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27 agosto 2009

Os Sobreviventes, de Piers Paul Read

"Havia pouca chance de [o avião] ser encontrado, e menor chance ainda de algum dos quarenta e cinco passageiros ter sobrevivido ao desastre." (página 11)

sobreviventes Piers Read

Hoje pela tarde, antes que o sol pudesse se esconder completamente atrás do horizonte, finalizei a leitura do livro de não-ficção Os Sobreviventes (Alive: The Story of The Andes Survivors, 1975), escrito pelo romancista inglês Piers Paul Read e cujo objetivo o próprio título original já menciona: contar a história por trás do terrível acidente na Cordilheira dos Andes, em 1972, envolvendo uma jovem equipe amadora de rúgbi uruguaio.

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Sinopse: Nos picos nevados da Cordilheira dos Andes, onde só o vento quebra o silêncio, o único sinal de vida é a luta de 45 pessoas atingidas pelo destino da maneira mais cruel e dramática possível: a desesperada luta pela vida. O avião em que voavam, e que os levaria ao Chile, perdeu o senso de direção e chocou-se contra as montanhas geladas. Os sobreviventes, para não morrerem de fome, devoram os seus amigos mortos.

Read penetra com maestria na condição humana mais delicada e frágil, desvendando a vivência terrível de um confronto com a morte iminente e avassaladora.

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Essa talvez seja a história real mais impressionante de que eu já tomei conhecimento até hoje. Conheci-a há vários anos atrás, quando, em uma noite de Natal, meu irmão mais velho me disse: "Ei, Renan, hoje vai passar na TV o filme Vivos. Quero que você assista; essa história é bem famosa e marcante." De fato, assisti ao filme - que fala sobre o terrível acidente - junto com o meu irmão, e, como naquela época eu ainda era uma criança, não consegui dormir sozinho no quarto à noite. As imagens dos jovens uruguaios cortando a carne dos seus amigos mortos, para comê-la, mexeu profundamente comigo naquele tempo; e, por que não confessar?, mexe até hoje.

Tal história exerceu sobre mim um misto de fascinação e horror deslumbrado que, muitos anos depois, não me contive e pedi (como presente de Natal) para o meu pai o livro Milagre nos Andes - este escrito em 2007 por um dos próprios sobreviventes do desastre, Fernando Parrado. É um relato muito pessoal de onde transbordam as mais diversas emoções, frustrações e anseios no coração do jovem Parrado; lá, tudo é contado com sinceridade comovente, inclusive o triste fato da antropofagia necessária.

Finalmente, na semana passada, enquanto passeava displicentemente pelos corredores da biblioteca da Universidade de Fortaleza - à procura de um compêndio de Psicologia -, esbarrei com o livro Os Sobreviventes em uma das estantes. Eu sabia de antemão da existência desse livro: sabia que se tratava da tragédia dos Andes que tanto me fascinara quando criança e sabia que havia sido escrito imediatamente um ano após o acidente, por ninguém menos que Piers Read, um especialista na arte de contar histórias.

Resultado: aluguei o livro e comecei a lê-lo embaixo das árvores floridas da Universidade. Mal havia chegado à página 30, decidi que iria devolvê-lo e ir atrás de um sebo, na tentativa de comprá-lo. Minha melhor amiga, Natália, disse que eu era louco ao sair para comprar um livro cuja leitura poderia ter feito de graça. "Há certas coisas que devem permanecer conosco para sempre", repliquei, sorrindo.

Os Sobreviventes, apesar de tratar de uma história verídica, é narrado no mais completo e fascinante tom de romance. As cenas são escritas de forma detalhada, clara, sincera, de modo tal que fisga o leitor e é praticamente impossível, para este, largar o volume. A voz de Read é impecável. A história que ele conta, incrível. Juntas, as duas coisas não poderiam deixar de formar um belo e empolgante relato.

Das 45 pessoas que estavam no avião, indo em direção ao Chile, apenas 16 conseguiram retornar à sociedade e aos parentes. Mas não sem antes enfrentarem o suplício da queda do Fairchild nas montanhas, o caos infernal que se seguiu logo após, o frio avassalador, a fome pungente, o horror ante à idéia de ter que devorar o corpo dos próprios amigos para sobreviver, a desesperadora notícia de que os resgates haviam sido cancelados, tudo isso sem contar com a terrível avalanche que atingiu a carcaça do avião, certa noite, matando grande parte das pessoas que lá estavam tentando dormir.

Quanto à antropofagia a que os sobreviventes foram submetidos, diz Read:

"Chegaram, por necessidade, a comer quase todas as partes do corpo. Canessa sabia que o fígado continha reservas de vitaminas; por essa razão, comia e encorajava os outros a fazê-lo (...). Superada a repulsa em relação ao fígado, foi mais fácil passar para o coração, rins e intestinos [além dos cérebros e testículos, como é citado mais tarde]. (...) As camadas de gordura cortadas do corpo eram secadas ao sol até que se formasse uma crosta, e depois comida por todos. (...)"

