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18 julho 2009

Sobre a fragilidade dos sonhos - parte segunda.

(...)

"Grande cavalheiro você é", ela brinca e tira o garfo e a faca do invólucro de plástico. "Sequer me ajuda a carregar as coisas!" Sorrimos e começamos a comer sossegadamente. Há por todo o ambiente um zumzum sedativo de vozes de pessoas que conversam e talheres que tilintam. Ponho um naco de frango na boca e curto um pouco o sabor daquele incrível molho de "não-sei-o-quê".

"Está gostoso", aprovo. "Confesso que você fez uma ótima escolha".

No entanto, a nossa paz dura pouco, ao passo que, ao nosso lado direito, em uma das mesas vizinhas, acontece um espetáculo deplorável: um grupo de adolescentes competem entre si para ver quem arrota mais alto. Eles bebem goles e mais goles de Coca-Cola, concentram o gás na garganta e arrotam. O barulho é poderoso e enche o lugar. Há garotas no meio do grupo, também, percebo, o que é mais execrável e hediondo ainda.

Volto a cabeça e digo, alto, sorrindo: "Poxa, Sabrina, estamos mesmo cercados por imbecis. O que a gente faz?" Um dos adolescentes sardentos olha para mim, tentando dar ao olhar um caráter de fuzilamento, mas a única coisa com que ele fica se parecendo é um boi inofensivo doente ruminando capim. Um outro rapaz, mais baixo e de nariz aquilino, fica tentando me encarar com ares de irascível, sem sucesso.

Com uma das mãos, Sabrina transforma um pedaço de guardanapo em uma pequena bolinha de papel e, fazendo mira, a lança no cabelo de uma das garotas, piscando o olho em seguida. Coisas desse tipo fazem parte da sua campanha de má vontade, da sua rebeldia organizada. E então, após muita insistência muda da nossa parte, conseguimos que os porcos saiam da mesa para se alojarem noutro lugar.

"Pensar que adolescentes como esses farão parte da nova geração e comandarão o mundo dentro de algumas décadas me deixa apreensivo", digo, bebendo um gole do suco. E arremato: "Esse suco de maracujá vai nos dar sono. Vamos dormir sobre as carteiras enquanto a professora Fátima fala de sífilis e outras coisas. Culpa sua".

Minha amiga dá de ombros, ri e anuncia: "Escuta, nós não vamos para essa maldita aula de Biologia. Já está muito em cima da hora. Percebeu? E, convenhamos, conversar sobre qualquer coisa é mais interessante do que olhar para aquelas fotografias terríveis que a professora Fátima coloca no retro-projetor. E depois do almoço, então! Acho que eu sou capaz de passar mal. Tudo bem?" "Tudo ótimo", respondo.

"Fechado. Mas será que vamos ser suspensos por causa da falta?", ela pergunta, mais brincando do que falando sério. "Tomara que sim, sabe", respondo, também na brincadeira. "Ficar uns dias sem a companhia do Túlio [nosso professor de Física] seria muito bom." (Ele é tido como um dos professores mais carrascos e ignorantes do nosso colégio. Até mesmo os coordenadores já travaram rixas com o velho Túlio. Ele é detestável, tão detestável que nem as pessoas detestáveis o suportam.)

Sabrina sorri melancolicamente ante a visão do irascível professor de Física, suspira e deixa o garfo a meio caminho da boca, com pedaços de macarronada pendendo do talher. Ela então gira o garfo lentamente em 360 graus - no seu rosto não há mais o sorriso -, enrodilhando a extensão do macarrão e, só depois que os fiapos estão todos fixados, ela os leva à boca. Pelos anos de convivência que tenho com esta menina, sei que ela está procurando palavras para iniciar um diálogo mais sério comigo.

E, de fato, é o que acontece.

"Às vezes", ela começa, "eu fico pensando em como seria bom se nós não dependêssemos de um colégio para sermos alguém na vida. Pense bem. Não seria? Não quero dizer só os colégios, mas todo o tipo de estabelecimento que é de certa forma 'ruim' para o nosso ego, para a nossa... alma, sei lá... para o nosso bem-estar. Mas, não: temos de passar por lugares maçantes, temos de conviver com pessoas imbecis, fazer relações com pessoas imbecis, para depois pisar em cima delas e sorrir para um ideal apagado".

Quem está falando não é a Sabrina, penso, divertido. É Henry David Thoreau, seu escritor irreverente favorito.

