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15 agosto 2009

Caminhos Cruzados, de Erico Verissimo

"Está com fome, com frio e sozinho, pois todos os homens o abandonaram na solidão branca." (pág. 26, 3ª edição) 

caminhos cruzados erico

Há poucos minutos finalizei a leitura do romance brasileiro Caminhos Cruzados (1935), que foi o terceiro livro escrito pelo gaúcho Erico Verissimo, após o seu célebre Clarissa (1934) e Música ao Longe (1935).

[Nota mental: Como é que uma pessoa consegue escrever dois livros em um mesmo ano? Céus, haja fôlego!... E quanta inspiração!]

Caminhos Cruzados já é o sexto romance que leio do autor; isso sem contar com Saga, que já está aqui na minha estante apenas esperando uma oportunidade para ser lido. Por ora, os estudos na universidade me oprimem e me obrigam a deixar a literatura de lado.

Os leitores do Artigos Efêmeros que me perdoem, mas eu realmente fiquei fascinado pelas obras de Erico, e por enquanto são somente elas que povoam estas resenhas. Quando eu terminar a leitura de Saga, talvez passe para um romance de Máximo Górki ou de Ray Bradbury. Quem sabe.

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Sinopse (Oyo e Cia. das Letras): "Caminhos Cruzados" é um interessante painel das diversas camadas que compunham a sociedade brasileira à época do governo de Getúlio Vargas. Erico Verissimo traça cento e vinte capítulos de cinco dias - de sábado a quarta feira - da vida de diversos tipos diferentes; desde a garota pragmática e seu namorado sonhador até a prostituta meiga e a senhora que imagina ver suas obras assistenciais nas páginas dos periódicos. Um mundo inteiro de contrastes aparece ao longo das 300 páginas do livro.

Sem narrar acontecimentos de vulto o autor expõe o nervo da fragilidade humana. Sua capacidade de fabulação ainda hoje provoca impacto e lança um apelo à sensibilidade; tornando-se Erico, pois, um dos maiores mestres no drama nacional.

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Apesar de ser notadamente um dos romances mais superficiais e menos reflexivos do autor, Caminhos Cruzados tem o seu brilho próprio e não fica para trás da extensa obra de Erico Verissimo. Não, não. Muito pelo contrário, eu acho: Caminhos Cruzados é um dos livros de formação mais interessantes que conheço. Possui um estilo direto e objetivo, enxuto, livre de volteios, com os acontecimentos narrados sucedendo-se rapidamente e sem preâmbulos.

Assim como a maior parte dos romances do autor, este possui uma trama baseada na 'técnica do Contraponto' (ver o post O Resto é Silêncio), técnica esta que nos revela um mundo onde desfilam diversos personagens marcados pela angústia (Maria Luísa, no caso) e pela liberdade (Chinita), pela boa-ventura (Salustiano) e pela desgraça (João Benévolo), pelo ódio (Virgínia Madeira) e pela paixão (Dona Dodó), tudo isto a um só tempo e espaço: Porto Alegre da década de 1930.

Além de narrar os trâmites do enredo com suavidade e graça literária, Erico Verissimo faz, no romance em questão, uma pesada crítica social com relação à hipocrisia política de Porto Alegre da década de 30 - que não deixa de ser a hipocrisia do país inteiro, lógico - e às abissais diferenças da sociedade que lá vivia. Ricos e miseráveis convivem num mesmo espaço divido apenas por ruas e avenidas.

Só para citar um exemplo de disparidade social, temos o caso do magnata Leitão Leiria, hipócrita dono de grandes negócios, e do extremo João Benévolo, desempregado que passa sérias necessidades financeiras e vive em desgraça total com a mulher Laurentina e o filho Napoleão.

Caminhos Cruzados é também o livro de maior teor pornográfico que li do Erico até agora - não que eu veja muita necessidade em dizer isso, claro: falei apenas por curiosidade. O que dizer das cenas eróticas entre Chinita e Salustiano, por exemplo, que apesar de serem narradas com brandura, transmitem bem a idéia do desejo insaciável do casal? Ou, ainda, o que falar do tímido e dissimulado lesbianismo entre Vera e Chinita? São cenas que causaram muito espanto na sociedade da época, disso podemos ter certeza.

Aliás, foi depois dessa obra que a crítica brasileira taxou o autor de “imoral” e “comunista” – este último adjetivo por causa das constantes reflexões que Erico Verissimo põe na boca de suas personagens, coisas do tipo: “Com o dinheiro que hoje se gasta em bebidas e outros vícios poderíamos construir muitos asilos e hospitais para os desprotegidos da sorte”.