Por mais tenebroso e assustador que o fragmento acima possa parecer, o livro de Read não se atém única e necessariamente a este mórbido detalhe de comer carne humana. (Muito embora a descrição na página 165 me tenha feito deixar o livro de lado e respirar fundo). De qualquer modo, narrando as experiências atrozes dos rapazes ou não, além das cenas macabras - que inevitavelmente teriam de estar lá -, o livro Os Sobreviventes também fala da perene esperança, da coragem soberba e, sobretudo, da determinação estóica de todas as pessoas envolvidas no acidente.

Todas elas, como uma grande equipe coordenada, ajudaram-se mutuamente durante os penosos 72 dias - umas em maior ou menor grau, por natureza - na tentativa de sobreviver nas montanhas hostis da Cordilheira dos Andes.

Para os 16 sobreviventes da tragédia, o inferno é gelado, ao contrário do que muitos pensam.

"Qual foi a coisa mais corajosa que você já fez?", perguntou Natália, minha amiga, após eu ter lhe contado a história do livro. A pergunta me pegou de surpresa, e senti que havia certa necessidade em parar para refletir sobre essa questão. Minha vida não é pontilhada de feitos heróicos; nunca salvei ninguém da morte, nunca ajudei ninguém a tomar uma decisão muito importante, nunca fui a peça-chave para uma situação delicada. O significa ser um herói, afinal de contas? Um mártir, é isso?

"A coisa mais corajosa que eu já fiz foi me levantar da cama hoje pela manhã, e enfrentar toda essa faina diária", respondi a Natália, e demos o assunto por encerrado.

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Abaixo, transcrevi um fragmento do texto de Piers Read que ilustra bem a situação dos rapazes no meio do seu suplício nos Andes.

"O frio terrível, combinado com as roupas molhadas, esgotava as forças. Não comiam nada há dois dias e sentiam-se então imensamente famintos. Os corpos daqueles que haviam morrido no desastre permaneciam enterrados na neve, fora do avião, de modo que os primos Strauch desenterraram um daqueles que tinham morrido com a avalancha e cortaram a carne do seu corpo diante dos olhos de todos. Anteriormente, a carne fora cozida ou pelo menos secara ao sol; agora não havia alternativa senão comê-la molhada e crua como saísse do osso, e como estavam famintos, muitos comeram grandes pedaços, que tiveram de mastigar e saborear. Foi terrível para todos; sem dúvida, para alguns foi impossível comer pedaços de carne cortada do corpo de um amigo que dois dias antes estivera vivendo ao lado deles."

(READ, Piers Paul; Os Sobreviventes, página 106, editora Nova Fronteira.)

20 agosto 2009

De Cabeça Para Baixo, de Fernando Sabino

"Eu nunca ouvira falar em Yosemite. Nem sabia da existência desse parque com nome de doença". (pág. 166, 7ª edição)

cabeça sabino

Ontem pela manhã, antes de trocar a água do aquário da Mila (minha peixe-espada de estimação), finalizei a leitura do livro De Cabeça Para Baixo (1989), que é o relato das viagens do escritor mineiro Fernando Sabino pelos quatro cantos do mundo. Além de ser o reconhecido autor do romance O Grande Mentecapto (1979), Sabino tem o status de ser um dos nossos melhores cronistas contemporâneos.

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Sinopse (Record): Desde a sua descoberta da Europa em 1959 até se ver de cabeça para baixo no Extremo Oriente, Fernando Sabino relata o melhor de suas andanças, tropelias e trapalhadas por este mundo afora em quase trinta anos. E o faz na linguagem ágil, viva e quase sempre hilariante que o consagrou como um dos prosadores mais lidos do Brasil.

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(Pequeno parêntesis: Algumas pessoas sabem que, desde que eu me entendo como mortal, sempre tive certo receio para com a literatura brasileira: ou a achava sem graça ou muito pretensiosa. E o motivo de agora eu estar buscando tantos livros nacionais, nos últimos dias, se deve ao fato de que fui "traumatizado" há uns quatro ou cinco meses, quando li duas versões distintas de Jurassic Park - portanto, duas traduções diferentes. O livro é magnífico, como todos sabem, mas, ao ler as duas traduções separadas, vi quão diferente pode se tornar um romance no que depender do tradutor. Essa perspectiva me deixou desconfortável, tanto que agora estou preferindo buscar aqueles livros que já foram originalmente escritos no meu idioma: português-BR.)

Bem, devo admitir que demorei um éon (isto é, uma verdadeira eternidade) para finalizar a leitura de De Cabeça Para Baixo. Geralmente eu demoro cinco ou seis dias para terminar um livro de 320 páginas (como é o caso deste), mas, pelo fato de não ter gostado tanto do estilo do Sabino, demorei algo em torno de um mês e meio para finalizar esse seu relato de viagens.

E os motivos para a minha falta de vontade são simples. Primeiro, De Cabeça Para Baixo se arrasta em uma narrativa que me deixa bastante desanimado: é metida a moderna, do tipo que engole vários verbos e abusa dos gerúndios. É o caso de por exemplo "A viagem mal começou e eu já inaugurando esta caderneta." (pág. 9). Cabe a reflexão: Qual é o problema em inserir a palavra "estou", entre "já" e "inaugurando"?