Olhá-la falando daquele jeito, vestida com o uniforme de uma instituição educacional, me faz sorrir com o canto da boca. Penso: O problema é que ela lê muitos livros de literatura que tratam de denúncia pública. Esse tipo de literatura nos faz sentir na pele a dolorosa pulsação da existência humana e das mazelas que a acompanham. De alguma forma, ela pensa nisso. De alguma forma, a maioria das pessoas que me cercam pensam nisso: na sofrida labuta que os mortais têm de levar para encararem a vida.

"Eu sempre quis ser pintora, sabe?", ela continua, mordendo um pedaço de frango empanado. Eu sei que ela sempre quis ser pintora. Sabrina continua: "E certo dia resolvi dizer isso para a minha mãe, apenas por brincadeira. Queria ver qual era a reação dela. Mas quis parecer que eu estava falando sério, e que aquela seria a resolução da minha vida. Então disse: 'Mãe, vou abandonar os estudos e ser pintora. O que a senhora acha?'"

"Sabe o que foi que ela respondeu?", prosseguiu. "Bem, primeiramente, é lógico, ela ficou super-preocupada, assustada mesmo. Achou que eu estava enlouquecendo, achou que eu estava doente, delirando. E disse: 'Mas, minha filha, ser pintora... ser pintora não dá dinheiro. Ninguém vive da venda de telas. Faça alguma coisa que lhe dê finanças melhores e, depois, quem sabe, você pratica a pintura como hobby'".

Percebi, meio melancólico, que não era só a mãe de Sabrina que lhe vedava o sonho de ser pintora, mas a sociedade humana inteira. A voz da sua mãe era acompanhada pela voz das convenções sociais. "É curioso", verbalizo, "mas ninguém tem a coragem de chegar para um jovem e dizer: 'Vá lá, meu amigo, vá ser pintor, ou escritor, ou fotógrafo... Contanto que você faça aquilo de que goste!' Incrível, não é? Ninguém tem a coragem de dizer isso, embora todos tenham o impulso; embora todos saibam que isso deixaria as coisas mais fáceis".

E penso: Não é a primeira vez que eu tenho uma conversa deste tipo com alguém. E não será a última. É o tipo de conversa que pessoas que sabem estar desamparadas têm umas com as outras.

"Não é chato receber na cara a afirmação de que os nossos sonhos não valem a pena?", Sabrina pergunta. E fica calada, mastigando. Esta pergunta tem um peso excessivamente desagradável, um peso de que toda a humanidade quer se livrar, concluo. É uma indagação que traduz o sentimento desconfortável de milhares de pessoas no planeta inteiro.

Balbucio alguma evasiva em resposta. Ficamos na esteira dessa conversa ainda por um bom tempo. Enquanto outras pessoas, com bandejas na mão, procuram um lugar para se sentarem, eu e ela conversamos aspectos de metafísica e do sofrimento que aflinge a alma da maioria dos mortais.  Até que terminamos o nosso almoço e fomos rever assuntos de Química, sentados perto de uma fonte d'água que não estava funcionando direito.

"Niels Bohr era gênio", ela comenta, rabiscando uma espécie de modelo atômico no caderno.

De qualquer modo, a única coisa de que ainda me lembro bem neste dia - neste dia de sexta-feira, às portas do vestibular, com dezenas e dezenas de tópicos a conferir para as provas - foi que, na hora de nos despedirmos, na saída do estacionamento do Shopping Del Paseo, Sabrina colocou sobre os ombros a sua mochila de ursinho e, sorrindo para mim o seu eterno sorriso de esfinge, apenas balançou a cabeça. Balançou lentamente, sorrindo, cerrando os olhos um pouco. Depois, sumiu-se por entre as fileiras de táxis, acenando.

Fiquei com a impressão daquele sorriso e daquele balançar de cabeça por muito tempo ainda e, talvez somente hoje, percebi o que significavam. De certa forma, Sabrina estava querendo dizer que, efetivamente, por mais que digam o contrário - pais, professores, amigos - a verdade é que nós não pertencemos a este mundo real, de injustiças e incoerências, onde raramente temos a oportunidade de vingar nossos sonhos. Não: com aquele sorriso e com aquele meneio de cabeça ela quis dizer que pertencemos a outro mundo, um mundo de ilusões, de possibilidades amplas, flexíveis, pródigas, alheio à realidade contundente, onde fazemos aquilo que queremos, a nosso bel-prazer, e mandamos os outros às favas sem se importar com as conseqüências.

Não sei bem por quê, mas a minha interpretação foi essa.

Ela pode estar errada; e a única coisa que a minha amiga quis dizer com aquele sorriso foi: "Tchau, Marlo. Boa sorte nos estudos". Mas a verdade é que raramente sabemos o que um sorriso quer dizer. Ainda bem.

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