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11 junho 2009

Sobre o espelho do banheiro, metafísica e música.

Se, ao término da leitura deste post, meus queridos leitores acharem que fiquei louco de vez, esclareço: Não, não fiquei, essa é apenas a maneira humorística com que eu encaro as coisas. Minha tendência a querer transformar tudo em história acaba fazendo com que todas as coisas ao meu redor pareçam pitorescas demais! xD

(Este esclarecimento vale também para os futuros posts). ^^

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A primeira coisa que eu costumo fazer ao acordar de manhã, antes de tudo, é consultar o relógio que está sobre a mesinha-de-cabeceira do meu quarto. Não sei bem por que razão faço isso, mas a verdade é que sinto uma real exigência de ver as horas assim que desperto. É como se fosse um ritual, como se fizesse parte da minha liturgia de todos os dias, o ponto de partida para tudo, o início do meu funcionamento físico e mental: acordo e olho para o relógio.

Hoje, por exemplo, acordo com a cabeça meio pesada e olho para os dígitos que lá estão sobre a mesinha: 8 e 16 da manhã. A cortina da janela que fica em cima da minha cama está parcialmente cerrada, e através do seu fino tecido de seda marrom uma rajada de luz matinal penetra pelo quarto, deixando-o em uma semi-penumbra interessante, e que me faz ter mais sono ainda. A barra da cortina balança suavemente. Sinto uma leve inclinação a mergulhar de novo na inconsciência, a ir visitar os recantos da minha mente e ir ver que tipo de sonhos eles produziram para mim.

No entanto, penso: Hoje é feriado, e quero aproveitar a incrível camada de silêncio que recai sobre a cidade nas primeiras horas do dia. Levanto-me da cama. Tiro as meias (durmo com elas, senão é resfriado na certa), desligo o despertador (que nunca me acorda na hora pretendida) e me dirijo até o banheiro, não sem antes tropeçar nos meus chinelos que estão perto da porta. Entro no box e permito que a ducha de água fria caia sobre mim e me renove o espírito, enquanto assobio desajeitadamente 'Run Through The Jungle', do Creedence Revival. Mas as gotas de água que caem do chuveiro passam pelos meus lábios e apenas um som esquisito e atravancado sai da minha boca.

Renovar o espírito?, penso agora, enquanto escrevo. Que coisa mais transcendental, mais mística. Deve ter sido alguma manifestação do Deus-Bola que me fez escrever isso.

Saio do banho e, ainda enxugando os cabelos com a toalha, me olho sem querer no grande espelho que está sobre a pia. Paro de me enxugar e tento esboçar um sorriso para mim mesmo, para ver se a minha simpatia me convence. E fico afinal assim, observando a minha própria imagem por um bom tempo, toalha ao redor da cintura, mãos apoiadas na bancada da pia.

Quando eu era pequeno, tinha a mania de ficar a me olhar no espelho durante tantos minutos, que eu chegava a me perguntar se quem estava ali do outro lado era mesmo eu. Pensava: Então, esse aí sou eu? É esse o corpo que o Cosmos me deu? Ainda me era muito estranho que fosse. Sentia mais como se o Marlo observador, o real, fosse uma espécie de consciência separada, e o outro Marlo, o observado no espelho, fosse a projeção da minha consciência na terra.

Eu sabia que, no final das contas, essa era uma questão que nunca ficaria resolvida em definitivo. Imagino todas as questões de metafísica que há no mundo... São infinitas, concluo. Deve ser por isso que as pessoas acreditam em Deus; diante de tantas perguntas sem resposta, elas precisam de algo em que se agarrar com firmeza. Mas quem disse que Deus é algo firme? Não é concreto. Ninguém nunca o viu. O Deus-Bola que está sobre a minha mesinha-de-cabeceira é mais firme e concreto do que Ele, e todas as pessoas o vêem e o tocam, ficando deslumbradas com os seus raios violetas e azuis.

Tento pensar em um mundo sem religião. Mas desisto de filosofar sobre essas coisas logo tão cedo do dia. E depois de um extenso momento de auto-observação na frente do espelho, caio na real e percebo que a minha barba está grande demais. Este é um problema verdadeiro, e não metafísico, reflito. Passo a mão pelo meu rosto. É incrível, penso. Minha barba cresce em uma velocidade irritante. Eu a fiz anteontem; e, hoje, aqui está ela de novo. Meu Deus!

