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10 novembro 2013

Nada, de Janne Teller

"(…) um calafrio percorreu meu corpo enquanto eu pensava em quantas pessoas diferentes podem haver dentro de uma só pessoa." (p. 85)

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Durante a tarde de ontem eu finalizei a leitura do romance Nada (Intet, 2000), escrito pela dinamarquesa Janne Teller. Embora já tenha admitido que nunca escreve seus romances com a intenção de provocar o leitor, o fato é que este livro de título curioso fez o maior barulho na Escandinávia, chegando inclusive a ser censurado temporariamente na região por conta da mensagem cruel e visceral da história. Aclamado pela crítica como digno sucessor do clássico O Senhor das Moscas, do Nobel William Golding, Nada chega ao Brasil depois de treze anos do seu lançamento original.

Foi um amigo da universidade que me indicou o romance. Assim que bati meus olhos na capa e li as duas primeiras páginas, me veio à cabeça a ideia de que eu deveria lê-lo na íntegra o quanto antes. Não é muito difícil acontecer esse tipo de coisa comigo: com Os devaneios do caminhante solitário e Templo, por exemplo, aconteceu a mesma coisa, bati os olhos no livro e senti que deveria tê-lo comigo. Não se pode ignorar uma sensação dessas. Pelo menos eu não consigo.


Sinopse: Pierre Anthon está no sétimo ano e tem a certeza de que nada importa na vida. Por isso, passa os dias sobre os galhos de uma ameixeira, tentando convencer seus companheiros de classe a pensar do mesmo modo. No entanto, diante da recusa do menino de descer da árvore, seus colegas decidem fazer uma pilha de objetos dotados de significado, e com isso esperam persuadi-lo de que está errado. Mas aos poucos a pilha se torna um monumento mórbido, colocando em xeque a fé e a inocência da juventude.


O livro é narrado por uma moça de 13 ou 14 anos chamada Agnes. Ela estuda com os amigos na cidade onde mora, uma bucólica comunidade periférica que possui um bairro chamado Taering, e cursa o equivalente ao final do Ensino Fundamental brasileiro. No primeiro dia de aula após as férias de verão, um dos amigos mais velhos de Agnes, Pierre Anthon, fica de pé minutos antes de a aula começar e diz que nada no mundo tem a menor importância na vida de quem quer que seja. Mesmo com o professor já presente, Pierre Anthon profere quatro frases curtas, coloca o seu material novamente dentro da mochila e sai.

Nada importa. Disso eu já sei faz muito tempo. Então não vale a pena fazer nada. Acabo de descobrir isso.

Cá entre nós, esse é o tipo de pensamento que eu constantemente tinha quando estava na mesma situação que Pierre Anthon: tendo que estudar assuntos que, para mim, não tinham importância alguma e batalhando para me tornar alguém na vida. A propósito, o que significa "se tornar alguém"? Ninguém percebe o perigo que corremos quando naturalizamos uma frase como essa? Quer dizer que, se não temos um emprego que renda um alto salário, se não conseguimos passar os nossos dias nos importando com coisas que não são de fato importantes, não somos ninguém? Nada?

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Depois de dizer que nada na vida é importante e abandonar a escola como quem simplesmente dá de ombros, Pierre Anthon sobe na ameixeira do quintal da sua casa e, de lá, grita para os passantes alguns dos melhores trechos do livro. Entre irritado, irônico e fleumático, o garoto diz que todos nós vamos morrer no final das contas e que, por essa razão específica, as coisas do universo não passam de besteiras irrisórias com as quais não vale a pena gastar o tempo. Seus pequenos discursos são totalmente crus e podem causar um desconforto extremo por causa da verdade fria de suas palavras. Os amigos de classe de Pierre Anthon, que são praticamente os únicos transeuntes a passar na frente da ameixeira, não estão devidamente preparados para ouvir as palavras do garoto, e é aí que a história realmente começa: quando eles ocupam uma serralheria abandonada e decidem fazer lá uma pilha com os objetos que têm mais significado para cada um, a fim de mostrar para o amigo misantropo que, sim, a vida tem algum significado.

As proporções que esse pequeno fato ganha chocam o leitor bem cedo. Com uma linguagem muito bonita que carrega em si certos traços trágicos, Agnes (que narra o romance em retrospecto, na verdade) mostra ao leitor a face oculta e assustadora da infância que o nosso bom-senso faz de tudo para esconder. Em termos gerais, a mensagem é similar à de O Senhor das Moscas: um grupo de crianças que, abandonadas à própria sorte, começam a revelar aspectos sádicos e vingativos de sua personalidade. Se no livro de Golding os meninos estavam sozinhos por conta do acidente de avião que os isolou na ilha, na história de Teller essas crianças (ou adolescentes, dependendo do seu ponto de vista) se vêem sozinhas sob um prisma mais emocional, e é na tentativa de construir um monumento cheio de significado que elas procuram se afirmar – ou, em outras palavras, se diferenciar dos adultos.

