"Havia pouca chance de [o avião] ser encontrado, e menor chance ainda de algum dos quarenta e cinco passageiros ter sobrevivido ao desastre." (página 11)
Hoje pela tarde, antes que o sol pudesse se esconder completamente atrás do horizonte, finalizei a leitura do livro de não-ficção Os Sobreviventes (Alive: The Story of The Andes Survivors, 1975), escrito pelo romancista inglês Piers Paul Read e cujo objetivo o próprio título original já menciona: contar a história por trás do terrível acidente na Cordilheira dos Andes, em 1972, envolvendo uma jovem equipe amadora de rúgbi uruguaio.
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Sinopse: Nos picos nevados da Cordilheira dos Andes, onde só o vento quebra o silêncio, o único sinal de vida é a luta de 45 pessoas atingidas pelo destino da maneira mais cruel e dramática possível: a desesperada luta pela vida. O avião em que voavam, e que os levaria ao Chile, perdeu o senso de direção e chocou-se contra as montanhas geladas. Os sobreviventes, para não morrerem de fome, devoram os seus amigos mortos.
Read penetra com maestria na condição humana mais delicada e frágil, desvendando a vivência terrível de um confronto com a morte iminente e avassaladora.
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Essa talvez seja a história real mais impressionante de que eu já tomei conhecimento até hoje. Conheci-a há vários anos atrás, quando, em uma noite de Natal, meu irmão mais velho me disse: "Ei, Renan, hoje vai passar na TV o filme Vivos. Quero que você assista; essa história é bem famosa e marcante." De fato, assisti ao filme - que fala sobre o terrível acidente - junto com o meu irmão, e, como naquela época eu ainda era uma criança, não consegui dormir sozinho no quarto à noite. As imagens dos jovens uruguaios cortando a carne dos seus amigos mortos, para comê-la, mexeu profundamente comigo naquele tempo; e, por que não confessar?, mexe até hoje.
Tal história exerceu sobre mim um misto de fascinação e horror deslumbrado que, muitos anos depois, não me contive e pedi (como presente de Natal) para o meu pai o livro Milagre nos Andes - este escrito em 2007 por um dos próprios sobreviventes do desastre, Fernando Parrado. É um relato muito pessoal de onde transbordam as mais diversas emoções, frustrações e anseios no coração do jovem Parrado; lá, tudo é contado com sinceridade comovente, inclusive o triste fato da antropofagia necessária.
Finalmente, na semana passada, enquanto passeava displicentemente pelos corredores da biblioteca da Universidade de Fortaleza - à procura de um compêndio de Psicologia -, esbarrei com o livro Os Sobreviventes em uma das estantes. Eu sabia de antemão da existência desse livro: sabia que se tratava da tragédia dos Andes que tanto me fascinara quando criança e sabia que havia sido escrito imediatamente um ano após o acidente, por ninguém menos que Piers Read, um especialista na arte de contar histórias.
Resultado: aluguei o livro e comecei a lê-lo embaixo das árvores floridas da Universidade. Mal havia chegado à página 30, decidi que iria devolvê-lo e ir atrás de um sebo, na tentativa de comprá-lo. Minha melhor amiga, Natália, disse que eu era louco ao sair para comprar um livro cuja leitura poderia ter feito de graça. "Há certas coisas que devem permanecer conosco para sempre", repliquei, sorrindo.
Os Sobreviventes, apesar de tratar de uma história verídica, é narrado no mais completo e fascinante tom de romance. As cenas são escritas de forma detalhada, clara, sincera, de modo tal que fisga o leitor e é praticamente impossível, para este, largar o volume. A voz de Read é impecável. A história que ele conta, incrível. Juntas, as duas coisas não poderiam deixar de formar um belo e empolgante relato.
Das 45 pessoas que estavam no avião, indo em direção ao Chile, apenas 16 conseguiram retornar à sociedade e aos parentes. Mas não sem antes enfrentarem o suplício da queda do Fairchild nas montanhas, o caos infernal que se seguiu logo após, o frio avassalador, a fome pungente, o horror ante à idéia de ter que devorar o corpo dos próprios amigos para sobreviver, a desesperadora notícia de que os resgates haviam sido cancelados, tudo isso sem contar com a terrível avalanche que atingiu a carcaça do avião, certa noite, matando grande parte das pessoas que lá estavam tentando dormir.
Quanto à antropofagia a que os sobreviventes foram submetidos, diz Read:
"Chegaram, por necessidade, a comer quase todas as partes do corpo. Canessa sabia que o fígado continha reservas de vitaminas; por essa razão, comia e encorajava os outros a fazê-lo (...). Superada a repulsa em relação ao fígado, foi mais fácil passar para o coração, rins e intestinos [além dos cérebros e testículos, como é citado mais tarde]. (...) As camadas de gordura cortadas do corpo eram secadas ao sol até que se formasse uma crosta, e depois comida por todos. (...)"
