentivo as ciências exatas deve estar no primeiro plano para equilibrar as áreas de conhecimento de regem o país. Porque um programa assistencialista, um projeto de manejo ambiental e construções familiares de baixa renda precisam de estudo de concepção, análise de risco, controle de qualidade entre outras funções que são realizadas por engenheiros e estatísticos.

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  2. E a minha resposta:

    Olá, Marcos!

    Antes de tudo, muito obrigado pela sua visita aqui no blog e pelo conseqüente comentário que você deixou. São esses comentários que me fazem continuar com este espaço e sempre buscar um aprimoramento cada vez melhor.

    Como sempre acontece com quase tudo na minha vida, me arrependo um pouco das "críticas" que faço a terceiros, logo depois de as redigir e publicar. Essa, por exemplo, foi uma delas. Escrevi-a muito impulsivamente, logo após ler o editorial citado, e, como conseqüência, saiu uma coisa muito áspera.

    Sem dúvida, concordo que nenhuma área do conhecimento humano deve predominar numa sociedade. Do contrário, teríamos uma sociedade tendenciosa e pouco eficiente na resolução de seus problemas, porque não há abordagem que sirva para resolver todos os problemas sociais dentro de um único universo conceitual.

    Tudo o que você disse foi muito coerente e bastante elucidativo, e eu discordo em apenas um único ponto: acho que o crescimento econômico se relaciona à ciência exata, e a qualidade de vida, às humanas. E as duas estão interligadíssimas, porque a qualidade de vida depende do progresso do país e o progresso só poderá ser feito se houver uma boa base humana.

    Também estamos de acordo com o fato de que a educação deve mexer com suas bases para que a matemática (de um modo geral) se torne mais atraente para os jovens. E foi extremamente pertinente lembrar que já tivemos ministros e líderes públicos advindos da arte.

    O que me incomodou no editorial não foi na verdade o que ele propõe, ou seja, a idéia veiculada de um incentivo maior às áreas exatas. Penso que o que me deixou desconfortável foi mais o tom em que o autor redigiu seu texto... Como a SUPER adota a linguagem informal em seu conteúdo, essas idéias políticas acabaram parecendo textualmente tendenciosas, quase irônicas - aparentemente, repito.

    Enfim, paro aqui para não prolongar demais o espaço dos comentários, e me desculpo por não responder todos os tópicos da sua colocação. No mais, concordamos, e repito, obrigado pela colaboração!

    Abraços.

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  3. Caro Marlo, li seu "desabafo" e brevemente que dizer que no mundo há espaço para todos, e todos os profissionais são essenciais para o desenvolvimento sustentável do país.

    Ademais, até os analfabetos que varrem as ruas de Fortaleza são importantíssimos para a nossa sociedade. Mas, essa crítica que você faz é interessante porque nos faz despertar um senso crítico e nos posicionarmos na sociedade democrática.

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