E é pensando nisso que tiro a gilete do estojo e trato de extirpar aquela barba inconveniente dali. Durante essa atividade, vejo um céu de um azul celeste gritante através da pequena janela do banheiro, refletida pelo espelho à minha frente. Adoro esse tipo de céu. Acho muito bonito. E o silêncio é também uma coisa muito reconfortante. Nenhum barulho de buzina de carro, ninguém gritando no meio da rua, nenhum vizinho de cima arrastando os móveis.

Para ser sincero, consigo até escutar o barulho da lâmina raspando meu rosto.

(Lembro-me de que um amigo meu, no 2º Ano do Ensino Médio, certa vez me confessou que adorava tocar instrumentos musicais dentro do banheiro da sua casa. Ele era motivado a dedilhar no violão sobre o piso de lajotas mesmo, próximo ao box do chuveiro. Justificou a prática absurda dizendo que a acústica que existe naquele cubículo é simplesmente fantástica. Acho que deve ser verdade. Mas não deixa de ser excêntrico!...)

Acabo o escanhoamento dentro de cinco minutos, saio do banheiro e vou até a cozinha. Pregado na porta da geladeira está um aviso escrito em letras minúsculas que eu mal consigo enxergar: "Saímos, e você vai ficar sozinho aqui em casa até as 3 horas da tarde, mais ou menos. Fomos deixar o Alexandre na casa do colega dele, dentre outras coisas. Ass.: Martha. Beijos, e até mais!"

Minha mãe é do tipo de pessoa séria, concentrada, mas que mesmo assim consegue passar uma imagem bem engraçada quando quer. Por exemplo, lendo esse bilhete, fica a impressão de que ele nem é um bilhete em si, mas de que é um aviso de penintência. Você vai ficar sozinho em casa até as 3 horas da tarde. Se vire.

Desprego o pequeno pedaço de papel da porta da geladeira, amasso-o e o jogo no lixo. Depois acendo as luzes da cozinha, que vacilam antes de se fixar. Diviso a seguir sobre o fogão uma panela inox tampada. Penso: Ali deve haver comida. Me precipito até ela, abro-a a muito custo por causa da pressão interior, apenas para descobrir um fundo vazio. Sem nenhum problema, reflito.

"Hoje teremos China In Box para o almoço", anuncio para o pingüim de porcelana que fica sobre a geladeira.

"Menos mal", ouço ele responder. Lembro que a solidão faz as pessoas ficarem loucas. E me pergunto quanto tempo demora para que elas sucumbam totalmente à loucura.

Abro o armário que fica sobre a pia e, por detrás da lata de biscoitos, pego de dentro do depósito um pão de massa fina. Logo no momento em que o pego, porém, desisto da idéia de comê-lo. Meus olhos pousam sobre a lata de biscoitos. Por que não? Faço uma tigela de leite rapidamente (com direito aos cereais do Tigre Tony) à guisa de acompanhamento. Enquanto preparo o meu próprio lanche, abrindo gavetas e retirando talheres, assobio uma versão inventada de 'Just Another Day'.

Me sento então à mesa da cozinha e fico ali, deleitando-me com aquele pacote de biscoitos Passatempo enquanto os cereais ficam mais murchos e mais gostosos, afundados ao leite. O silêncio continua, e os raios do sol entram pela janela comprida que há na despensa logo ali. Projeta-se então um jogo de luzes e sombras na parede, bem sobre a minha cabeça. A geladeira estala ao meu lado tentando manter a temperatura. Penso: De uma forma ou de outra, todos nós estamos tentando manter nossa temperatura neste mundo.

O pingüim de porcelana parece concordar lá de cima.

Sem nada melhor para fazer depois de terminar o lanche matinal, ligo o computador e passeio pela Internet. O silêncio continua. Decido ouvir um pouco de música para fazer o ar vibrar. Começo com Beatles, apesar de não ir muito com a cara do Paul McCartney. Ouço deles 'Norwegian Wood' e 'Strawberry Fields Forever', passando por 'Yellow Submarine', 'A Hard Day's Night' (adoro essa) e 'Can't Buy Me Love'. Depois vou para The Clash e escuto o álbum 'From Here to Eternity' (gosto desse nome). Em seguida puxo uma coletânea de Simon & Garfunkel e ouço 'Cecilia', 'Bridge Over Trouble Water', 'The Boxer' e a clássica 'I am Rock'.

Por último, escuto o álbum duplo do 'Pulse', do Pink Floyd, na íntegra. Floyd é essencial.