Sabino também tem o desagradável costume de escrever as suas frases pela metade. Pode-se notar isso no início do capítulo 3. Diz ele: "Série de reportagens para o JB sobre o que está acontecendo nas grandes cidades do mundo." O que há de errado em dizer "Estou fazendo uma série de reportagens para o JB sobre..."? Ou "Fui incubido de fazer uma série de reportagens para o JB sobre..."? O jeito incompleto com que ele escreve como que desloca o leitor, interrompendo o fluxo intuitivo da leitura.

Pode parecer birra da minha parte, mas a verdade é que eu não gosto desses invencionismos literários. Honestamente, não gosto desse tipo de estilo narrativo. Para mim, um livro que se preze deve conter antes de tudo uma linguagem consistente, articulada e, sobretudo, clássica. É lógico que não estou me referindo a um clássico rebuscado e difícil, do tipo de Dostoiévsky, mas a um clássico tradicional, talvez do tipo de Michael Crichton, por exemplo, que dá prazer ao leitor por conta da gramática e das construções impecáveis das frases. (Aliás, Crichton escreveu um relato de suas andanças que até hoje tenho como o melhor de todos: Álbum de Viagens, editora Rocco.)

O segundo motivo do meu desgosto para com a leitura do livro do Sabino, além da linguagem da narrativa, é a própria ausência de significância dos acontecimentos narrados. Sabino nos conta sobre as suas viagens rocambolescas ao Peru, à Alemanha, à Cuba, ao Irã, ao México e a tantos outros lugares do mundo, mas, ao final de cada capítulo, não transmite nenhuma conclusão definitiva e consistente para os leitores. Isso me decepcionou um pouco, porque, tendo em vista que Fernando Sabino é um dos nossos melhores prosadores, senti falta de uma mensagem à altura em seu relato; os acontecimentos lá são apenas narrados, e não dão margem a nenhuma outra interpretação subjetiva.

É como ler o diário da minha prima, eu acho. Não há nenhum subjetivismo admirável - apenas os acontecimentos narrados com uma objetividade enfadonha.

No entanto, cabe agora um grande "porém". Apesar dos dois motivos supracitados, que me deixaram com o cenho franzido em relação ao livro, devo admitir uma coisa. Nunca ri tanto lendo um relato de viagens. Isso é verdade.

São hilários os momentos em que o autor se vê às voltas com problemas na comunicação entre ele e as pessoas dos países para os quais viaja. Por exemplo, na manhã em que ele acorda em um hotel da Alemanha, trôpego de sono, ergue o interfone que está tocando e ouve alguém perguntar do outro lado da linha: "Pode soltarrr o gato?"

Pelo menos foi o que eu entendi. Respondi que sim, não tinha dúvida: no que dependesse de mim, podia soltar o gato. E fui direto para o banheiro lavar o rosto. (...)

Só mais tarde juntei as pontas e me ocorreu que devia ser o alemão da portaria me acordando, conforme instrução minha deixada na noite anterior.

Além dessas piadinhas da vida cotidiana que me fazem rolar de rir, há também os cômicos comentários do amigo de Fernando Sabino, Otto Lara Resende, ao longo do texto. Quando Sabino, a certa altura, faz uma de suas trapalhadas durante a viagem, ele próprio escreve: "E ainda há quem me ache inteligente..."

Em uma nota de rodapé, lá está o Otto: "Quem?"

Então, pode-se dizer isto: o livro que terminei de ler ontem pela manhã, antes de trocar a água do meu peixe, tem os seus altos e baixos - altos muito altos, e baixos muito baixos. Se um marginal pusesse um revólver na minha cabeça e dissesse "Dê uma nota para o De Cabeça Para Baixo, do Fernando Sabino, agora!" (apenas dou nota para os livros em casos de extrema necessidade), eu diria: "Cinco! Agora por favor, não me mate!" Cinco porque é uma avalição meio-termo. Os momentos hilários do livro compensam os outros momentos, os que não têm nenhum viés literário digno de um escritor internacionalmente reconhecido como Sabino.

P.S.: Fernando Sabino é também autor do livro O Encontro Marcado (1956), obra que li no ano passado e de que gostei bastante.

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Abaixo, segue-se uma das passagens engraçadas que me fizeram rir a valer:

"Antes de voltar para Bruxelas, eu e o Otto conseguimos ver o famoso 'Agneau Mystique' de Van Eyke na Igreja de Saint Bavon, conforme recomenda o Guia. Num de seus acessos de insensatez, Otto me fez subir com ele a torre da igreja, para apreciar a paisagem lá de cima. São quatrocentos degraus! O equivalente a 22 andares. Meu desvairado companheiro riscou nosso nome no parapeito do terraço com a chave do carro, para ficar eternamente comprovado que estivemos lá.

De volta ao carro verificamos que ele havia esquecido a chave lá em cima. Teve que voltar para buscar. Sozinho, é claro."

(SABINO, Fernando. De Cabeça Para Baixo, pág. 14, 7ª edição, Record.)

15 agosto 2009

Caminhos Cruzados, de Erico Verissimo

"Está com fome, com frio e sozinho, pois todos os homens o abandonaram na solidão branca." (pág. 26, 3ª edição) 

caminhos cruzados erico

Há poucos minutos finalizei a leitura do romance brasileiro Caminhos Cruzados (1935), que foi o terceiro livro escrito pelo gaúcho Erico Verissimo, após o seu célebre Clarissa (1934) e Música ao Longe (1935).

