Hoje pensei com saudade sobre esse hábito, comum entre alguns leitores, de perambular pela cidade à procura de sebos escondidos em pequenas ruas e travessas que mal aparecem nos mapas urbanos. E lembrei com nostalgia de garimpar nesses lugares, por entre amontoados de brochuras descolando e lombadas desbotadas, segurando o espirro, um livro bom o suficiente para fazer as férias da escola valerem a pena.
Rastrear e conhecer pequenos sebos espalhados pela cidade é uma experiência já comprometida, claro. Esse hábito entrou em declínio quando todos nós descobrimos que é muito mais fácil comprar um livro usado clicando algumas vezes o botão do mouse do nosso computador e recebendo, na porta de casa, alguns dias depois, um pacote com o livro dentro. A praticidade da internet suprimiu o esforço de ter de sair do conforto do nosso lar em direção ao ambiente incerto das livrarias físicas, onde podíamos não encontrar o que estávamos procurando.
E assim definharam e morreram aos poucos os sebos físicos; e, com eles, as histórias das peripécias de leitores e livreiros que se procuravam às tateadelas pelos labirintos da cidade, ignorando o fato de serem ignorados pelo movimento urbano caótico de todo dia. Esses sebos acabaram migrando para uma versão digital, todos reunidos em um catálogo só – funcionando à perfeição, diga-se de passagem – listados com a impessoalidade do mundo dos algoritmos. Ganhamos em praticidade e perdemos em experiência.
Daqui a um tempo, quem não viveu fisicamente o circuito dos sebos ou nunca experimentou a sensação de ficar encolhido entre três prateleiras enormes cheias de livros velhos cheirando a mofo, em uma casa antiga com piso de tacos soltos – uma experiência tão impressionante que era meio impossível não se perguntar “O que diabos eu estou procurando, mesmo?” ou “Será que o dono da casa esqueceu que eu estou aqui?” – não acreditará nas histórias que eu tenho para contar sobre livreiros tão antigos quanto os próprios livros usados, livros do século XIX guardados em cofres de metal com aqueles botões de senha que você tem que rodar para abrir, sebos inusitados – um deles incluía o banheiro de uma casa, e, sim, eu tive que procurar D. H. Lawrence dentro de um box de chuveiro e Michael Crichton debaixo de uma pia –, sebos suspeitos – já fui advertido por um livreiro idoso que não queria que eu entrasse por uma porta do segundo andar da sua casa, sob o risco de ter de ver “coisas desagradáveis lá dentro” – e idas ao Centro à procura de revender meus Erico Verissimo – Incidente em Antares e Noite, lembro ainda quais eram –, barganhando com um homem que fumava um charuto provavelmente falsificado e que me dizia, entre uma baforada e outra, que a leitura seria a minha ruína, porque era a ruína de todos os acadêmicos – sábio vendedor de livros, conhecia a causa, alertou um adolescente para o perigo que estava por vir, e eu não lhe dei ouvidos.
Atualmente, isso já parece inacreditável mesmo para mim. Quem dirá que um dia existiu aventura no simples fato de comprar um livro? Mapas imprecisos que eu fazia à mão – nada de GPS, sequer existiam –, ônibus cheios de personagens atípicos, pessoas estranhas, becos sem saída, ruas sem fim, estabelecimentos escondidos, portas para além das quais eu não sabia o que esperar. Se eu tivesse desaparecido naquela época de peregrinação literária, ninguém poderia se dar por surpreso. Mas se envolvia aventura, a ida aos sebos envolvia também drama, às vezes tragédia e comédia urbana, e às vezes – muitas vezes – as histórias eram bem serenas, um peixe beliscando a superfície de um lago sob o sol do verão.
Um dos últimos sebos que visitei foi com o intuito de presentear um amigo com um livro que já estava fora de circulação. Peguei um ônibus e desci vinte minutos depois em uma rua curta e vazia cercada por altas antenas de rádio e televisão, em um bairro de Fortaleza conhecido justamente por elas. O sebo era uma casa de aspecto colonial ampla, arejada; de manhã o sol batia de frente, bem na varanda da entrada, onde um gato dormia entre vasos de taiobas. O som da campainha parecia ter atravessado a história dos séculos. Entrei, a própria livreira me recebeu: uma mulher idosa, grande, imponente e muito simpática. Diferentemente das outras vezes, em outros lugares, nesse dia eu achei com uma rapidez impressionante o livro que eu estava procurando – achei o livro antes mesmo de a dona me dizer onde ele estava.
O recibo eu guardo até hoje, talvez como lembrança daquele dia. Quando paguei, a mulher me olhou com cuidado e perguntou se eu queria um café com torradas. Sentamos na varanda, a uma mesinha velha de madeira que ficava na sombra, e ela começou a fazer carinho no gato e a me contar do problema de ter de lidar com o computador para cadastrar no site dos sebos virtuais aquela montanha colossal de livros que ela tinha em casa – cadastrar um por um –, uma casa que leitor nenhum visitava mais porque os grandes conglomerados praticavam preços que anulavam completamente a concorrência. Assim, seria impossível se livrar de todos aqueles livros antes de se mudar para a casa dos filhos, coisa que ela planejava; e nem ela esperava que fosse vender todos, aliás, por isso já estava dando alguns. Depois ela falou do marido falecido com toda a serenidade do mundo, o que me pareceu muito bonito, e de como ele lia muito, e que na verdade a maioria daqueles livros era dele, principalmente os do Carl Sagan, que ele adorava. Falou do filho engenheiro e da filha dentista. Falou da época em que ela lecionava em uma escola normal. Falou das colegas professoras dela na escola e dos livros que eram proibidos para as moças naquela época (dentre eles, ‘Caminhos cruzados’, de Erico Verissimo, um dos meus livros favoritos de sempre, o que depois deu início a um novo galho da nossa conversa) e falou também da música que os bons livros tocam sem que a gente perceba.
Bebi café como nunca, saí de lá muito depois da hora do almoço, e antes mesmo de pegar o ônibus de volta eu já tinha a certeza de que um episódio como aquele nunca mais ia acontecer de novo.
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