(Certa vez, o escritor norte-americano F. Scott Fitzgerald disse que "um escritor deve escrever para a juventude de sua geração, para a crítica da próxima e para os mestres de todo o sempre". Pode-se dizer que Verissimo seguiu o conselho à risca e agora, enquanto os críticos de antigamente taxavam os seus livros de imorais e impróprios, os críticos da atualidade o têm como um grande e notável prosador...)

Uma das personagens que acho mais interessantes em Caminhos Cruzados é o jovem Noel, filho de pais ricos e que, educado com muitos mimos pela criada negra na infância, sente-se absorto em um mundo de fantasia do qual agora procura escapar. As muitas leituras que Noel teve quando criança, sobretudo leitura de contos de fadas, transportou-o para um universo onde as coisas, por lei, devem ser agradáveis, bonitas e menos sofríveis que na vida real. E é por isso que ele sofre bastante. Fernanda, a sua amiga íntima e inseparável, se sente na obrigação de trazer Noel de volta à realidade, ao "mundo dos vivos", e tirá-lo das ilusões da literatura.

Diga-se de passagem: Juntos, os dois formam um belo casal.

Uma das características que eu acho mais notáveis nos livros de Erico é a quase que total falta de desfecho que as suas histórias possuem. A narrativa de Caminhos Cruzados, por exemplo, como que termina de repente, abruptamente; aliás, se não fosse pelo contato físico e visual que se tem com o livro, tomaríamos um susto ao ver que o romance acabou tão sem aviso.

No entanto, naturalmente, não é tão sem aviso assim. É como se o autor terminasse a sua obra um pouco antes do momento convencional, um pouco antes do que estamos acostumados, um pouco antes da linha de chegada. O resultado é que, apesar de termos uma vaga idéia do que poderá ter acontecido com as personagens, nós nunca teremos a certeza absoluta disso – porque não foi escrito. Desse modo, fica suspenso no ar o destino das pessoas. Não há nada que faça alusão a um fim concreto, definitivo.

A única coisa que então resta ao leitor é fazer suposições, suposições essas que, por outro lado, nem são assim tão difíceis de se fazer, haja vista que boa parte da história já foi contada - e muita coisa de lá pode ser deduzida facilmente.

A falta de um final concreto é um ótimo exercício para a nossa imaginação, além de ser um evidente fator que mostra que a vida continua, apesar de tudo, apesar dos pesares.

Aliás, mais do que qualquer outra coisa, no final dos livros de Erico Verissimo sempre fica claro isto: A vida está aí e ela continua.

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Abaixo, como sempre faço, está um dos trechos mais interessantes do livro. Confesso que Caminhos Cruzados não é um livro de grandes reflexões filosóficas/literárias – pelo menos não nos moldes habituais do autor -, mas, ainda assim, a passagem que se segue me chamou a atenção:

“A vida (...) é uma sucessão de acontecimentos monótonos, repetidos e sem imprevisto. Por isso alguns homens de imaginação foram obrigados a inventar o romance.

O Homem, na Terra, nasce, vive e morre sem que lhe aconteça nenhuma dessas aventuras pitorescas de que os livros estão cheios. Debalde os romancistas tentam nos convencer de que a vida é um romance. Quando saímos da leitura de uma história de amor, ficamos surpreendidos ao nos encontrarmos na vida real diante de pessoas e coisas absolutamente diferentes das pessoas e coisas das fábulas livrescas.”

[pág. 299, 3ª edição, Cia. das Letras]

4 comentários:

  1. [Nota mental: Como é que uma pessoa consegue escrever dois livros em um mesmo ano? Céus, haja fôlego!... E quanta inspiração!]

    E pense bem, ele em um préfacio de 1964 disse que trabalhava 12 hora por dia traduzindo livros. Creio eu que ele passava as outras 12 horas escrevendo os seus.

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  2. Você escreve como se estivesse no sofá da minha casa discutindo meu escritor preferido!

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  3. Isabelle, que comentário agradável, o seu!

    Erico Verissimo continua sendo um dos meus escritores preferidos de todos. E certamente é o meu autor favorito do Brasil.

    Obrigado pela visita e pelo comentário!
    Sinta-se em casa.

    Abraço!

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  4. Comecei a ler o livro por obrigação ao fazer um trabalho da faculdade, e logo me encantei, o modo de relatar a maneira com que cada um vive os seus problemas, independente de qual seja, se a falta de alimento, ou a cor da decoração de seu palacete. E esse fim? Nada mais é do que o findar de uma quarta-feira qualquer na vida de pessoas comuns?

    Terminei o trabalho e resolvi ler mais um pouco sobre esta obra, encontrei o seu comentário que por mais simples e particular me fez fechar com chave de ouro.

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