Quando a 'One of These Days' termina de tocar, ergo os olhos da tela do computador para o relógio da parede da sala: 12 e 10 da tarde, verifico. Passei duas horas e meia do dia escutando música. Quando ouço música, os minutos se estagnam ao meu redor - ou melhor, eles passam e eu não acompanho o seu ritmo. Percebo então que está na hora de almoçar; desligo o computador, tomo nas mãos a lista telefônica da cidade, folheio as páginas amarelas e disco o número do China In Box Delivery, fitando o mapa da Região 14 da metrópole.

Uma moça simpática me saúda com um "Boa tarde!" efusivo do outro lado da linha, anunciando que é da referida empresa. Retribuo a saudação, sento-me no sofá da sala e peço uma porção de yakisoba tradicional com bastante verduras. Não sei se este tipo de pedido é viável, mas mesmo assim falo rindo: "Com bastante verdura!" A moça ri também, achando autêntica graça na minha fala, e pergunta se eu quero comer a yakisoba com hashi. Digo que sim. Adoro aqueles pauzinhos. Enquanto anota o meu pedido, a recepcionista do China In Box ri outra vez e diz que comida chinesa não é nada sem eles, realmente, e que o seu namorado às vezes coleciona os hashi quando saem ambos para jantar fora.

Então existe uma pessoa mais desocupada do que eu, penso.

Desligamos. E enquanto o almoço não bate à minha porta, vou até o quarto e fico relendo alguns trechos de 'Um Homem Extraordinário', de Anton Thekhov, e imaginando o que aquele sujeito misterioso faria se estivesse no meu lugar.

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Nova fotografia do Deus-Bola (agora mais de perto! Estou me arriscando!):

PB0500652

Capa do CD duplo 'Pulse' (a mais bela obra de arte que eu já vi em uma capa de disco!):

PULSE - Pink Floyd

O Pingüim Eloqüente que adora comida chinesa, sobre a geladeira da cozinha (ele me dá calafrios!):

pingüim

10 junho 2009

Sobre insônia e a escuridão do meu quarto - parte primeira.

Inicia-se com este post o que eu denominarei de "textos-diários"; isto é, textos escritos por mim e que visam contar alguma coisa do meu dia às pessoas que se dão ao trabalho de ler o blog. Os fatos contidos neste texto (assim como nos próximos) são verídicos, e foram apenas levemente moldados para caberem na narrativa. Espero que gostem da novidade (antes eu só me limitava a escrever sobre os livros que lia) e, se pelo menos uma pessoa disser que está interessante, continuo com a coisa com o maior prazer - principalmente agora que descobri a incrível ferramenta blogueira do Windows, o Windows Live Writer! :D

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O relógio da minha mesinha-de-cabeceira marca exatamente 4 horas da manhã. Tudo está mergulhado na mais perfeita escuridão do quarto, e eu estou no 6º sono da noite quando o telefone ao lado da minha cama tilinta estridentemente. Salto da cama no mais pleno susto, indo parar do outro lado do colchão, completamente envolto pelos lençóis (foi uma péssima idéia instalar este telefone aqui ao lado, eu disse, mas ninguém me ouviu e o resultado é este). Consulto o relógio: certifico-me que é tarde da madrugada. Quem será que está telefonando a uma hora dessas?

Como há aqui em casa dois telefones conectados pela mesma linha - isto é, ambos tocam ao mesmo tempo, tanto o do meu quarto quanto o do quarto dos meus pais -, me precipito imediatamente sobre o aparelho a fim de que nenhuma chamada a mais possa interromper o sono das outras pessoas da casa (incluindo meu irascível irmão), que têm o sono mais leve do mundo. Sento-me na cama, ergo o fone e, mesmo com o ouvido levemente atordoado, escuto nitidamente alguém pronunciar o meu atípico nome lá do outro lado da linha:

"Marlo?"

Identifico a voz suave de uma garota. Penso: Pelo menos isso. E no instante seguinte reconheço que a dona da voz é a Natália, uma das minhas amigas mais problemáticas. Estou coçando as duas pálpebras com a mão direita, e, enquanto isso, fica rolando pela minha cabeça a seguinte pergunta: "O que será que ela quer?"

"Marlito, droga, eu não agüento mais isso...", diz ela. Como eu fico calado, ela continua: "Sabe, esse negócio de namorar com o Paulo não está dando certo de jeito nenhum!" Sua voz é chorosa, melódica, mas ela não está chorando, nem fazendo drama; está apenas irritada, suponho. Irritada com o Paulo, que eu não faço a mais remota idéia de quem seja.