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Mesmo aparecendo muito pouco no decorrer da história, Pierre Anthon é um dos personagens mais notáveis do romance e cumpre bem o seu papel de provocador. Em termos de metáfora, podemos dizer que ele simboliza as nossas preocupações mais sérias, que são justamente aquelas que fazemos questão de esconder de nós mesmos. Não é por acaso que seus amigos se irritam com suas provocações e, tapando os ouvidos, começam a arremessar pedras em direção à ameixeira em que o garoto está empoleirado. Pierre Anthon é a nossa voz interna que estamos sempre calando, para o bem de nossa própria sobrevivência social. Hoje mesmo acordei de manhã e, no silêncio típico dos domingos, fiquei pensando com meus botões se as pessoas consideradas loucas não são por acaso as mais lúcidas – tão lúcidas que se tornaram perigosas, como Pierre Anthon. E, quando essa voz interna (incômoda e lúcida) começa a nos atormentar, a primeira coisa que fazemos é nos cercar de coisas que, para nós, têm alguma importância. Nada veio justamente para que nos perguntemos se essas coisas com as quais nos cercamos são, de fato, importantes ou não.

O tom do livro é aterrorizante porque a escrita de Teller prima por uma objetividade minimalista que, no fundo, faz os acontecimentos da história parecerem mais confusos e inacreditáveis ainda. Há morbidade nas palavras de Agnes, algo que assusta porque a garota é capaz de narrar coisas fortes na maior naturalidade possível. Se existe um fato verdadeiramente desagradável neste livro, esse fato é a constatação empírica de que o horror está na condição humana. Quando essa condição humana é retratada com crueza, sem eufemismos, ficamos chocados – em nada diferente de quando alguém segura um espelho na nossa frente para constatarmos, com surpresa, alguma imperfeição inesperada na pele. Nada é um desses romances que fazem as vezes de espelho. E ele nos pega pelo pescoço ao evidenciar que a infância, base da construção de nossa subjetividade, pode ser mais instável e imprevisível do que gostaríamos de admitir.

350 mil exemplares vendidos mostram que Nada não apenas chocou seus leitores como os fez pensar sobre a vida e compartilhar o livro com outras pessoas, transformando a obra de Teller no sucesso que é agora. Colocar em menos de 150 páginas uma ideia relevante que, de tão forte, precisa ser banida das livrarias, é algo que cabe apenas aos escritores de talento. Quem está acostumado a romances pesados, como Ensaio sobre a cegueira ou Pobre George, não se sentirá tão mal com as palavras de Pierre Anthon, mas isso pode ser algo que varie de pessoa para pessoa. A verdade é que não há como passar por Nada sem sentir uma incômoda sensação de que o mundo pode ser um lugar bastante insignificante – e mais incômoda é a sensação de que essa verdade aparece quando você tenta construir uma pilha com o que existe de mais importante na sua vida.

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Sobre os motivos da censura do livro na Dinamarca, a autora dá a sua opinião:

"Geralmente se diz que há muita violência nele, o que eu realmente não acho que seja verdade. Comparado a qualquer estória de crime, não há nada no livro; a violência propriamente dita é descrita em muitos lugares. Além do mais, algumas pessoas disseram que meu livro torna alguns jovens depressivos e os leva a cometer suicídio. Eu fiquei muito chocada com isso (…). Eu nunca escrevo para provocar. Aqui não há conteúdo sexual, não há linguagem de baixo calão. Eu penso que ela é uma estória muito normal. Na verdade, eu escrevo para aprender. Eu escrevo sobre coisas que eu não entendo. [tradução minha, livre]

Para conferir a entrevista completa com a autora, clique aqui.

19 setembro 2011

O Senhor das Moscas, de William Golding

"A verdade é que o medo não pode machucar vocês mais do que um sonho." (p. 92)
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Durante a madrugada deste dia, finalizei a leitura do livro O Senhor das Moscas (The Lord of the Flies, 1953), escrito pelo britânico William Golding, vencedor do Prêmio Nobel de Literatura em 1983, dado pelo conjunto de sua obra. Numa incrível coincidência, acabo de descobrir que Golding completaria 100 anos de idade hoje, caso não tivesse morrido de insuficiência cardíaca há quase duas décadas.

Ele deixou para trás uma obra famosíssima: O Senhor das Moscas. Às vezes, o glamour de um clássico se dá mais pelo mito que se criou em volta dele do que pela qualidade da obra em si. É o que eu percebo em alguns livros que são tidos como "imortais" e "um dos melhores de todos os tempos": pouca qualidade artística e muito confete jogado em cima deles, tanto pela crítica quanto pelo público.

O Senhor das Moscas se situa numa espécie de meio-termo entre os clássicos que são bons pela qualidade que possuem e os clássicos que são lembrados apenas por sua excentricidade. No balanço geral, entretanto, considero a obra-prima de Golding de fato um ótimo romance, que deve ser lido por todos aqueles que se interessam por análises sociais fornecidas pela literatura.


