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18 julho 2009

Sobre a fragilidade dos sonhos - parte primeira.

Nota:

"Fragilidade dos sonhos" é uma expressão literária que me lembra muito uma música. Uma música instrumental chamada "Best Unsaid", do compositor norte-americano Michael Brook. Quem tiver a saudável oportunidade de escutá-la, escute. É uma linda melodia: suave e ondulante como o marulho de um oceano, dessas que nos fazem pensar em dias melhores, em desligamento da realidade, em pródigos dias de utopia... Coisas desse tipo.

Bem, o texto a seguir fala de um episódio que ocorreu comigo e com uma amiga, há muito tempo - ainda na época em que Crepúsculo não era febre, em que Barack Obama não era presidente dos E.U.A e em que eu acreditava na boa fé ingênua das pessoas. Na realidade não sei por que razão escrevi sobre isso, quais as forças que me obrigaram a fazê-lo.

A verdade é que o escrito aí está.

O final pode ser interpretado como uma filosofia salvacionista barata, mas eram essas as idéias que povoavam a minha cabeça na época. E como o objetivo aqui é ser sincero, não pude deixá-las passar. Tentando ofuscar um pouco essas filosofias de folhetim, me senti inclinado para o humor na hora de escrever esta primeira parte do texto; na segunda, a tendência foi mais para o lado sério. Não sei se fui bem-sucedido em qualquer uma das duas.

A verdade é absoluta e sempre triunfará. Não há nada de errado nisso, apenas não é assim. (Mark Twain)

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"Vamos rápido, Marlo... Ou você quer perder a aula da professora Fátima?", diz Sabrina, à minha frente, enquanto percorremos os corredores apertados do Shopping Center Del Paseo, abarrotado de gente naqueles dias de outubro. Minha amiga está a mais ou menos dois metros de distância de mim e, preocupada com o horário da aula de Biologia, faz questão de andar mais rápido que eu, que não estou tão empolgado quanto ela.

"Se você me esperasse, Sabrina, ficaria mais fácil acompanhá-la", digo. Não estou muito familiarizado com os antros labirintosos do Del Paseo, e perdê-la de vista ali seria algo desastroso. Ela então abre os braços, divertida. "Tudo bem, tudo bem", concede e atrasa o ritmo, sempre olhando para o relógio do pulso e para as fachadas das lojas ao redor.

São duas horas de uma tarde de sexta-feira, e estamos procurando juntos naquele shopping um restaurante que possa nos oferecer comida boa e barata àquela hora do dia. Saímos do colégio à uma hora da tarde, pegamos o bonde que vai direto ao Del Paseo (estabelecimento mais próximo) e agora cá estamos, à procura de um almoço decente, antes que a aula de Biologia comece e tenhamos de assistir à preleção da professora Fátima mortos de fome.

"Essas aulas em horários quebrados são ridículas", Sabrina fala, desviando-se das pessoas e abrindo caminho. Sigo-a por trás, cruzando com os transeuntes. "Poderiam colocar todas em um turno só", ela continua. "Ficaria bem melhor, bem mais fácil". Um curto silêncio. "O que será que há de errado com as autoridades?"

"Olha, podemos comer um hamburguer", proponho, já tentando acompanhar os passos da minha amiga, que outra vez aumentaram e me deixaram para trás. "Ou um simples Kalzone", arremato. Mas ela olha para mim por sobre o ombro, sorri o seu sorriso de esfinge, e corta: "Não fale besteiras. Almoçar um hamburguer? Um Kalzone? É por isso que você não se alimenta direito, menino".

É por isso que você não se alimenta direito. Faço reflexões. Sabrina não é do tipo de garota que se preocupa em ter uma alimentação saudável, pelo menos não em larga medida. Eu sei disso. Muitas horas de conversa já me revelaram esse detalhe. E ela também não é do tipo que se preocupa febrilmente com o horário de uma aula. Por outro lado, não sou do tipo de pessoa que come hamburguers e Kalzones toda a semana - na verdade, sequer me lembro da última vez em que comi este último.

As coisas estão trocadas, concluo. Comportamentos contraditórios em pessoas que não apresentam determinado naipe de personalidade. Isso geralmente acontece em indivíduos que se encontram sob pressão.