"Poxa, garota...", digo, "você sabe que horas são?"

Ela faz uma pequena pausa, como que consultando o relógio de pulso, e diz a seguir na maior naturalidade: "São... 4 da manhã".

"Sabe, eu costumo estar dormindo nessa hora. E o pessoal aqui de casa também".

No entanto, sei por que ela teve confiança ao ligar para a minha casa de madrugada. Natália sabe que existe um telefone ao lado do meu ouvido enquanto eu estou dormindo. Se não fosse por isso, ela provavelmente jamais me telefonaria às 4 da manhã.

"Sério, eu peço um milhão de desculpas por estar te ligando a essa hora", ela admite, "mas estou sem conseguir dormir e precisando muito conversar com alguém. E eu sei que você pode me ajudar, Marlito!"

Ela sempre me chama de 'Marlito'. Ainda sentado sobre a cama e organizando as impressões, penso: Ser chamado de Marlito é o cúmulo. E imagino o que terá passado pela cabeça da Natália ao supor que eu sou psicólogo clínico 24 horas. Imagino-a na sua casa, sem conseguir dormir, revirando o corpo de um lado para outro sobre a cama, e finalmente erguendo o telefone e digitando o número da minha residência, em busca de socorro psicológico.

"Esse namoro está um saco, apesar de já fazer quase 5 meses", ela me diz. E eu, acostumado a ouvir essas queixas amorosas, recomendo que ela leia alguns versos de 'Poesias Completas de Alberto Caeiro', do Fernando Pessoa, porque assim, talvez, ela acalme os ânimos.

"Não, não, o Fernando não pode me ajudar dessa vez". Ela sempre se refere aos escritores pelo primeiro nome. Acho isso engraçado, e é a primeira pessoa na qual eu reparo essa mania. Por fim, pergunto se afinal ela está grávida, ou o que é. Quando recebo um "Não!, o que é isso, Marlo?!" suspiro aliviado e procuro mudar de assunto, agora que ela já conseguiu me despertar de vez.

"Eu só tive uma briga feia com ele. E não planejo ter filhos, você sabe", ela me diz, agora num tom de voz mais calmo e manso. Eu posso me gabar de ser um dos pouquíssimos homens para os quais ela declara seus sentimentos não-conversáveis. E imagino que, se um dia Natália souber que eu escrevi isso aqui, ela vai ficar... muito irritada comigo, na melhor das hipóteses.

"Não sei como eu me relacionaria com os meus próprios filhos. É estranho, não é?", ela continua dizendo. Na escuridão do meu quarto, identifico nessa fala um trecho de 'Caçando Carneiros', de Haruki Murakami. Não tenho idéia de como eu poderia me relacionar com eles, diz o protagonista sem nome do livro.

(Às vezes eu acho que é bastante agradável conversar com minhas amigas pelo telefone. Sério. Sinto como se fosse possível perceber a tradução dos seus sentimentos através da linha telefônica. Cada pausa, cada suspiro distorcido pela transmissão significa alguma coisa relevante na conversa com uma mulher. Eu já aprendi isso!)

De qualquer forma, continuo sentado sobre a cama e observo o relógio outra vez: 4 e 15 da manhã. Graças à luz do luar que entra pela janela e acerta o relógio, posso distinguir o brilho dos dígitos e ver as horas.

Fico esperando que Natália mude de assunto; quero dizer, converse algo mais fácil, algo que não seja sobre filhos ou sobre o namorado incompreensível. Esses assuntos são densos demais para se conversar a essa altura, principalmente levando-se em conta minha cabeça entorpecida e a dela, não muito diferente. Posso acabar dando um conselho errado ou impulsivo para a pobre coitada. E ela vai acabar seguindo.

É preciso cerca de 5 segundos de silêncio para que Natália rume para outro caminho:

"E então", ela diz, animada, como se fossem onze horas da manhã e tivéssemos acabado de sair do campus, "será que o curso de segundo semestre na UNIFOR é difícil?" UNIFOR é o nome da universidade em que nós estudamos, e significa Universidade de Fortaleza. Gostamos desse nome porque lembra "Universidade de Tóquio" (Toudai), "Universidade de Harvard" ou "Universidade de Colúmbia". É um nome legal, que remete à internacionalização. É diferente de, por exemplo, Faculdade Integrada do Ceará.

