No campus da Universidade de Fortaleza, por detrás do prédio da biblioteca e na frente do campinho gramado de futebol, lá pelas bandas da parte leste, existe um prédio quadrangular sem-graça chamado de BLOCO J, dentro do qual foi construída uma sala administrativa apertadíssima, feita exclusivamente para atender alunos com problemas na matrícula e no curso do fluxograma da universidade. É um bloco que se parece demais com uma caixa de sapatos.
Não para variar, eu sou um destes alunos problemáticos no momento, com questões burocráticas a resolver, e entro na referida sala carregando embaixo do braço uma pasta preta de plástico cheia de papéis: fichas e relatórios. Sinto o aroma perfumado do ar-condicionado no momento mesmo em que passo pela diminuta porta de vidro. Penso: Isso me agrada. Existem certos perfumes de ar-condicionado que tocam a parte mais sensível do meu ser.
Há, nesta saleta administrativa do Bloco J, uma área oficialmente denominada de "sala de espera", muito embora ela seja pequena demais para ser considerada "sala", e apesar de ser agradável demais para ser considerada "de espera". Um grande aquário enfeita o ambiente, colocado sobre uma mesinha tímida de mogno escuro, e eu fico ali observando, sentado, os peixinhos dourados que flutuam na água por entre as plantas e os corais. Isso me acalma. E depois de vários minutos de contemplação e pasmaceira, percebo por que motivo foram colocados aqueles peixinhos ali: unicamente para entreter as pessoas e fazê-las esquecer de que estão em uma "sala de espera".
Desvio o olhar dos peixes do aquário e constato que existe alguém sentado ao meu lado, na cadeira acolchoada à direita. É um sujeito gordo que, por sua vez, conversa animadamente com uma mulher ao seu lado. Somamos, juntos, três pessoas na minúscula saleta de espera. E eu pensava que estava sozinho.
(Esse é um exemplo de que a minha atenção não raro flutua por aí às vezes, longe do espaço em que estou presente no momento. Dificilmente me encontro no mesmo lugar que o meu corpo, psicologicamente falando. É preciso resgatar a minha consciência de percepção externa e puxá-la novamente para a minha cabeça, antes que eu seja abordado por alguém e o choque de realidade seja maior.)
O ar-condicionado ronca. As rajadas de sol entram pelas janelas da sala, de vidro fumê. Os peixinhos nadam no aquário como se o mundo fosse maravilhoso.
Em um momento de silêncio, o sujeito gordo ao meu lado resolve puxar conversa comigo e pergunta que tipo de problema eu vim resolver aqui. Digo-lhe que houve um pequeno engano quando a administração imprimiu o meu fluxograma. Ele concorda com um balançar de cabeça e me assegura que está ali pelo mesmo motivo: ele cursa um tipo de Engenharia e veio no seu boletim universitário três disciplinas a mais. Espanto-me. Penso: “De qualquer forma, são erros freqüentes.” A mulher se enfia na nossa conversa, esticando a cabeça para me avistar (é ligeiramente bonita), e conta que estuda Jornalismo. Meu problema é com relação à bolsa de estudos, ela diz, como se uma quarta pessoa invisível houvesse lhe perguntado. Sorrio e aceno outra vez com a cabeça.
Ficamos conversando despreocupadamente assim ainda por um bom tempo, até que uma senhora de idade – cabelos brancos e duros, cara enrugada, olhos opacos – aparece através da janela de vidro do balcão e anuncia com voz rouca e monótona: "Próximo". Quando isso acontece, a moça do Jornalismo ergue-se e se despede de nós, dizendo um polido "Bom dia". Ficamos eu e o sujeito gorducho confabulando, enquanto a moça ajusta suas contas com a recepcionista velha de rosto pregueado. No meio da fala delas, ouço um "Mas isso é assim mesmo, o que podemos fazer?" e penso nas implicações dessa frase.