Por mais tenebroso e assustador que o fragmento acima possa parecer, o livro de Read não se atém única e necessariamente a este mórbido detalhe de comer carne humana. (Muito embora a descrição na página 165 me tenha feito deixar o livro de lado e respirar fundo). De qualquer modo, narrando as experiências atrozes dos rapazes ou não, além das cenas macabras - que inevitavelmente teriam de estar lá -, o livro Os Sobreviventes também fala da perene esperança, da coragem soberba e, sobretudo, da determinação estóica de todas as pessoas envolvidas no acidente.
Todas elas, como uma grande equipe coordenada, ajudaram-se mutuamente durante os penosos 72 dias - umas em maior ou menor grau, por natureza - na tentativa de sobreviver nas montanhas hostis da Cordilheira dos Andes.
Para os 16 sobreviventes da tragédia, o inferno é gelado, ao contrário do que muitos pensam.
"Qual foi a coisa mais corajosa que você já fez?", perguntou Natália, minha amiga, após eu ter lhe contado a história do livro. A pergunta me pegou de surpresa, e senti que havia certa necessidade em parar para refletir sobre essa questão. Minha vida não é pontilhada de feitos heróicos; nunca salvei ninguém da morte, nunca ajudei ninguém a tomar uma decisão muito importante, nunca fui a peça-chave para uma situação delicada. O significa ser um herói, afinal de contas? Um mártir, é isso?
"A coisa mais corajosa que eu já fiz foi me levantar da cama hoje pela manhã, e enfrentar toda essa faina diária", respondi a Natália, e demos o assunto por encerrado.
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Abaixo, transcrevi um fragmento do texto de Piers Read que ilustra bem a situação dos rapazes no meio do seu suplício nos Andes.
"O frio terrível, combinado com as roupas molhadas, esgotava as forças. Não comiam nada há dois dias e sentiam-se então imensamente famintos. Os corpos daqueles que haviam morrido no desastre permaneciam enterrados na neve, fora do avião, de modo que os primos Strauch desenterraram um daqueles que tinham morrido com a avalancha e cortaram a carne do seu corpo diante dos olhos de todos. Anteriormente, a carne fora cozida ou pelo menos secara ao sol; agora não havia alternativa senão comê-la molhada e crua como saísse do osso, e como estavam famintos, muitos comeram grandes pedaços, que tiveram de mastigar e saborear. Foi terrível para todos; sem dúvida, para alguns foi impossível comer pedaços de carne cortada do corpo de um amigo que dois dias antes estivera vivendo ao lado deles."
(READ, Piers Paul; Os Sobreviventes, página 106, editora Nova Fronteira.)
Realmente é de se impressionar este fato ser verídico. Essa história é mesmo digna de compor páginas de romances e películas de fimes; e os 16 heróis se mostraram muito guerreiros.
ResponderExcluirMuito boa a forma como escreveste a crônica, mesclando fatos do cotidiano com uma literatura realista e impressionante.
Gostei bastante da história.
Abraços, continue escrevendo.
Li este livro várias vezes e atualemnte esotu lendo de novo, sou obcecado pela história desde 2004 quando assisti o filme Vivos de 1993 e mais adiante Superviventes de los andes 1976, me orgulho de ter uma mensagem na minha caixa de entrada do meu msn de um dos sobreviventes "Javier Methol" entrei no site viven.com.uy e postei uma mensagem de carinho e apoio aos sobreviventes e Javier muito polido me respondeu o e-mail
ResponderExcluirEstá é uma lição de vida, que nos faz pensar o quanto é importante amar-nos uns aos outros e viver como uma equipe.
Quem não leu o livro ainda eu recomendo que leiam é muito bom, embora algumas descrições são fortes o livro trás uma história do maior triunfo do espirito humano sobre a morte de todos os tempos.
Olá! Seja bem-vindo!
ResponderExcluirTenho a impressão de que todas as pessoas que entram em contato com essa história ficam obcecadas por ela. A mesma coisa aconteceu comigo: assisti ao filme Vivos, de 1993, e a partir daí não mais parei de pesquisar sobre o assunto e adquirir as publicações relacionadas ao episódio.
Realmente, é uma honra ter uma mensagem de Javier Methol na caixa de e-mail. Muito bonito o gesto dele!
Muito obrigado pela sua visita. Volte sempre! :)
Não consigo encontrar o livro de jeito nenhum
ResponderExcluirOlá, Pedro! Você já procurou na Estante Virtual? Ou em algum sebo de sua cidade?
ResponderExcluirAbraços!