"Marlo, que diabos, você está dormindo?", ela grita do outro lado, rindo. Rio também e digo que não, que não é de meu costume dormir pendurado ao telefone, por mais que alguém me azucrine ligando de madrugada e me deixando trôpego de sono.

"Pois bem", ela continua. Natália é da laia de mulheres que conseguem passar muito tempo falando. Ela fala qualquer coisa que vem à mente. "Eu fiquei sabendo que nós vamos mexer com ratos no próximo semestre. Estudar o comportamento deles em labirintos e tal. O que acha disso? Divertido, não é?"

"Muito", digo com sinceridade. Também ouvi esse boato pelos corredores. "Ainda bem que não são aranhas". Morro de medo de aranhas. Diagnóstico: aracnofobia - nível 1. Certa vez, apareceu uma gigantesca e peluda atrás do meu armário. Foi terrível. Podem me chamar do que quiserem.

Natália ri. "A propósito, quais são as cadeiras que você vai cursar nos próximos seis meses?", ela pergunta. "As minhas são Filosofia e Psicologia 1, Práticas Integrativas, que é obrigatória, Sociologia e Estudo da Memória... E você?"

Me sinto inclinado a dizer que, dessas que ela citou, pelo menos duas estão no meu fluxograma. Mas não tenho tanta certeza assim. Lembro de ter visto algo relacionado ao estudo do comportamento das crianças, com 6 créditos. Penso em me levantar da cama, ir até a mesa onde está o boletim universitário (que eu imprimi hoje mesmo) e ir conferir as disciplinas planejadas, mas acabo desistindo da idéia e me julgando trouxa demais por ter uma memória tão fraca. Deito-me na cama com o telefone ao ouvido. "Sinto muito, Natália, mas estou cansado demais para atravessar o meu enorme quarto [ironia] e responder isso para ti com precisão".

Ela ri. E eu me sinto o próprio Toru Watanabe quando Natália comenta: "Você fala de um jeito muito engraçado. Parece personagem de um livro". Mais uma vez, penso, Haruki Murakami interferindo na minha vida. Me calo para ouvir a próxima coisa que minha amiga tem a dizer.

Sobre insônia e a escuridão do meu quarto - parte segunda.

E o que ela diz é:

"Às vezes eu acho essa vida um saco, sabe? A gente nasce, cresce (alguns!), conhece outras pessoas, se reproduz (alguns!), arranja um emprego mais ou menos (alguns!), e acaba morrendo sem que nada de significativo tenha sido acrescentado à nossa cabeça (todos). Triste, isso. No final das contas, você recebe o diploma da universidade, mas... e aí? 'Graduado em Psicologia' é o que vai estar escrito lá, mas isso não enche a barriga de ninguém, a não ser que você já tenha uma família estável. Não é verdade? Não é injusto?"

"Ei, deixa disso", corto. "Às vezes, por mais que a vida não faça sentido, ou que algumas coisas dentro dela não sejam coerentes, a gente precisa continuar tocando nossa existência pra frente. A todo custo. Quando você se formar, pode fazer o que quiser. Ninguém é obrigado a fazer o que os outros querem que você faça neste mundo".

"Dá vontade de fugir para o Alasca e ver no que dá", Natália comenta simplesmente. A voz dela é a de alguém que está falando sério.

"Que nem o Christopher McCandless fez?", comento, rindo. Um dos meus defeitos é que consigo levar pouquíssimas coisas a sério. Tenho uma forte tendência a achar que as coisas não valem muito a pena, que não são mereçedoras de esforço. Em certos momentos, isso é bom; em outros, péssimo.

"Quem é Christopher McCandless?", pergunta Natália, que não assistiu ao filme 'Na Natureza Selvagem'. Se ela tivesse assistido, como eu tantas vezes recomendara, saberia de quem se tratava. (A propósito, já falei sobre ele aqui neste blog algumas vezes.)

Continuamos na esteira dessa conversa que não leva a lugar algum até que Natália tem um sobressalto e me diz, aborrecida: "Olha só, o Paulo está ligando para o meu celular. Pode, um negócio desses? Eu não acredito... Ele briga comigo, diz que eu--"

"Então que tal você esfriar a cabeça e tentar conversar humanamente com ele?", proponho. "É melhor. Vamos, relaxe. Ponha as cartas na mesa agora".

"Tudo bem". Forte respiração. "Tudo bem. Tchau." E Natália desliga antes mesmo que eu possa esboçar uma despedida. Fica assim a indelével impressão de que fui alugado. Marlo Renan, psicólogo clínico 24 horas.

