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08 agosto 2020

'Incidente em Antares', tão atual.

Às margens das 100.000 mortes de brasileiros vítimas de covid-19 neste 2020 histórico, cai como um raio na minha cabeça a lembrança de um livro do escritor que mais amo, Erico Verissimo. A lembrança veio de repente, deflagrada por algo que custei a discernir, e ainda estou me perguntando por que o romance não me ocorreu antes, já que motivos para isso não faltavam. 

Falo de um dos seus últimos livros publicados em vida, Incidente em Antares (1971): um realismo fantástico no melhor estilo latino-americano, daquela estirpe que mistura tudo de pitoresco e assombroso na mesma panela – como coisas caindo do céu sem explicação, tapetes voadores, doenças misteriosas, aparições e desaparições repentinas e, como não poderia deixar de ser, nossa trágica história militar ditatorial associada à opressão contra a vida de pessoas comuns que pulsam no contracontrole, arranjando um jeito de viver o dia-a-dia apesar das torturas – físicas e psicológicas – perpetradas pelo poder autoritário. A história do realismo fantástico na literatura da América do Sul é íntima da história das veias abertas do nosso continente; julgo até que este gênero sempre se alimenta destas veias, com tudo o que elas representam para a nossa identidade. 

Porque, como na ficção científica, no realismo fantástico não interessa o absurdo ou a imaginação por eles mesmos: interessa falar dos problemas que já nos massacram no agora, na mais palpável das realidades, e que são ilustrados, às vezes pela didática, às vezes pela ironia e pelo sarcasmo, com coisas que não existem – doenças absurdas do sono, chuvas torrenciais que duram anos seguidos ou pequenos animais que sugam a alma das pessoas e se escondem sob os travesseiros à noite. 


Incidente em Antares é a história da cidade fictícia de Antares, interior do Rio Grande do Sul, e de seus habitantes, pessoas comuns com as mais ordinárias das ocupações e dos prazeres. Mas a história do livro não tem nada de ordinária. Pulando o denso retrato histórico a que o livro se propõe, podemos dizer que ocorre o seguinte: sete pessoas muito conhecidas entre os habitantes de Antares morrem e, como os coveiros estão em greve, dada a péssima – ridícula, mesquinha, interesseira – administração pública, os defuntos eventualmente levantam dos seus esquifes e se recusam a ser sepultados de maneira tão vil, tão indigna, tão desumana, às pressas. 

Como um movimento político organizado, ainda que composto por pessoas muito diferentes entre si, os sete mortos de Antares saem do cemitério e começam a perambular pela cidade, perturbando o prefeito e as demais autoridades do município, e visitando parentes para lhes explicar que a situação política do país está em frangalhos – um apelo para que os vivos se deem conta do abuso de poder daqueles que não conseguem nem enterrar os cidadãos que os escolheram para governar. 

Pois é. A certa altura, alguém fala isto: “O progressismo repousa essencialmente sobre a morte. Os vivos são sempre e cada vez mais governados pelos mortos”. (Está grifado na minha edição, vejo agora não sem tomar um susto.) 

Há conservadores em Antares, incluindo os apadrinhados do prefeito e o próprio prefeito (um major do Exército), que se recusam a acreditar no óbvio: que os mortos estão vivos, estão protestando e estão trazendo à luz toda a podridão (moral) humana dos vivos. Há quem diga que se trate de uma mentira, de uma alucinação coletiva, e sugira mesmo que seja alguma coisa ligada a “esquerdistas” perturbadores da ordem republicana. Está no livro. 

Um dos aliados do prefeito, diante de uma comitiva de mortos e da escalada de vivos que protestam, diz para o seu cúmplice (uma frase que poderia estar no obituário do Brasil hoje): “Não há de ser nada, major. O grosso da população desta terra nos apoia”. 

Mesmo com a óbvia indicação de que alguma coisa deve ser feita imediatamente para resolver o problema, os “patrões”, informados da situação pelo prefeito incompetente, decidem não conceder o aumento do salário dos coveiros – “são problemas distintos”, dizem. E assim o caos se instala entre a iniciativa privada, a gestão pública e os cidadãos requerentes, sem que as duas primeiras consigam juntar esforços para solucionar um problema sanitário e obviamente ético. 

Por fim, no ápice do livro, há uma marcha dos mortos de Antares em direção ao grande coreto da praça do centro da cidade, acompanhados por parentes e demais populares, clamando pelos seus direitos de morrer em paz, com justiça e com responsabilidade. Agora gosto de imaginar, talvez assim como Eliane Brum, que metaforicamente 100.000 pessoas possam ter o direito de marchar em direção a Brasília pelos mesmos motivos, reivindicando as mesmas coisas com a ajuda dos vivos que restaram e que podem lutar por eles. Como é claro, Incidente em Antares é um livro crítico da ditadura militar brasileira, e não é por coincidência que possa ser um livro crítico ao Brasil de hoje.

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