Enquanto isso, o senhor ao meu lado continua a falar sobre o seu curso, e sobre as dificuldades que ele enfrenta todos os dias para solucionar equações complicadíssimas durante os exercícios de Cálculo. É uma luta diária, percebo. Ele me explica por alto a Teoria do Caos – tarefa essa que eu julgava impossível para qualquer pessoa, mas que ele executou decentemente nos mínimos detalhes.
Ao cabo de 10 minutos, a moça que cursa Jornalismo sai do balcão, despede-se de nós uma segunda vez e some porta afora. Quando a porta se abre, a luz do sol entra na pequena saleta e dissolve um pouco o aroma do ar-condicionado. A porta é então fechada outra vez. Silêncio.
A recepcionista idosa ergue uma plaquinha amarela na janela de vidro: "Aguarde, por favor", e se some por detrás de uma porta. A cara de megera que ela tem não condiz com o educado aviso. Pressinto que terei problemas com aquela senhora.
De qualquer modo, o sujeito ao meu lado agora discorre sobre um fastidioso trabalho em grupo do qual está participando. "São terríveis, os trabalhos em grupo", ele me confessa. E começa a enumerar nos dedos todos os desgastantes obstáculos que impedem o seu trabalho de tomar rumos promissores: integrantes desleixados, professores levianos, pouco material disponível. É uma pena, reconheço.
Mas logo percebo que o homem é do tipo de pessoa que vê dificuldade em tudo; do tipo que acha que o mundo inteiro conspira contra a sua felicidade. Existem muitas pessoas desse tipo por aí.
"É um saco ter de parar as coisas que a gente faz no dia-a-dia para vir resolver esses problemas mesquinhos", ele diz, revoltado. "Você deve estar de férias, não? Não é um saco, sair de casa nas férias e vir aqui para resolver isso?"
Concordo em parte. Não lhe revelo que sinto uma pequena satisfação em deixar o meu apartamento e ir ver o mundo, mesmo que esse "mundo" se resuma ao mundo acadêmico da universidade. Não consigo ficar muito tempo podado em casa, escutando minha coleção de Pink Floyd até que o laser do disckman dissolva a camada de plástico do CD. É preciso sair, ver as coisas, resolver os problemas que devem ser resolvidos... Tenho esse tipo de filosofia.
"É preciso sair, sabe, resolver os problemas que devem ser resolvidos…", arrisco dizer.
"É preciso, mas não é agradável. Quem disse que é agradável resolver os problemas?", ele diz.
Particularmente, eu acho mais agradável resolver meus problemas do que ficar com eles. Mas não digo mais nada.
A velha senhora ranheta volta ao balcão da recepção e retira do vidro a plaquinha que diz "Aguarde, por favor". O sujeito gordo se levanta ao meu lado e sorri, dirigindo-se até o balcão com a sua pasta. Rapidamente seu problema é resolvido: rapidamente mesmo, em questão de um ou dois minutos. Levanto-me da cadeira de espera no momento em que ele se despede de mim e some porta afora, tragado pela luz do dia, sorridente, saindo do Bloco J.
Caminho até o balcão.
"Digite o número da sua matrícula aqui", fala rispidamente a velha recepcionista à minha frente, do outro lado do balcão. Sua voz é como o gume de uma faca: corta o ar com precisão. Digito os 7 números com rapidez no pequeno aparelho que ela me mostra: um teclado numérico semelhante àqueles em que se passa o cartão de crédito. Ela recolhe o aparelho e analisa algo na tela do computador que tem em sua frente. Vejo a minha foto 3x4 refletida no vidro do balcão. Penso: que engraçado. Um efeito digno de um filme de Night Shyamalan.
Quando interpelado, eu discorro sobre o meu pequeno problema burocrático. "Há uma falha no fluxograma", digo. "O horário da M34AB é o CD, e não o AB". O vocabulário técnico sai da minha garganta a muito custo. A senhora observa o meu rosto fixamente, até que eu me sinta incomodado demais com isso e volte meus olhos para os peixinhos do aquário da saleta de recepção. É como estar na mira de uma arma, penso. A mesma sensação.