E subitamente me descubro sozinho em meio à escuridão do meu quarto, no vigésimo terceiro andar de um prédio de apartamentos, com o telefone na mão e ouvindo apenas o "bip...... bip....... bip......." ritmado do telefone. Estou deitado sob as cobertas grossas. Sinto calor. Sento-me, recoloco o fone no devido lugar sobre a mesinha ao lado e observo a minha estante na parede oposta, com todos os livros de literatura que eu julgo responsáveis pela personalidade que tenho hoje. Lá está 'Beleza e Tristeza', do Kawabata, que estou lendo no momento. Ao lado dele, espremidos, estão 'A Suíte Elefanta' e 'Kafka à Beira-Mar'.

Aqui em Fortaleza existe uma localidade chamada Beira-Mar, que, da mesma forma que Copacabana, constitui um calçadão de cimento bem em frente à orla da praia. Sinto sempre uma grande satisfação em caminhar por ali, observando os pescadores com suas redes içadas e o tinido dos sinos distantes das embarcações. O aroma salobre do Oceano Atlântico entra pelas minhas narinas. É realmente agradável. Vez ou outra enxergo um avião comercial a 8.000 metros de altura, rasgando o céu azul como uma lancha rasga o mar.

Mas a visão da praia logo é tragada pela escuridão do meu quarto e agora eu contemplo minha esfera de plasma, que está desligada sobre a mesinha de cabeceira, junto ao aparelho de telefone. Ela já foi carinhosamente apelidada de "Deus-Bola" pelo meu pai, mas agora eu não enxergo nenhuma mensagem divina emanando de lá. É só uma bola de vidro que, quando ligada, solta raios violetas e azuis. É bonita; porém, estou cansado demais para ir acendê-la.

No chão, estão espalhados alguns CD's de rock que eu vinha escutando no dia anterior. Identifico-os de cima da cama: 'Animals', do Pink Floyd, 'Humanity', do Scorpions, e 'Meddle', lá adiante, também do Floyd. Passa pela minha cabeça a idéia de escutar 'Echoes' agora. É a melhor hora que existe para se escutar essa música: com nada menos que 23 minutos de duração, 'Echoes' acompanha todo o ritmo da madrugada, como se descrevesse um círculo na escuridão; acompanha o desaparecimento das estrelas, o surgimento do sol e, com este, o aumento da temperatura ao raiar do amanhecer. É uma música divina.

(Gosto também de escutar 'Echoes' de olhos fechados. Certa vez, uma amiga minha, a Paula, disse no seu blog que escutar uma música de olhos fechados é o melhor método que há para absorver todas as nuanças da composição. Fiz o teste e descobri que ela está certa.)

Todavia, desisto da idéia de ouvir música. Fico ainda sentado sobre a minha cama por um bom tempo, analisando os elementos do meu aposento, nessa pasmaceira incrível que me consumiu algo em torno de meia hora. Observo as sombras da noite que são projetadas no piso de lajotas. Há uma parte do quarto que está na mais completa escuridão; outra está no meio termo; e a minha está iluminada pela luz da lua, que recai sobre a cama.

É nessa solidão estéril que a gente fica quando está de férias, reflito.

Então passa pela minha cabeça a idéia de telefonar para a Natália. Para retribuir a insônia que ela me causou. Para saber se ela conseguiu se reconciliar com o Paulo, ou se separaram-se definitivamente, apesar de eu não ter a mínima idéia de quem seja ele. De qualquer forma, imagino o que será de mim caso o pai dela atenda o telefone às 5 horas da manhã e descubra que um rapaz está procurando pela sua filha.

Deito outra vez na cama. O céu começa a ficar mais claro, percebo, passando do azul-escuro para o azul-escuro-claro. O sol surgirá daqui pouco, e com ele virá todas as pessoas andando apressadas para lá e para cá, esbaforidas, enquanto eu estou de férias e apenas as observo. Penso no gato de estimação da Paula que, segundo ela, andou fugidio por algum tempo. Imagino como será ser um gato: bom, decido. Ruim não pode ser. Ruim talvez seja ser um carneiro, um bode, ou alguma coisa assim, comendo grama sem parar.

Adormeço pensando nessas frivolidades. Acordo quatro horas depois.

E escrevo este texto sem futuro, na falta do que fazer.

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Natália: Se algum dia você vier a ler isto, recalque, por favor!

Fotografia do "Deus-Bola" ligado:

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Minha estante de livros:

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