Sinopse: Um avião lotado de crianças e adolescentes cai numa ilha deserta. Os jovens sobrevivem e, aos poucos, vão se reunindo num grande grupo. Em assembléia, os meninos designam um líder. Longe dos códigos que regulam a sociedade dos adultos, esses jovens terão de inventar uma nova civilização, alicerçada exclusivamente nos recursos naturais da ilha e em suas próprias fantasias.

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Edição de 1983 da Nova Fronteira e edição no original inglês


Quando o livro foi lançado pela primeira vez, na metade do século passado, não tardou muito para que a crítica o rotulasse como uma parábola moderna sobre as relações primitivas entre seres humanos, ou como uma fábula política que retratava as várias facetas (ou máscaras) que o Homem pode assumir quando em contato com seus semelhantes.

De fato, vários elementos da história fazem referência a elementos da nossa sociedade: é o caso da fogueira dos meninos, que simboliza a civilização e o bom-senso; da concha, que faz referência à ordem e à democracia; do Bicho, que, nos dias atuais, bem que poderia ser relacionado ao medo que as pessoas têm do terrorismo invisível que está em todas as partes. Diversos detalhes que Golding pôs em sua trama seguem o exemplo de leis específicas que regem o comportamento humano em grupo, e, nesse caso, O Senhor das Moscas é um estudo perfeito para os interessados no tema.

É interessante acompanhar os personagens com cuidado, já que todos eles têm uma personalidade bem própria de cada um, e essa personalidade varia de acordo com os contatos que são feitos entre os garotos. O líder Ralph, por exemplo, vai amadurecendo ao longo dos capítulos, e sua postura é alterada dependendo do grupo ao qual ele se dirige – se se dirige aos "pequenos", Ralph fala tal qual um político querido ao seu povo; se está com Jack, suas palavras tornam-se mais cautelosas e breves.


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Cena da primeira adaptação cinematográfica do livro (1963)

Os diálogos entre os personagens são pra lá de excelentes, responsáveis pela maior parte da qualidade do livro. Eu sempre achava interessantíssimo quando Ralph convocava uma reunião de emergência entre os meninos, adotando uma postura séria e às vezes demagoga que pode ser percebida hoje em dia em muitos líderes de Estado. Nessas horas, Porquinho (personagem mais notável do livro) servia como uma espécie de conselheiro e braço direito de Ralph. Não dá para deixar de fazer um paralelo com o nosso distorcido sistema democrático.

Por mais que o leitor não simpatize com nenhum personagem logo no início do livro, uma hora ou outra ele vai tomar o partido de alguém. É extremamente difícil ficar neutro durante os debates entre os garotos; sempre aparece aquele do qual você discorda e com o qual você concorda. A frase que abre esta resenha, de longe a melhor frase do romance, foi tirada do diálogo de um desses debates entre os personagens.

A parte mais interessante da história acontece quando o grupo de selvagens é criado, em resposta ao grupo civilizado e organizado. Não vou falar muito sobre isso para não estragar a surpresa de quem vai ler o livro. Mas, sem dúvida, posso garantir que é a parte que ilumina a obra e, de quebra, cria toda a ação dos três últimos capítulos.

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Cena do remake do primeiro filme baseado no livro (1990)

O único fato relativamente negativo de O Senhor das Moscas é que ele é um romance descritivo demais. Várias páginas no decorrer do livro procuram pintar um quadro exato da natureza claustrofóbica da ilha, e isso toma o lugar das descrições psicológicas dos personagens, muitas vezes. Não que seja algo totalmente ruim; definir o cenário da trama é, aliás, imprescindível. Mas fiquei com a sensação de que ele poderia ter feito a mesma coisa com os personagens. Não raro eu sentia falta de um aprofundamento psicológico, de um parágrafo intimista, de um diálogo mais extenso.

E é aí que entra a minha colocação de que o livro é, em parte, dotado de uma certa aura mística que ajuda a consumar sua fama. Há uma espécie de lacuna na obra que é preenchida pela boa vontade e entusiasmo antecipado do leitor, sem dúvida. Não quero, com isso, dizer que o romance é ruim. Não mesmo! Adorei tê-lo lido. Apenas prefiro classificá-lo como uma aventura dotada de muitos elementos sociológicos, e não como um estudo social digno de figurar nos compêndios do tema.

Mesmo assim, a qualidade literária da obra não é prejudicada nem um pouco. O romance continua sendo uma referência no campo ficcional dos livros de naufrágios, com mérito. De acordo com o prefaciador Santiago Nazarian, quando William Golding escreveu O Senhor das Moscas, livros que retratavam pessoas perdidas em ilhas não eram nenhuma novidade. No entanto, o que fez com que a obra do inglês se destacasse das demais foi a maneira com que ele abordou o tema – até então, inédita – na qual podemos vislumbrar um estudo tímido sobre a invenção da selvageria.


O Senhor das Moscas (1953)

William Golding

220 páginas

Editora Nova Fronteira

Nota: 8,5 / 10