[Nota mental: Como é que uma pessoa consegue escrever dois livros em um mesmo ano? Céus, haja fôlego!... E quanta inspiração!]

Caminhos Cruzados já é o sexto romance que leio do autor; isso sem contar com Saga, que já está aqui na minha estante apenas esperando uma oportunidade para ser lido. Por ora, os estudos na universidade me oprimem e me obrigam a deixar a literatura de lado.

Os leitores do Artigos Efêmeros que me perdoem, mas eu realmente fiquei fascinado pelas obras de Erico, e por enquanto são somente elas que povoam estas resenhas. Quando eu terminar a leitura de Saga, talvez passe para um romance de Máximo Górki ou de Ray Bradbury. Quem sabe.

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Sinopse (Oyo e Cia. das Letras): "Caminhos Cruzados" é um interessante painel das diversas camadas que compunham a sociedade brasileira à época do governo de Getúlio Vargas. Erico Verissimo traça cento e vinte capítulos de cinco dias - de sábado a quarta feira - da vida de diversos tipos diferentes; desde a garota pragmática e seu namorado sonhador até a prostituta meiga e a senhora que imagina ver suas obras assistenciais nas páginas dos periódicos. Um mundo inteiro de contrastes aparece ao longo das 300 páginas do livro.

Sem narrar acontecimentos de vulto o autor expõe o nervo da fragilidade humana. Sua capacidade de fabulação ainda hoje provoca impacto e lança um apelo à sensibilidade; tornando-se Erico, pois, um dos maiores mestres no drama nacional.

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Apesar de ser notadamente um dos romances mais superficiais e menos reflexivos do autor, Caminhos Cruzados tem o seu brilho próprio e não fica para trás da extensa obra de Erico Verissimo. Não, não. Muito pelo contrário, eu acho: Caminhos Cruzados é um dos livros de formação mais interessantes que conheço. Possui um estilo direto e objetivo, enxuto, livre de volteios, com os acontecimentos narrados sucedendo-se rapidamente e sem preâmbulos.

Assim como a maior parte dos romances do autor, este possui uma trama baseada na 'técnica do Contraponto' (ver o post O Resto é Silêncio), técnica esta que nos revela um mundo onde desfilam diversos personagens marcados pela angústia (Maria Luísa, no caso) e pela liberdade (Chinita), pela boa-ventura (Salustiano) e pela desgraça (João Benévolo), pelo ódio (Virgínia Madeira) e pela paixão (Dona Dodó), tudo isto a um só tempo e espaço: Porto Alegre da década de 1930.

Além de narrar os trâmites do enredo com suavidade e graça literária, Erico Verissimo faz, no romance em questão, uma pesada crítica social com relação à hipocrisia política de Porto Alegre da década de 30 - que não deixa de ser a hipocrisia do país inteiro, lógico - e às abissais diferenças da sociedade que lá vivia. Ricos e miseráveis convivem num mesmo espaço divido apenas por ruas e avenidas.

Só para citar um exemplo de disparidade social, temos o caso do magnata Leitão Leiria, hipócrita dono de grandes negócios, e do extremo João Benévolo, desempregado que passa sérias necessidades financeiras e vive em desgraça total com a mulher Laurentina e o filho Napoleão.

Caminhos Cruzados é também o livro de maior teor pornográfico que li do Erico até agora - não que eu veja muita necessidade em dizer isso, claro: falei apenas por curiosidade. O que dizer das cenas eróticas entre Chinita e Salustiano, por exemplo, que apesar de serem narradas com brandura, transmitem bem a idéia do desejo insaciável do casal? Ou, ainda, o que falar do tímido e dissimulado lesbianismo entre Vera e Chinita? São cenas que causaram muito espanto na sociedade da época, disso podemos ter certeza.

Aliás, foi depois dessa obra que a crítica brasileira taxou o autor de “imoral” e “comunista” – este último adjetivo por causa das constantes reflexões que Erico Verissimo põe na boca de suas personagens, coisas do tipo: “Com o dinheiro que hoje se gasta em bebidas e outros vícios poderíamos construir muitos asilos e hospitais para os desprotegidos da sorte”.

(Certa vez, o escritor norte-americano F. Scott Fitzgerald disse que "um escritor deve escrever para a juventude de sua geração, para a crítica da próxima e para os mestres de todo o sempre". Pode-se dizer que Verissimo seguiu o conselho à risca e agora, enquanto os críticos de antigamente taxavam os seus livros de imorais e impróprios, os críticos da atualidade o têm como um grande e notável prosador...)

Uma das personagens que acho mais interessantes em Caminhos Cruzados é o jovem Noel, filho de pais ricos e que, educado com muitos mimos pela criada negra na infância, sente-se absorto em um mundo de fantasia do qual agora procura escapar. As muitas leituras que Noel teve quando criança, sobretudo leitura de contos de fadas, transportou-o para um universo onde as coisas, por lei, devem ser agradáveis, bonitas e menos sofríveis que na vida real. E é por isso que ele sofre bastante. Fernanda, a sua amiga íntima e inseparável, se sente na obrigação de trazer Noel de volta à realidade, ao "mundo dos vivos", e tirá-lo das ilusões da literatura.

