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21 dezembro 2009

Incidente em Antares, de Erico Verissimo

"Há navios que andam por todos os mares da Terra, mas um dia encalham, enferrujam e se resignam a não continuar a viagem." (p. 164-5)

 Incidente em Antares Erico Verissimo

Ontem pela tarde, antes de trocar a água do aquário da Mila (meu peixe-espada), eu finalizei a leitura do romance nacional Incidente em Antares (1971), a última ficção escrita pelo gaúcho Erico Verissimo. Depois disso, o escritor apenas redigiu uma biografia (Um Certo Henrique Betarso) e as suas próprias memórias (Solo de Clarineta, Vol. 1 e 2), inacabadas.

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Sinopse: É 11 de dezembro de 1963. Há uma greve geral em Antares. O fornecimento de luz é interrompido, os telefones não funcionam mais, os coveiros encostam as pás. Dois dias depois, uma sexta-feira 13, sete pessoas morrem – entre elas, d. Quitéria, matriarca da cidadezinha.

Insepultos e indignados, os defuntos ganham vida e resolvem agir: querem ser enterrados. Reunidos no coreto principal da cidade, decidem empestear com sua podridão o ar da cidade. Enquanto ninguém os enterra, porém, resolvem acertar as contas com os vivos e passam a bisbilhotar e infernizar a vida dos familiares.

Como os personagens são cadáveres – livres, portanto, das pressões sociais – podem assim criticar violentamente a sociedade em que vivem e esfregar no rosto dos vivos todas as misérias humanas que os homens corruptos praticam.

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Confesso que, embora a sinopse supracitada sempre me parecesse interessante, não era a minha intenção ler este livro. Depois de me deliciar com todas aquelas aventuras humanas narradas no ciclo dos romances urbanos de Erico, Incidente em Antares – um romance político que critica a ditadura – me pareceu enfadonho e fora do círculo de coisas que eu chamo de empolgantes. Política nunca foi uma coisa que me chamou a atenção. A ditadura… muito menos.

Foi então que ganhei um cartão-presente da livraria que mais visito nos finais-de-semana. O valor do cartão era compatível com o valor do livro (edição de bolso, note-se bem). Pensei na possibilidade de adquiri-lo e finalmente decidi: Se eu não gostar do livro, pelo menos ele me saiu de graça.

Incidente em Antares é dividido em duas grandes partes. A primeira, “Antares”, narra os primordiais acontecimentos e circunstâncias que tornaram possível o surgimento da comunidade que dá nome à história. Nessa primeira parte é narrada toda a rivalidade que recai sobre as famílias Vacariano e Campolargo – a primeira, já fixada na região há muitas décadas, teve de enfrentar a segunda, que imigrou com pompa para Antares e pôs em risco a hegemonia vacariana. As duas famílias simplesmente se odeiam através de um ódio de morte, e isso gera pano de fundo para muitas situações engraçadas e, claro, terríveis assassinatos.

Até então, o livro é ótimo. Percebe-se que Erico não perdeu nunca a técnica do estilo que o consagrou na década de 30, e, embora entre o ciclo de romances e Incidente em Antares haja quase quarenta anos, as semelhanças entre as duas fases de sua obra são nítidas.

Entretanto, o momento enfadonho do livro começa cedo. Para ser mais preciso, eu diria que começa na página 46, capítulo 22. É aí que Erico Verissimo começa a traçar todo um panorama da vida política brasileira, desde a ascensão de Getúlio Vargas, passando pelos feitos de Juscelino até a tomada do poder por João Goulart. Embora haja uma trama ficcional por trás disso tudo – protagonizada por Tibério Vacariano –, a narrativa não me empolgou devidamente.

Pensei: Erico é Erico. Vou fazer um esforço.

Valeu a pena. Depois de algum tempo e várias páginas, a empolgação de novo bate à porta e o livro toma um rumo incrível, fantástico, em todos os sentidos desta última palavra. Naturalmente, como não é do feitio do Artigos Efêmeros (nem do meu feitio), não vou contar nenhuma revelação de enredo. Mas uma coisa é certa: o leitor volta a se empolgar com a narrativa antes mesmo da metade do livro. A segunda parte, “O Incidente”, é maravilhosamente ácida e cômica, sem nunca perder o bom-senso.

Quanto à crítica à ditadura… acho que não posso falar muita coisa a respeito. Não vivi naquela época. Não sei muito bem que tipo de coisas ocorriam naqueles tempos. Não posso saber se realmente eram tempos tão terríveis como dizem os mais velhos. Mas uma coisa é certa: é uma boa crítica, essa feita em Incidente em Antares.

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Abaixo, um dos muitos trechos interessantes de Incidente em Antares, que trata de forma metafórica o surgimento de uma mentira.

“Nasciam em Antares os boatos mais desencontrados. Ora, um boato é uma espécie de enjeitadinho que aparece à soleira duma porta, num canto de muro ou mesmo no meio duma rua ou duma calçada, ali abandonado não se sabe por quem; em suma, um recém-nascido de genitores ignorados. Um popular acha-o engraçadinho ou monstruoso, toma-o nos braços, nina-o, passa-o depois ao primeiro conhecido que encontra, o qual por sua vez entrega o inocente ao cuidado de outro ou outros, e assim o bastardinho vai sendo amamentado de seio em seio ou, melhor, de imaginação em imaginação, e em poucos minutos cresce, fica adulto – tão substancial e dramático é o leite da fantasia popular –, começa a caminhar com as próprias pernas, a falar com a própria voz e, perdida a inocência, a pensar com a própria cabeça desvairada, e há um momento em que se transforma num gigante, maior que os mais altos edifícios da cidade, causando temores e até pânico entre a população, apavorando até mesmo aquele que inadvertidamente o gerou.” (p. 127-8)

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edição:

VERISSIMO, Erico. Incidente em Antares. São Paulo: Cia. das Letras. (2006)

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