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26 fevereiro 2012

Niétotchka Niezvânova, de Fiódor Dostoiévski

"Os resultados de tudo o que iniciava eram belos e autênticos, mas à custa de erros e desvios incessantes." (p. 116)

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Decidi usar os cinco dias de feriado do Carnaval para pôr em dia a leitura de um dos livros mais distintos do russo Fiódor Dostoiévski, famoso autor dos clássicos e monumentais Crime e Castigo e Os irmãos Karamázov. Conheci o romance Niétotchka Niezvânova (Niétotchka Niezvânova, 1849) a partir da indicação de uma professora minha. No momento em que ela me disse que este livro é um verdadeiro estudo psicológico do desenvolvimento e uma espécie de documento histórico onde podíamos encontrar muitas idéias que Sigmund Freud abordaria depois, pensei: "Tenho que lê-lo".

Vale lembrar que a verdadeira intenção de Dostoiévski era escrever um grande romance que abarcasse toda a vida de sua personagem principal, Ana, desde a infância até a maturidade; mas, pelo fato de ter sido preso, quase morto e enviado à Sibéria (onde permaneceu uma década), o autor abandonou o ambicioso projeto inicial e fez de seu Niétotchka Niezvânova um pequeno romance de 200 páginas. Acredito que essa informação seja importante antes de iniciarmos a leitura do livro.


Sinopse: 'Niétotchka Niezvânova' narra os primeiros passos de Ana, que, desde muito cedo, convive no mundo com os problemas éticos e emocionais dos adultos. Precocemente órfã, é transferida para o lar de um distinto príncipe, onde trava contato com Kátia, a filha do nobre. Uma relação conturbada e pontuada de ambigüidade se instala entre as duas, até que ambas se declaram perdidamente apaixonadas uma pela outra.


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Se há uma coisa que caracteriza todos os romances russos do século 19, sem distinção de autor, é o fato de que eles constituem verdadeiros tratados psicológicos sobre a condição humana e as relações estabelecidas entre as pessoas, guiadas, invariavelmente, pelos preceitos morais e culturais da época. A lista de livros russos que gira em torno dessa idéia é imensa: Anna Karênina, Crime e castigo, Pais e filhos, Almas mortas, e assim por diante. Os autores russos desse período pareciam estar unanimemente ligados a esse tipo de tema, e a maioria deles escreve visando o mesmo ponto, por assim dizer.

Com Niétotchka Niezvânova acontece o mesmo, embora o romance seja bem curto e econômico. A personagem que dá título ao livro (e que narra a história) é hipersensível e extremamente atenta a tudo o que a rodeia, incluindo as relações familiares a que ela se sujeita em diferentes momentos da sua vida. Assim, a pequena garota, que se vale de uma visão retrospectiva para narrar a história, esmiúça suas pequenas tormentas, seus pequenos "delírios", e tudo aquilo que foi responsável pela sua "maturidade precoce".

Confesso que, entre a escrita de Tolstói e a de Dostoiévski, prefiro a do primeiro. Mas não se pode negar que o autor de Crime e castigo escreve com vontade, com sede de desnudar suas personagens e com uma avidez que demonstra seu talento em criticar a sociedade e as convenções sociais, além de expor tudo aquilo que atormenta o íntimo dos indivíduos. Repleto de ponto-e-vírgulas e outras pontuações de pausa abrupta, seu texto é às vezes bastante truncado – mas não perde a beleza excêntrica típica dos russos.

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Num primeiro momento, Dostoiévski dividiu Niétotchka Niezvânova em três partes muito bem delineadas: Infância, Vida nova e O mistério – que, embora não estejam mais oficialmente nomeadas, podem muito bem ser percebidas pelo leitor. A primeira delas, Infância, é o testemunho de Niétotchka sobre o começo da sua vida, sobre os seus primeiros passos como pessoa: vivia em um casebre rústico e se relacionava basicamente com o padrasto (um violinista fracassado que jurava ser o único músico talentoso do mundo) e com a mãe (que misturava severidade, amor e disciplina na educação da filha).