Diga-se de passagem: Juntos, os dois formam um belo casal.

Uma das características que eu acho mais notáveis nos livros de Erico é a quase que total falta de desfecho que as suas histórias possuem. A narrativa de Caminhos Cruzados, por exemplo, como que termina de repente, abruptamente; aliás, se não fosse pelo contato físico e visual que se tem com o livro, tomaríamos um susto ao ver que o romance acabou tão sem aviso.

No entanto, naturalmente, não é tão sem aviso assim. É como se o autor terminasse a sua obra um pouco antes do momento convencional, um pouco antes do que estamos acostumados, um pouco antes da linha de chegada. O resultado é que, apesar de termos uma vaga idéia do que poderá ter acontecido com as personagens, nós nunca teremos a certeza absoluta disso – porque não foi escrito. Desse modo, fica suspenso no ar o destino das pessoas. Não há nada que faça alusão a um fim concreto, definitivo.

A única coisa que então resta ao leitor é fazer suposições, suposições essas que, por outro lado, nem são assim tão difíceis de se fazer, haja vista que boa parte da história já foi contada - e muita coisa de lá pode ser deduzida facilmente.

A falta de um final concreto é um ótimo exercício para a nossa imaginação, além de ser um evidente fator que mostra que a vida continua, apesar de tudo, apesar dos pesares.

Aliás, mais do que qualquer outra coisa, no final dos livros de Erico Verissimo sempre fica claro isto: A vida está aí e ela continua.

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Abaixo, como sempre faço, está um dos trechos mais interessantes do livro. Confesso que Caminhos Cruzados não é um livro de grandes reflexões filosóficas/literárias – pelo menos não nos moldes habituais do autor -, mas, ainda assim, a passagem que se segue me chamou a atenção:

“A vida (...) é uma sucessão de acontecimentos monótonos, repetidos e sem imprevisto. Por isso alguns homens de imaginação foram obrigados a inventar o romance.

O Homem, na Terra, nasce, vive e morre sem que lhe aconteça nenhuma dessas aventuras pitorescas de que os livros estão cheios. Debalde os romancistas tentam nos convencer de que a vida é um romance. Quando saímos da leitura de uma história de amor, ficamos surpreendidos ao nos encontrarmos na vida real diante de pessoas e coisas absolutamente diferentes das pessoas e coisas das fábulas livrescas.”

[pág. 299, 3ª edição, Cia. das Letras]

08 agosto 2009

Solo de Clarineta - Erico Verissimo (trecho)

solo_clarineta

Em 1973 - dois anos antes de morrer, portanto - Erico Verissimo achou viável começar a escrever as suas memórias.

O seu livro autobiográfico intitula-se Solo de Clarineta, foi dividido em dois grandes volumes e, como o próprio autor enfatizou no prefácio, "é uma história particular narrada em tom de quase romance, mas que vai contada com a maior franqueza".

Abaixo, segue-se o prólogo do volume 1. Como é um dos textos literários mais interessantes que já li, achei que valia a pena transcrevê-lo na íntegra.

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1

O meu amigo mais íntimo é o sujeito que vejo todas as manhãs no espelho do quarto de banho, à hora onírica e displicente em que passo pelo rosto o aparelho de barbear. Estabelecemos diálogos mudos, em uma linguagem misteriosa feita de imagens, ecos de vozes – alheias ou nossas, antigas ou recentes –, relâmpagos súbitos que iluminam faces e fatos remotos ou próximos, nos corredores do passado — e às vezes, inexplicavelmente, do futuro —; enfim, uma conversa que, quando analisamos os sonhos da noite anterior, parece processar-se fora do tempo e do espaço. Surpreendo-me quase sempre em perfeito acordo com o que o Outro diz e pensa. Sinto, no entanto, um pálido e acanhado desconforto por saber que existe no mundo alguém que conhece tão bem os meus segredos e fraquezas… uns olhos assim tão familiarizados com a minha nudez de corpo e espírito. Talvez seja por isso que com certa freqüência entramos em conflito.

Mas a ridícula e bela verdade é que no fundo, bem feitas as contas, nós nos queremos um grande bem. Estamos habituados um ao outro. Envelhecemos juntos. A face do Outro é o meu calendário implacável. "Os cabelos te fogem, homem", murmuro-lhe às vezes, "Tuas carnes se tornam flácidas. Vejo a escrita do tempo no pergaminho do teu rosto". "E como imaginas que estás?", replica o meu reflexo. Acabamos consolando-nos mutuamente com a idéia de que conservamos a mocidade de espírito. Mas até onde isso será verdade? Encolhemos os ombros e passamos a outras considerações e devaneios, enquanto o barbeador elétrico zumbe, e o incansável calígrafo invisível continua no seu sutil trabalho de amanuense da Morte.

No Homem do Espelho reconheço os olhos escuros e melancólicos de minha mãe. Essa cabeçorra, quase desproporcional ao resto do corpo, herdei-a de meu pai. Quanto à pele morena, talvez me tenha vindo de algum remoto antepassado índio ou mouro. As sobrancelhas negras e espessas — que passaram a vida no vão esforço de dar a essa cara um ar façanhudo, decerto com o propósito de atenuar a mansuetude quase humilde dos olhos — foram suavizadas pela prata com que o tempo as retocou.