"Aqui!", exclama Sabrina no momento em que entramos na praça de alimentação e passamos pelo mosaico grandioso que há no piso da entrada. "Já sei, comeremos comida chinesa", diz, escrutinando os arredores. "É uma comida saudável e barata, pelo menos até onde eu saiba", conclui.

As vidraças do shopping, em tons azulados, lá no alto, deixam passar a luz do dia e a transformam em feixes luminosos coloridos, que recaem sobre o piso lustroso de granito. Pelos meus olhos desfilam as fachadas das lanchonetes e dos restaurantes. A verdade é que as minhas costas estão totalmente doloridas por conta da mochila e do enorme peso que ela traz, e a minha vontade real é de sentar sem se importar bem onde. "Ótima escolha, comida chinesa", concordo, e me ponho a procurar mesas vazias.

Encontro uma, sento-me pesado a uma das mesas e ponho a minha mochila ao lado, em uma das cadeiras de alumínio. Assim é melhor, concluo, executando uma série de leves exercícios corporais. E bate então uma saudade da época em que eu levava para o colégio uma mochila com rodinhas, e saía arrastando-a pela rua, de mãos dadas com a minha mãe. Minhas costas agradeciam por aqueles dias.

Lá na frente, já na fila do estabelecimento e com bandejas e pratos na mão, Sabrina acena para mim e pergunta com gestos o que eu vou querer. Abano a mão e grito: "Qualquer coisa!" Ela sorri e se volta novamente para o balcão. Consulto o relógio do celular. Fico observando os dígitos por um bom tempo, até perceber que já é tarde demais.

Quanto a mim, tenho a leve sensação de que não vamos assistir a aula de Biologia nenhuma.

[Para ser sincero, tenho um escondido e tépido desejo de não comparecer a esta aula. Não que eu seja gazeteiro, vagabundo ou simplesmente desleixado - longe disso. Acontece que a professora Fátima tem uma famosa e asquerosa tendência a querer mostrar o lado negro e vil da Biologia para os seus alunos; entenda-se por "lado negro e vil" todas aquelas fotos repugnantes de feridas carnais, lesões epidérmicas e vermes saindo pelas bocas de um mortal. Eu já vi isso uma vez. E até mesmo, na penumbra da sala iluminada apenas pelo retro-projetor, vi a professora Fátima, a um canto, sorrindo entre divertida e irônica ante a pavorosa surpresa dos alunos. Ela é sádica, acima de tudo, e não poupa palavras grotescas durante as suas preleções.

Hoje, no caso, às duas horas da tarde, teremos uma aula sobre Doenças Sexualmente Transmissíveis, com direito a vídeos de dissecação de genitálias e fotografias com avisos do tipo "Conteúdo Não-Aconselhado para Pessoas Emocionalmente Instáveis". Certa vez, um amigo meu, durante uma dessas aulas tenebrosas, me confessou: "Droga, Marlo, vendo essas coisas a gente até perde a vontade de ir para a cama com uma garota!" (Lembro bem dessas palavras saltando no meio da escuridão e me pegando de surpresa. Pobre Rafael... Por onde será que ele anda hoje em dia? O que estará fazendo?)

Pelos quatro cantos do colégio percorre o rumor de que a professora Fátima, sexualmente impotente após um acidente com barbitúricos, desconta a raiva e a amargura nos alunos. Será verdade? Ninguém sabe. Mistério.

É por isso que, depois do almoço, não me sinto totalmente inclinado a entrar naquela classe. Não sem antes me certificar de qual é o "espetáculo" que a professora Fátima nos reserva.]

Cruzo então as mãos sob a nuca e, quando me ponho a contemplar a grande cúpula de vidro que há sobre a praça de alimentação do Del Paseo - uma clarabóia bem-feita e digna de apreço -, Sabrina chega com uma bandeja, dois pratos fumegantes e dois copos com suco. Põe tudo em cima da mesa e se senta à minha frente, arrastando a cadeira ao fazê-lo.

"Suco, Sabrina? Suco?!", brinco.

"Eles estavam sem Coca".

Coço a cabeça. "Está vendo? Esse é um dos problemas do monopólio".

(...)

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