Com a morte de ambos, Niétotchka passa a residir na casa do príncipe K., na condição de órfã, onde conhece a pequena e bela princesinha Kátia, com a qual mantém relações declaradamente homoeróticas. Inicia-se Vida nova. Essa é uma das partes mais brilhantes do romance, na minha opinião, pois ainda é difícil para mim imaginar um livro da metade do século 19 discorrendo sobre um ingênuo relacionamento homossexual – entre crianças, ainda por cima. Palmas para Dostoiévski, e palmas para todos os outros autores que, desde muito cedo, buscavam convencer a sociedade da ignorância dos seus preconceitos.

Depois de um imprevisto na casa do príncipe, a protagonista passa a residir na mansão da irmã mais velha de Kátia, Aleksandra, onde começa a desconfiar de algo no relacionamento tortuoso desta com seu marido, Piotr. Essa parte, O mistério, é destinada a mostrar ao leitor a maturidade de Niétotchka, que passa a ler livros com voracidade e a se dar conta do mundo à sua volta, sobre o qual começa a emitir suas opiniões – até que se envolve em um turbulento problema conjugal entre Aleksandra e seu rude esposo.


Em suma, Niétotchka Niezvânova é um livro recomendado para quem quer entrar no universo de Dostoiévski pela primeira vez e sentir, na ponta dos dedos, toda a profundidade do autor, toda a sua preocupação com o destino de suas personagens e toda a gama de sentimentos que elas externalizam.

12 fevereiro 2012

A infância do mago, de Hermann Hesse

"Por muito tempo vivi no paraíso, ainda que meus pais tenham me apresentado bem cedo à serpente."

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Entrei na livraria e lá estava ele, meio abandonado, entre uma edição enorme de um livro de gastronomia e um atlas colorido do corpo humano. Estava na pilha de livros que em breve seriam despachados para as suas respectivas estantes, de onde, cedo ou tarde (ou nunca), os clientes da loja os tirariam e os levariam para casa. Havia outros romances em meio àquele monte de livros aleatórios empilhados – inclusive romances de outros autores consagrados – mas foi A infância do mago (1922) que me chamou mais atenção.

Quem escreveu este conto singelo foi o alemão Hermann Hesse, bem conhecido da comunidade literária mundial, que o considera como um dos melhores autores de todos os tempos. Hesse recebeu o Prêmio Nobel de Literatura em 1946, poucos meses depois de ser agraciado com outra prestigiada condecoração, o Prêmio Goethe.

Eu nunca havia lido nada do autor e, por pura curiosidade – que não deixa também de ter algo místico, pois senti como que uma força direcionando minha mão para resgatar o livro daquela pilha – sentei-me numa das poltronas da livraria e comecei a lê-lo. Terminei a leitura meia hora depois, com a sensação premente de que preciso conhecer mais desse escritor tão talentoso.


Sinopse: 'A infância do mago' conta, em poucas páginas, os primeiros passos de um garoto que nasce e cresce em meio a uma região bucólica, cercada por bosques e animais, onde convive com seu pai – inteligente e correto –, sua mãe – que esconde uma ponta de mistério – e seu avô – figura que encanta ao máximo o menino. O livro é, acima de tudo, uma ode à infância despreocupada e ingênua.


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Seguramente não é à toa que uma editora resolve publicar um único conto em formato de livro, com capa, introdução, posfácio e tudo o mais a que um grande romance tem direito. Em vez de pertencer a uma coletânea, a editora José Olympio decidiu que A infância do mago teria uma edição própria. É difícil encontrar um conto publicado isoladamente, por mais que o autor que o escreveu seja consagrado nos meios literários e tenha a graça da boa recepção do público. De qualquer forma, a edição do conto pertence a uma coleção intitulada Sabor Literário, cujas obras não ultrapassam as 200 páginas.

