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05 agosto 2009

Sobre o primeiro dia de aula do segundo semestre.

Nota:

Como o próprio título acima já diz muito bem, a crônica a seguir fala sobre a minha volta às aulas na universidade. Não é um assunto muito interessante para os leitores do blog, reconheço. Para ser sincero, não sei nem por que o escrevi, quanto mais por que o publiquei. Como sempre, ao que parece, os meus textos se escrevem sozinhos, contra a minha vontade.

Os comentários finais foram escritos pela própria Natália Lima - minha amiga de longa data - ao término da sua leitura do post. Achei que, já que a maior parte do texto fala sobre nós dois, ela tinha o direito de pelo menos ler e dar a sua opinião - mesmo que os seus comentários sejam por demais impertinentes e "engraçadinhos".

Well, espero que gostem! (Lembrei agora que esta é a mesma frase que o diretor M. Night Shyamalan fala nos bônus dos DVDs de seus filmes...)

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Hoje é o meu primeiro dia de aula do segundo semestre de Psicologia na Universidade de Fortaleza. A desvantagem disso é que naturalmente tive de acordar muito cedo, pontualmente às cinco horas, levantar da cama com o céu ainda escuro, para poder imprimir o fluxograma das disciplinas, tomar um banho bem tomado, beber o café-da-manhã em sossego, escovar os dentes, etc., etc. E ir para a aula.

Não que isso seja ruim, isso de acordar muito cedo. Eu até gosto. Gosto de verdade. O problema é que eu não estava mais acostumado a tamanho sacrifício, tendo em vista que desde os primeiros dias de férias eu dormia por volta das três horas da madrugada, agarrado invariavelmente a um livro de literatura, café andino de um lado, Coca-Cola do outro. Ainda ia para a cama a contragosto, sem sono. E, conseqüentemente, me acostumei a acordar tarde no dia seguinte.

Por isso que senti certo problema no primeiro dia de aula. Acho que todo mundo sente essa dificuldade em acordar cedo na primeira semana de aula: é normal e justificável. Além de tudo, levantar-se da cama contra a vontade é uma espécie de sacrifício.

De qualquer forma, apesar do "sacrifício" de levantar às cinco da manhã ao som rascante do rock 'All Along the Watchtower' (Neil Young, meu alarme matinal), não acordei de mau-humor. Porque, mesmo tendo consciência de que ficar de pernas para o ar é maravilhoso - e de que ler literatura até altas horas da noite é divino -, eu percebi que já era tempo de voltar mesmo à ativa.

Sendo assim, depois de minhas longas e tediosas férias de julho - nas quais eu não encontrava absolutamente nada de útil para fazer, a não ser ler livros em demasia e comer salgadinhos {1} - volto novamente à ativa. Isto é, volto aos estudos. Volto à vida normal, enfim.

E é com este tipo de pensamento implantado na cabeça ("Volto à vida normal...") que passo pelos portões da universidade às sete horas da manhã, cumprimento o porteiro com um aceno de mão e começo a caminhar para a área do campus onde ficam os blocos de Psicologia.

Enquanto caminho, o silêncio é absoluto: o único som vem do baque surdo que os meus tênis produzem no calçamento de pedra, e do chilrear dos pássaros nos arbustos mais próximos. A mochila está nas minhas costas com quase que nenhum peso dentro. O sol está se embrenhando por detrás das copas das árvores, e lança seus raios esplendorosos sobre as cabeças das pessoas que passam pelo Caminho Principal, rumo ao Centro de Convivência, todas elas presas à rotina que nunca há de mudar. Entram férias, saem férias - penso - e as coisas continuam do mesmo jeito. É assim. Sempre foi assim. Não há de mudar.

Ao cabo de cinco minutos de caminhada pelo Passeio Principal, sob o sol quente da manhã, eu saio do descampado e entro nas instalações do Bloco M, subindo as escadarias em seguida e procurando pela sala de número 21. Pelo menos é o que está escrito no meu fluxograma: Teorias Psicológicas I: Behaviorismo - M/21.

É depois de alguns minutos rondando pelas escadarias do bloco - entrando e saindo de salas erradas, subindo e descendo por rampas duvidosas - que finalmente acho a sala certa e entro. O relógio analógico da parede marca sete e vinte e cinco. Poucas são as pessoas que já estão aqui dentro. Uma senhora de seus 30 anos de idade, sentada junto à porta, escreve algo em seu caderno rosa - me parece uma mulher despreocupada e feliz, do tipo que cursa a faculdade por mero capricho. Um rapaz ouve MP4 lá no fundo da sala - estaria ele dormindo? aquelas mechas de cabelo sobre os olhos não me enganam... -, e uma adolescente melancólica de seus 18 anos risca com um lápis imaginário o tampo da sua carteira. Percorro a sala e me sento na última classe da primeira fila, perto das janelas - é o meu lugar preferido. A jovem melancólica não dá sinal de que notou a minha presença, e continua a fazer o seu desenho invisível, com o olhar distante e vago de quem tem a certeza absoluta de que nada neste mundo vale a pena.