Eu gostaria de simplificar o problema de meu temperamento apresentando-me como a manifestação de uma dicotomia, segundo a qual tendências que herdei de minha mãe — sobriedade, senso de responsabilidade, devoção ao trabalho, à ordem e à normalidade — podem ser comparadas com os muros de uma cidadela sitiada e repetidamente atacada por insidiosos e alegres bandos de guerrilheiros constituídos por certos componentes do caráter de meu pai: sensualidade, auto-indulgência, inclinação para o ócio e para uma espécie de hedonismo irresponsável.

"Mas a coisa não é tão simples e nítida assim", observa o Outro.

"Eu sei, eu sei", respondo em pensamentos, "mas vamos adiante, companheiro. É pelos sendeiros do erro e da dúvida que havemos de chegar um dia ao reino da verdade."

O Fantasma foca em mim os seus olhos secretamente céticos e murmura: "Será que esse reino existe mesmo fora da mitologia?"

Ambos encolhemos os ombros. Nem eu sei sobre a verdade, nem ele sabe, e nem ninguém mais: esta é a verdade.

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"Não esperem que estas memórias formem um documento histórico", adverte. "Elas não tem a intenção de fazer nenhum perfil de minha época ou dos meus contemporâneos. É antes um livro sincero, que dedico especialmente àqueles que me têm lido durante todos esses anos."

05 agosto 2009

Sobre o primeiro dia de aula do segundo semestre.

Nota:

Como o próprio título acima já diz muito bem, a crônica a seguir fala sobre a minha volta às aulas na universidade. Não é um assunto muito interessante para os leitores do blog, reconheço. Para ser sincero, não sei nem por que o escrevi, quanto mais por que o publiquei. Como sempre, ao que parece, os meus textos se escrevem sozinhos, contra a minha vontade.

Os comentários finais foram escritos pela própria Natália Lima - minha amiga de longa data - ao término da sua leitura do post. Achei que, já que a maior parte do texto fala sobre nós dois, ela tinha o direito de pelo menos ler e dar a sua opinião - mesmo que os seus comentários sejam por demais impertinentes e "engraçadinhos".

Well, espero que gostem! (Lembrei agora que esta é a mesma frase que o diretor M. Night Shyamalan fala nos bônus dos DVDs de seus filmes...)

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Hoje é o meu primeiro dia de aula do segundo semestre de Psicologia na Universidade de Fortaleza. A desvantagem disso é que naturalmente tive de acordar muito cedo, pontualmente às cinco horas, levantar da cama com o céu ainda escuro, para poder imprimir o fluxograma das disciplinas, tomar um banho bem tomado, beber o café-da-manhã em sossego, escovar os dentes, etc., etc. E ir para a aula.

Não que isso seja ruim, isso de acordar muito cedo. Eu até gosto. Gosto de verdade. O problema é que eu não estava mais acostumado a tamanho sacrifício, tendo em vista que desde os primeiros dias de férias eu dormia por volta das três horas da madrugada, agarrado invariavelmente a um livro de literatura, café andino de um lado, Coca-Cola do outro. Ainda ia para a cama a contragosto, sem sono. E, conseqüentemente, me acostumei a acordar tarde no dia seguinte.

Por isso que senti certo problema no primeiro dia de aula. Acho que todo mundo sente essa dificuldade em acordar cedo na primeira semana de aula: é normal e justificável. Além de tudo, levantar-se da cama contra a vontade é uma espécie de sacrifício.

De qualquer forma, apesar do "sacrifício" de levantar às cinco da manhã ao som rascante do rock 'All Along the Watchtower' (Neil Young, meu alarme matinal), não acordei de mau-humor. Porque, mesmo tendo consciência de que ficar de pernas para o ar é maravilhoso - e de que ler literatura até altas horas da noite é divino -, eu percebi que já era tempo de voltar mesmo à ativa.

Sendo assim, depois de minhas longas e tediosas férias de julho - nas quais eu não encontrava absolutamente nada de útil para fazer, a não ser ler livros em demasia e comer salgadinhos {1} - volto novamente à ativa. Isto é, volto aos estudos. Volto à vida normal, enfim.

E é com este tipo de pensamento implantado na cabeça ("Volto à vida normal...") que passo pelos portões da universidade às sete horas da manhã, cumprimento o porteiro com um aceno de mão e começo a caminhar para a área do campus onde ficam os blocos de Psicologia.

Enquanto caminho, o silêncio é absoluto: o único som vem do baque surdo que os meus tênis produzem no calçamento de pedra, e do chilrear dos pássaros nos arbustos mais próximos. A mochila está nas minhas costas com quase que nenhum peso dentro. O sol está se embrenhando por detrás das copas das árvores, e lança seus raios esplendorosos sobre as cabeças das pessoas que passam pelo Caminho Principal, rumo ao Centro de Convivência, todas elas presas à rotina que nunca há de mudar. Entram férias, saem férias - penso - e as coisas continuam do mesmo jeito. É assim. Sempre foi assim. Não há de mudar.