A verdade é que este conto de Hermann Hesse é apaixonante. O único ponto negativo é que ele não possui mais que 40 páginas, e quando o leitor está se familiarizando com o protagonista, com sua vida e o contexto que o rodeia, a história termina. A única coisa concreta que posso dizer é que a premissa de A infância do mago daria um ótimo romance, se fosse desenvolvida de acordo. Mas a idéia mesma do autor é apenas mostrar ao leitor um alento de vida, um flash da infância de um personagem aleatório (que tem muito do autor, diga-se de passagem) e o paradoxo de se tornar adulto aos poucos.

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A essência do conto gira justamente em torno dessa idéia: a agonia de se tornar adulto, desprender-se das fantasias da infância, ser forçado a aceitar uma realidade com a qual não se concorda. O protagonista, no início da história, narra a sua vida despreocupada de menino que vive em uma cidadezinha rural afastada da metrópole, com seus celeiros, seus bosques, seus rios e seus animais. Uma das belezas do conto está na riqueza dos detalhes da vida infantil do menino, com suas suposições, seus sonhos, suas aspirações e suas vivências. Experiências que são compartilhadas, se não universalmente, pelo menos por boa parte da população mundial.

Aos poucos, o garoto vai crescendo e deixando de lado as experiências infantis, até que adquire a consciência de que está de fato entrando na realidade – ou, como ele mesmo gosta de dizer, no mundo dos adultos, que antes lhe parecia ridículo. Eu diria que a segunda beleza do conto está nesse processo de amadurecimento, que põe lado a lado o mundo das crianças (com sua despreocupação aberta) e o mundo dos adultos (com suas regras "ridículas" e aborrecidas). As reflexões que partem daí são excelentes e, embora rápidas, deixam o leitor pensando no assunto por um bom tempo.

Se os livros no Brasil não fossem absurdamente caros, eu teria levado o volume para casa na mesma hora. Mas, realmente, não deu. De qualquer maneira, fica a dica para quem quer gastar alguns minutos lendo um dos melhores contos que tive a oportunidade de ler esse ano.

05 fevereiro 2012

Mar de papoulas, de Amitav Ghosh

"Era normal, nesses tempos, ser tão pródigo sem um motivo oculto?" (p. 198)

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Um autor que pretende escrever um romance que traga ao leitor, ao mesmo tempo, um denso contexto histórico-político-cultural e uma boa dose de entretenimento e aventura (de modo que nenhuma das duas partes saia perdendo), esse autor precisa ter uma imaginação muito fértil e um bom-senso geral que não é reservado a todos os escritores. Em todos os aspectos, é um trabalho admirável, porque o leitor não só é presenteado com uma história cheia de bagagem intelectual, como também toma parte em grandes aventuras, cheias de ação e suspense.

Foi por esse talento perspicaz que o suplemento literário do The Observer comparou o indiano Amitav Ghosh aos célebres Alexandre Dumas, Liev Tolstói e Charles Dickens; segundo o jornal, Ghosh possui o viés aventuresco do francês, a penetração psicológica do russo e o apelo emocional do inglês. Isso tudo por conta do romance Mar de papoulas (Sea of poppies, 2008), primeiro volume da ambiciosa "trilogia do Ibis", que se propõe a mergulhar o leitor no conturbado comércio do ópio perpetrado nas Índias Orientais do século 19.


Sinopse: É um romance épico, cujo pano de fundo são as guerras do ópio na China e no Extremo Oriente do século XIX. Ele narra a jornada do navio Ibis – uma embarcação inglesa que se envolve no perigoso comércio do ópio com a China – e sua inusitada tripulação, formada por oficiais ingleses, um americano mestiço, escravos libertos, fugitivos e condenados – cada qual com suas ambições e seus dramas pessoais. Ghosh descreve desde as dificuldades dos plantadores de papoula na Índia – com sua tradição e seus amores proibidos - até as lutas e os desejos dos inusitados tripulantes do navio.