(A propósito, ela me lembra muito a personagem Chinita, de Caminhos Cruzados. Fantasiosa e irreal.)

Os minutos passam. Enquanto a professora Sara Correia não chega, retiro da minha mochila uma edição recente de De Cabeça Para Baixo, do Fernando Sabino, e começo a ler. Passei o primeiro semestre inteiro com este hábito (ler um livro antes de o professor chegar) e percebi, surpreso, que os alunos ao meu redor me olhavam com certa repulsa. Passei boa parte do meu tempo tentando descobrir nos seus olhos o que eles queriam dizer com aquela insistência em me fitar; e descobri que a maioria das pessoas acha que qualquer coisa fora do curso - incluindo literatura - é tida como mera perda de tempo.

Triste. É só o que eu tenho a dizer.

De qualquer forma, sob olhares hostis ou não - o que as pessoas pensam sobre mim é problema delas -, abro o livro do Sabino e dou boas risadas com as piadas que o autor lá põe. Quando estou no final do capítulo "Pelas Rivieras da Vida", ouço vagamente a pronúncia do meu nome no ar. É uma sensação da qual ninguém escapa, esta de estar sendo chamado por outrem. Então, lentamente, como quem não quer nada, tiro os olhos do livro e vasculho o redor, fazendo o possível para isto parecer a coisa mais natural do mundo.

E quando bato os olhos diretamente na figura da minha amiga Natália Lima, solto um suspiro de descaso; ela está rindo na soleira da porta da sala, balançando a cabeça como quem diz: "Bobo!" {2} Só então a adolescente melancólica parece acordar e ergue a vista para nós. A presença animada de Natália é capaz de despertar qualquer mortal do mais profundo devaneio.

Minha amiga caminha até mim. Guardo o livro do Sabino na mochila: sei que não vou mais conseguir ler daqui para frente. Natália está sem bolsa, percebo no mesmo instante em que ela fica a três passos de mim. "Você está matriculada nessa sala?", pergunto, duvidando. "Não, não", ela responde, penteando os cabelos com a mão, sentando-se ao meu lado. Ainda rindo, diz: "Só vim ver você, chato!"

"Uma das poucas pessoas que fazem isso", digo. Ela ri. "Estou estudando na sala 34. Fica no terceiro andar do bloco M", diz ela, e aponta para cima, para o teto.

"Qual é a sua segunda aula?", pergunta depois de um tempo. Tenho de consultar o meu fluxograma para responder com precisão: "Fundamentos Históricos e Epistemológicos da Psicologia, às nove e meia. E a sua?" "Filosofia, com o Ricardo. Acaba às onze. Olha, a gente pode se encontrar depois da aula, que tal?", ela propõe. E engata: "Faz tanto tempo que a gente não se vê".

"É verdade. O nosso último contato foi...", ergo a vista para o alto, fingindo um complicado cálculo mental. "O nosso último contato foi naquela vez em que você me acordou às quatro horas da madrugada para bater papo-furado no telefone". (Ver post 'Sobre insônia e a escuridão do meu quarto'.)

Rimos. Ou melhor, eu rio; Natália gargalha. Ela está feliz hoje, percebo. Não é muito difícil perceber isso nela, porque é o tipo do negócio que fica logo visível no primeiro minuto. Só acho estranho o fato de ela estar feliz no primeiro dia de aula.

Ficamos em silêncio, e aproveito o momento para olhar ao redor. As únicas pessoas que me acompanhavam antes ainda estão lá em seus lugares: a senhora com o seu caderno rosa, o rapaz com o seu MP4 nos ouvidos (sim, ele está dormindo, constatei agora), e a adolescente que cruza as pernas e põe a mão sob o queixo. Pelas janelas da classe, o sol entra em rajadas douradas. Lá fora, no corredor, as pessoas passam de um lado para o outro.

"Pois bem, Marlito", Natália diz, abanando a mão como se espantasse uma mosca. Consulta o relógio de pulso, onde os ponteiros fazem a sua viagem circular, e, levantando-se no momento em que a sineta toca no corredor, Natália diz para mim: "Nos vemos na Praça 14 às onze horas, depois da segunda aula!".

E some porta afora, acenando e sorrindo, no momento em que a professora Sara entra, cercada de alunos. Penso: Ninguém melhor do que a Natália para ir embora assim de repente. {3}

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Existe ao lado do Bloco P, para o leste do campus, encoberta por várias mangueiras e pinheiros - o que dá um aspecto de terreno rural e sombrio -, uma pequena praça denominada de "Praça 14". No centro dela, rodeada por fontes majestosas de água, foi construída uma estátua do senhor Edson Queiroz, fundador glorioso da UNIFOR.