O resultado é que fiquei ali, proseando com aquela enfadonha mulher, por nada menos que 10 minutos. Tive de desenterrar vários arquivos da minha pasta preta, e quanto mais eu esclarecia as coisas, mas a velha dificultava e perguntava sobre os detalhes. "As disciplinas foram cursadas com que professores? Quantos créditos foram feitos até agora? Como está seu AMT?" Coisas desse tipo. E o que era para ser um problema simples virou uma sucursal do inferno.
Jesus, pensei. É como aqueles dois policiais sádicos de Dance Dance Dance. Perguntei-me se, como no livro de Murakami, aquela senhora iria me colocar em uma cela e me liberar só no dia seguinte. Ainda bem que isso não aconteceu.
Por fim, as coisas foram resolvidas. Meti todos os papéis na minha pasta. Quando abri a porta da minúscula sala para ir embora, senti no ar da manhã uma frescura morna e agradável e pensei com meus botões: Minha vida é bem pitoresca.
Saí ao sol.
Interessante essa sua desventura, gostei. O mais engraçado é que me identifico em alguns pontos e acontecimentos...
ResponderExcluirNos meus tempos de faculdade (pareço um ancião falando isso!) também já tive inúmeros problemas com matrículas, materias e afins... mas os mesmos não eram resolvidos em salas pseudo-aconchegantes como essa, mas sim enfrentando horas e horas de filas no calor e lidando pessoas mal humoradas.
Mas ao contrário de você pra mim resolver problemas é algo chato e penoso. Eu fico criando espectativas, não dá certo. O sofrimento é dobrado.
No mais gostei da 'reflexão'. Não sei, mas seu texto me fez lembrar o Murakami, já que você conseguiu transformar um acontecimento comum do cotidiano em algo interessante e quase incrível.
Té mais!
Olá de novo Marlo!
ResponderExcluirMe identifiquei com seu texto pois também já passei por problemas burocráticos na faculdade, e por coecidência há alguns dias mesmo enfrentei um desses problemas :/. Queria ter a a sua boa vontade para resolver esse tipo de situação :), mas a má vontade das pessoas geralmente envolvidas não me ajuda a encarar isso muito bem.
Como nos outros textos, vc também conseguiu captar bem essas cenas do cotidiano, dando significação a elas. Apesar de não ter tanta boa vontade com esses problemas burocráticos, me identifico com a sua postura de procurar resolvê-los, ao invés de ficar se lamentando (sim, existem mesmo muitas pessoas como o senhor da sua história, que só conseguem ver empecilho em tudo, rs). Também me identifico com seus momentos de "ausência psicológica", rsrs...realmente, se somos abordados por alguém num desses momentos, o choque de realidade é maior.
Gostei desse texto, espero que venham outros :)
Abraços.
Olá, Adriana!
ResponderExcluirEsse texto realmente tem uma qualidade especial: muita gente é capaz de se identificar com ele! rsrs A propósito, quem nunca passou por uma situação parecida, não é?
Minha boa vontade (ou, antes, meu estoicismo) para enfrentar situações aparentemente desagradáveis como essa vem de uma espécie de educação sentimental que cultivo para, em vez de me aborrecer, apreciar a situação. Assim, acabo achando um interesse em analisar as pessoas que estão ali, o que elas falam, como agem, o que querem, etc. É um exercício interessante!
E a ausência psicológica é justamente fruto disso, dessa análise minuciosa que eu faço do ambiente... rsrs ^^
Fico contente que você tenha gostado do post. :)
Abraços.
A tempo: minha próxima postagem será uma lista de 5 livros que eu li no ano passado e que, agora em 2010, recomendo. Entre eles, naturalmente, está um de Erico Verissimo. :)
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