Ao cabo de cinco minutos de caminhada pelo Passeio Principal, sob o sol quente da manhã, eu saio do descampado e entro nas instalações do Bloco M, subindo as escadarias em seguida e procurando pela sala de número 21. Pelo menos é o que está escrito no meu fluxograma: Teorias Psicológicas I: Behaviorismo - M/21.

É depois de alguns minutos rondando pelas escadarias do bloco - entrando e saindo de salas erradas, subindo e descendo por rampas duvidosas - que finalmente acho a sala certa e entro. O relógio analógico da parede marca sete e vinte e cinco. Poucas são as pessoas que já estão aqui dentro. Uma senhora de seus 30 anos de idade, sentada junto à porta, escreve algo em seu caderno rosa - me parece uma mulher despreocupada e feliz, do tipo que cursa a faculdade por mero capricho. Um rapaz ouve MP4 lá no fundo da sala - estaria ele dormindo? aquelas mechas de cabelo sobre os olhos não me enganam... -, e uma adolescente melancólica de seus 18 anos risca com um lápis imaginário o tampo da sua carteira. Percorro a sala e me sento na última classe da primeira fila, perto das janelas - é o meu lugar preferido. A jovem melancólica não dá sinal de que notou a minha presença, e continua a fazer o seu desenho invisível, com o olhar distante e vago de quem tem a certeza absoluta de que nada neste mundo vale a pena.

(A propósito, ela me lembra muito a personagem Chinita, de Caminhos Cruzados. Fantasiosa e irreal.)

Os minutos passam. Enquanto a professora Sara Correia não chega, retiro da minha mochila uma edição recente de De Cabeça Para Baixo, do Fernando Sabino, e começo a ler. Passei o primeiro semestre inteiro com este hábito (ler um livro antes de o professor chegar) e percebi, surpreso, que os alunos ao meu redor me olhavam com certa repulsa. Passei boa parte do meu tempo tentando descobrir nos seus olhos o que eles queriam dizer com aquela insistência em me fitar; e descobri que a maioria das pessoas acha que qualquer coisa fora do curso - incluindo literatura - é tida como mera perda de tempo.

Triste. É só o que eu tenho a dizer.

De qualquer forma, sob olhares hostis ou não - o que as pessoas pensam sobre mim é problema delas -, abro o livro do Sabino e dou boas risadas com as piadas que o autor lá põe. Quando estou no final do capítulo "Pelas Rivieras da Vida", ouço vagamente a pronúncia do meu nome no ar. É uma sensação da qual ninguém escapa, esta de estar sendo chamado por outrem. Então, lentamente, como quem não quer nada, tiro os olhos do livro e vasculho o redor, fazendo o possível para isto parecer a coisa mais natural do mundo.

E quando bato os olhos diretamente na figura da minha amiga Natália Lima, solto um suspiro de descaso; ela está rindo na soleira da porta da sala, balançando a cabeça como quem diz: "Bobo!" {2} Só então a adolescente melancólica parece acordar e ergue a vista para nós. A presença animada de Natália é capaz de despertar qualquer mortal do mais profundo devaneio.

Minha amiga caminha até mim. Guardo o livro do Sabino na mochila: sei que não vou mais conseguir ler daqui para frente. Natália está sem bolsa, percebo no mesmo instante em que ela fica a três passos de mim. "Você está matriculada nessa sala?", pergunto, duvidando. "Não, não", ela responde, penteando os cabelos com a mão, sentando-se ao meu lado. Ainda rindo, diz: "Só vim ver você, chato!"

"Uma das poucas pessoas que fazem isso", digo. Ela ri. "Estou estudando na sala 34. Fica no terceiro andar do bloco M", diz ela, e aponta para cima, para o teto.

"Qual é a sua segunda aula?", pergunta depois de um tempo. Tenho de consultar o meu fluxograma para responder com precisão: "Fundamentos Históricos e Epistemológicos da Psicologia, às nove e meia. E a sua?" "Filosofia, com o Ricardo. Acaba às onze. Olha, a gente pode se encontrar depois da aula, que tal?", ela propõe. E engata: "Faz tanto tempo que a gente não se vê".

"É verdade. O nosso último contato foi...", ergo a vista para o alto, fingindo um complicado cálculo mental. "O nosso último contato foi naquela vez em que você me acordou às quatro horas da madrugada para bater papo-furado no telefone". (Ver post 'Sobre insônia e a escuridão do meu quarto'.)

Rimos. Ou melhor, eu rio; Natália gargalha. Ela está feliz hoje, percebo. Não é muito difícil perceber isso nela, porque é o tipo do negócio que fica logo visível no primeiro minuto. Só acho estranho o fato de ela estar feliz no primeiro dia de aula.

Ficamos em silêncio, e aproveito o momento para olhar ao redor. As únicas pessoas que me acompanhavam antes ainda estão lá em seus lugares: a senhora com o seu caderno rosa, o rapaz com o seu MP4 nos ouvidos (sim, ele está dormindo, constatei agora), e a adolescente que cruza as pernas e põe a mão sob o queixo. Pelas janelas da classe, o sol entra em rajadas douradas. Lá fora, no corredor, as pessoas passam de um lado para o outro.