É nesse lugar que eu estou agora, sob a gigantesca sombra de uma árvore, conversando com a Natália e perdendo o meu precioso tempo. {4} Aliás, era neste mesmo lugar que eu costumava jogar Paciência, solitário, quando não tinha nada para fazer no intervalo entre duas aulas - o que acontece com certa freqüência ainda hoje.

"Aposto que você vai escrever um texto no seu blog falando sobre o dia de hoje", sentencia Natália, deitada sobre o banco de cimento da praça com um livro de literatura nas mãos: Grande Sertão: Veredas. Mas ela não está lendo - está apenas analisando a arte da capa. "Você sempre escreve sobre dias como esse. Eu já até sei".

Encosto a cabeça na guarda do banco. Uso a minha mochila como travesseiro. Um vento passa pela praça deserta, arrastando consigo folhas e pedaços de papel. "Acertou em cheio!", falo. "Daqui a alguns dias o texto estará lá. Será um texto vazio e sem sentido, mas ele estará lá, e você poderá fazer alguns comentários nele".

"Fechado", ela diz, fechando o Grande Sertão. Um papel de propagandas do Beach Park Resort passa flutuando pelos meus pés e vai cair em um bueiro lá na frente.

"Aqui nessa praça deve ser bom fazer a sesta", diz Natália, observando a paisagem bucólica que se estende a algumas centenas de metros à nossa frente: campos verdes amplos e planos, uma quadra de futebol ao ar livre, árvores e mais árvores ao sol.

Concordo. E sem mais nada de interessante para fazer, ou dizer, abro o meu caderno na divisória da matéria Psicanálise. Quando Natália vê o que eu estou fazendo, põe-se sentada ao meu lado e pede: "Poxa, agora que eu me lembrei, será que você poderia me emprestar os resumos de Humanismo? O Antônio é péssimo em fazer resumos. Acho que o seu professor é melhor".

"Na verdade", esclareço, "quem faz os meus resumos sou eu mesmo". Não quero parecer o rapaz inteligente que se auto didata. É apenas a verdade - e eu não sou o único que faz isso.

"Tudo bem. Serve. Deixa eu dar uma olhada".

Folheio o caderno, encontro a disciplina de Humanismo e lhe entrego os resumos, "não sem antes me certificar de que não há nenhuma anotação nele que não possa ser lida por ela." (MURAKAMI, Haruki. Norwegian Wood. 1987.) {5}

Depois de muito tempo em silêncio, após ter lido várias páginas do meu caderno enquanto eu contemplava a paisagem, Natália sugere de supetão: "Ei, cara... Os seus resumos são excelentes! Você poderia ganhar dinheiro com isto". Olho para ela, inexpressivo. O sol se esconde por trás de uma nuvem. Ela continua: "Vender grandes resumos das matérias para os alunos, já pensou? Colocaria os arquivos em um CD e venderia cada resumo por 6 ou 7 reais".

Eu sei: Ela está metade brincando, metade falando sério. Natália é do tipo de pessoa que não consegue ter uma idéia genial sem associá-la logo a seguir com o comércio. Na verdade, a idéia nem precisa ser genial, que ela já está logo vinculando a dinheiro. {6}

Abano a mão, soltando um muxoxo, e digo que ficar rico dessa maneira não tem graça. Ela concorda. "Mega-sena é melhor", diz.

Minutos depois, sinto um vazio na minha cabeça maior do que o habitual. É a fome do meio-dia que está assaltando os nossos estômagos, penso. Anuncio o problema, Natália entende, e saímos da Praça 14 para que cada qual pegue um ônibus para a sua casa.

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Comentários:

{1} Ler livros eu até entendo... mas... comer salgadinhos é algo útil? Se for, a humanidade está a salvo por causa de você! (nota de Natália Lima)

{2} Na verdade, eu estava pensando em outro adjetivo, mas deixa pra lá. "Bobo" é mais bonitinho, mesmo.

{3} Melhor do que eu, nesse quesito, só você.

{4} Seu "precioso tempo" que poderia ser gasto em... ? Comer salgadinhos?

{5} Ei, mesmo que você se pareça bastante com o Toru, eu não tenho nada a ver com a Midori!

- Pior que tem, ó. - (nota do autor)

{6} Vamos ser honestos, você também é assim...

Um comentário:

  1. Acho que cheguei atrasada ^^, mas mesmo assim gostaria de comentar...
    Lendo esse texto fica fácil perceber a influência de Erico em sua escrita, assim como ele, você consegue captar a beleza de momentos do cotidiano...

    Abraço.

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