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Amitav Ghosh é conhecido no mundo inteiro pela sua extrema dedicação ao contexto histórico em que suas histórias estão inseridas. Invariavelmente, ele passa vários anos estudando um assunto antes de escrever sobre o que quer que seja – e seu interesse já foi dos conflitos políticos na Birmânia ao exótico arquipélago das Sundarbans. No caso do romance em questão, consultando os mais diversos estudiosos, cronistas, linguistas e pesquisadores, Amitav reconstruiu a Índia da metade do século 19, imersa no mais exploratório mercado colonialista britânico. Lugares, costumes e eventos são tão fielmente retratados que é impossível não se deixar impressionar pela riqueza de detalhes que o autor se dispõe a relatar. A densidade desse contexto é tão profunda que faz de Mar de papoulas não só um romance, mas também uma espécie de documento histórico.

É comum achar que o excesso de detalhes factuais torna um livro enfadonho e monótono, porque não dá margem à criação de personagens envolventes e enredos originais. Isso não é verdade, principalmente quando o nome de Ghosh está no meio. Sua imaginação é tão larga e inventiva que, não raro, o leitor se surpreende com os caminhos que seus enredos geralmente tomam. Sua capacidade para envolver é muito grande, e mesmo nas passagens mais densas (que em Mar de papoulas não são muitas, aliás) nós somos levados a acompanhar o que ele escreve com o maior dos entusiasmos. Tudo o que passa pela pena do indiano parece se transformar em algo incrivelmente atraente.

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Esse talento de Ghosh em envolver o leitor nos mais diversos assuntos tem uma explicação: sua escrita. Dotada de uma beleza que não é comum de encontrar nos autores anglo-indianos, ela possui uma espécie de técnica característica do autor: sempre clara, sempre cristalina, sem hermetismos, sem turvar as suas águas para sugerir profundidade. Amitav Ghosh é um autor que sempre procura se fazer entender, e é isso o que o torna tão envolvente em muitos aspectos. Nada de meias-palavras, nada de buracos na trama; tudo é dito e explicado da maneira mais elegante possível, o que não deixa de pôr o leitor para pensar em muitas passagens.

A propósito, em Mar de papoulas Amitav Ghosh adquiriu um hábito que pode irritar alguns leitores: embora sua escrita seja lúcida e fluente, no livro ele não hesita em colocar uma centena de verbetes nativos entre os personagens, e nem sempre esse vocabulário excêntrico vem acompanhado de uma explicação, de modo que resta ao leitor pesquisar na internet ou tentar seguir adiante. A presença dessas palavras obscuras não interfere no andamento geral da história, necessariamente, mas pode ocasionar muitas paradas na leitura no caso dos leitores que não gostam de deixar nada passar batido. Para o bem ou para o mal, a verdade é que esses vernáculos só tornam a história mais verossímil e fascinante ainda.

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Ao longo do livro, somos apresentados a uma galeria de personagens tão díspares quanto originais, que amamos ou odiamos, dependendo de quais são as suas motivações e interesses. Particularmente, me afeiçoei muito à personagem Paulette Lambert, uma adolescente de origem francesa que nasceu em Calcutá e que é filha de um botânico amante de Rousseau. Existe algo de extremamente cativante em sua inocência, que aos poucos dá espaço a um amadurecimento mais perceptível, na medida em que o livro prossegue. Também gostei muito de Kalua, um simplório camponês que começa a história ganhando a vida como transportador de pessoas da aldeia para a cidade.

Ainda que seja dinâmico e fluído em sua linguagem e em sua história, acredito que o livro deva ser lido da maneira mais devagar possível; só assim somos capazes de assimilar a maior parte dos detalhes, a atmosfera e as sutilezas presentes na obra. É um livro apaixonante, sem dúvida, desde o capítulo inicial até a última linha: o tipo do romance que deixa uma espécie de saudade no leitor, fazendo-o rememorar constantemente determinadas cenas e diálogos. Finalmente, pela primeira vez na vida, posso dizer que estou ansioso pelo próximo título de uma trilogia que ainda está sendo escrita.


Mar de papoulas foi finalista do prestigiado Booker Prize, tendo sido eleito um dos melhores livros do ano pelos jornais The Washington Post, Economist e San Francisco Chronicle.


Mar de papoulas (2008)

Amitav Ghosh

536 páginas

Editora Alfaguara

Nota: 10/10