"Pois bem, Marlito", Natália diz, abanando a mão como se espantasse uma mosca. Consulta o relógio de pulso, onde os ponteiros fazem a sua viagem circular, e, levantando-se no momento em que a sineta toca no corredor, Natália diz para mim: "Nos vemos na Praça 14 às onze horas, depois da segunda aula!".

E some porta afora, acenando e sorrindo, no momento em que a professora Sara entra, cercada de alunos. Penso: Ninguém melhor do que a Natália para ir embora assim de repente. {3}

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Existe ao lado do Bloco P, para o leste do campus, encoberta por várias mangueiras e pinheiros - o que dá um aspecto de terreno rural e sombrio -, uma pequena praça denominada de "Praça 14". No centro dela, rodeada por fontes majestosas de água, foi construída uma estátua do senhor Edson Queiroz, fundador glorioso da UNIFOR.

É nesse lugar que eu estou agora, sob a gigantesca sombra de uma árvore, conversando com a Natália e perdendo o meu precioso tempo. {4} Aliás, era neste mesmo lugar que eu costumava jogar Paciência, solitário, quando não tinha nada para fazer no intervalo entre duas aulas - o que acontece com certa freqüência ainda hoje.

"Aposto que você vai escrever um texto no seu blog falando sobre o dia de hoje", sentencia Natália, deitada sobre o banco de cimento da praça com um livro de literatura nas mãos: Grande Sertão: Veredas. Mas ela não está lendo - está apenas analisando a arte da capa. "Você sempre escreve sobre dias como esse. Eu já até sei".

Encosto a cabeça na guarda do banco. Uso a minha mochila como travesseiro. Um vento passa pela praça deserta, arrastando consigo folhas e pedaços de papel. "Acertou em cheio!", falo. "Daqui a alguns dias o texto estará lá. Será um texto vazio e sem sentido, mas ele estará lá, e você poderá fazer alguns comentários nele".

"Fechado", ela diz, fechando o Grande Sertão. Um papel de propagandas do Beach Park Resort passa flutuando pelos meus pés e vai cair em um bueiro lá na frente.

"Aqui nessa praça deve ser bom fazer a sesta", diz Natália, observando a paisagem bucólica que se estende a algumas centenas de metros à nossa frente: campos verdes amplos e planos, uma quadra de futebol ao ar livre, árvores e mais árvores ao sol.

Concordo. E sem mais nada de interessante para fazer, ou dizer, abro o meu caderno na divisória da matéria Psicanálise. Quando Natália vê o que eu estou fazendo, põe-se sentada ao meu lado e pede: "Poxa, agora que eu me lembrei, será que você poderia me emprestar os resumos de Humanismo? O Antônio é péssimo em fazer resumos. Acho que o seu professor é melhor".

"Na verdade", esclareço, "quem faz os meus resumos sou eu mesmo". Não quero parecer o rapaz inteligente que se auto didata. É apenas a verdade - e eu não sou o único que faz isso.

"Tudo bem. Serve. Deixa eu dar uma olhada".

Folheio o caderno, encontro a disciplina de Humanismo e lhe entrego os resumos, "não sem antes me certificar de que não há nenhuma anotação nele que não possa ser lida por ela." (MURAKAMI, Haruki. Norwegian Wood. 1987.) {5}

Depois de muito tempo em silêncio, após ter lido várias páginas do meu caderno enquanto eu contemplava a paisagem, Natália sugere de supetão: "Ei, cara... Os seus resumos são excelentes! Você poderia ganhar dinheiro com isto". Olho para ela, inexpressivo. O sol se esconde por trás de uma nuvem. Ela continua: "Vender grandes resumos das matérias para os alunos, já pensou? Colocaria os arquivos em um CD e venderia cada resumo por 6 ou 7 reais".

Eu sei: Ela está metade brincando, metade falando sério. Natália é do tipo de pessoa que não consegue ter uma idéia genial sem associá-la logo a seguir com o comércio. Na verdade, a idéia nem precisa ser genial, que ela já está logo vinculando a dinheiro. {6}

Abano a mão, soltando um muxoxo, e digo que ficar rico dessa maneira não tem graça. Ela concorda. "Mega-sena é melhor", diz.

Minutos depois, sinto um vazio na minha cabeça maior do que o habitual. É a fome do meio-dia que está assaltando os nossos estômagos, penso. Anuncio o problema, Natália entende, e saímos da Praça 14 para que cada qual pegue um ônibus para a sua casa.

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Comentários:

{1} Ler livros eu até entendo... mas... comer salgadinhos é algo útil? Se for, a humanidade está a salvo por causa de você! (nota de Natália Lima)

{2} Na verdade, eu estava pensando em outro adjetivo, mas deixa pra lá. "Bobo" é mais bonitinho, mesmo.

{3} Melhor do que eu, nesse quesito, só você.

{4} Seu "precioso tempo" que poderia ser gasto em... ? Comer salgadinhos?

{5} Ei, mesmo que você se pareça bastante com o Toru, eu não tenho nada a ver com a Midori!

- Pior que tem, ó. - (nota do autor)

{6} Vamos ser honestos, você também é assim...