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07 julho 2009

Um Lugar ao Sol, de Erico Verissimo

um lugar ao sol

Hoje - ao final de uma tarde fria e monótona de inverno, ao longo do qual praticamente não fiz nada além de ler e comer Fandangos -, finalizei a leitura de um belo e inesquecível romance nacional: Um Lugar ao Sol (1936), do incrível e ímpar escritor gaúcho Erico Verissimo. (Sem acento, mesmo!)

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Sinopse (Livraria Travessa, com algumas modificações minhas): [Depois que o pai é assassinado a mando do prefeito de Jacarecanga e a família perde seu suntuoso casarão por uma hipoteca não paga, a jovem professora Clarissa se muda para Porto Alegre com a mãe, Clemência, e o primo, Vasco. Primeiro eles se hospedam na pensão de tia Eufrasina; depois, na casa da professora Fernanda; e, enquanto Clarissa enfrenta precocemente a luta pela sobrevivência na cidade grande, Vasco se envolve com a boêmia local e conhece um estudante de medicina cujas atividades revolucionárias incitam a ira do Estado policial.

Uma miríade de subtramas e personagens secundários desfila ao longo do romance: um conde austríaco bem-apessoado e cavalheiresco que lê Dom Quixote; uma dona de pensão pardacenta e bolachuda, mas extremamente simpática; um ex-bancário que aprecia as mais finas valsas de Chopin; um imigrante espanhol que vive a falar da política brasileira... O resultado é uma dose alentada de vida, capturada em sua essência mais laboriosa e vibrante, por vezes negra, mas sempre profundamente emocionada.]

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O que falar de um livro cuja leitura tanto amámos? Como traduzir em palavras todos os sentimentos, imagens e reflexões que aquelas páginas nos despertaram? Eu não sei muito bem como fazer isso. Corro o sério risco de parecer bajulador demais, mas a verdade absoluta é que Erico Verissimo mudou a minha concepção do que é possível esperar da literatura brasileira - aliás, é uma pena que ele já tenha falecido há 34 anos e nada mais seu venha a ser publicado.

Antes, eu lia escritos de certos autores nacionais pomposos e invariavelmente acabava pensando: "De onde será que vem toda essa aura ao redor do Fulano? De onde vem esse título de 'um dos melhores romancistas do Brasil' de Cicrano? Não vejo nada de brilhante nestas páginas". Sim, era isso o que eu pensava quando entrava na minha livraria predileta e percorria as prateleiras dos meus conterrâneos. Julgava a literatura brasileira algo estéril, seco, opaco, desprovido de verdadeira arte; porém, com a aparição de Verissimo, vi que ainda é factível descobrir nomes brasileiros realmente bons no ramo da 3ª Grande Arte.

Mas, sem mais volteios, vamos ao romance em si. Um Lugar ao Sol é a continuação de Música ao Longe (já resenhado aqui no Artigos Efêmeros), que por sua vez é a continuação de Clarissa (obra cuja posse pretendo ter dentro em pouco). Apesar de comporem uma trilogia, os três romances podem ser lidos muito bem separadamente em ordem aleatória, sem que isso afete qualquer coisa na compreensão da história da Família Albuquerque - os personagens e as situações anteriores são apresentados com a devida contextualização.

A prosa rica em adjetivos inauditos e metáforas bem elaboradas, além de um texto enxuto e desprovido de rodeios - sem contar, ainda, com a incrível atualidade do livro -, faz de Um Lugar ao Sol um romance cuja leitura não podemos postergar por falta de interesse ou por monotonia. Apesar de ter sido escrito no começo do século passado e de ter algumas conjugações verbais fixadas no "tu" (coisa de que algumas pessoas não gostam), o estilo de escrita é agradabilíssimo e conversado, espraiado, sem passagens muito densas.

E, nossa, como é fácil gostar dos personagens do livro! Na verdade, como é fácil se sentir atraído por todos os personagens que o autor cria! São sempre indivíduos simples, frugais, carcomidos por pequenas frustrações e sempre à cata de um sentido aceitável para a vida! Temos, no caso de Um Lugar ao Sol, o jovem Vasco Bruno Albuquerque - primo de Clarissa -, em cujas veias parece correr ainda o sangue aventuresco e rebelde do pai, que fugiu da família há tempos e foi percorrer o mundo sozinho "como um gato orgulhoso". É essa espécie de atavismo que faz Vasco sentir uma ânsia desenfreada por abandonar tudo e todos e andar pelo planeta de Norte a Sul, como o pai, conhecendo lugares longínqüos e misteriosos, vivendo do que o dia traz, do que as pessoas oferecem e do que é possível fazer com as próprias mãos - sim, me senti brutalmente identificado com este sujeito, Vasco Bruno.

Ainda falando de personagens: outra que me chamou bastante atenção foi "la bela madonina dos olhos tropicales", Lu, dezessete anos, cuja irreverência e despropósito para com a família me fez lembrar e muito os jovens desvairados de hoje - xingando os pais, batendo os pés no chão, fugindo de casa para ir com o namorado às baladas da noite no Cassino. O comportamento da garota é tão próximo dos dias atuais que, sem querer, acabei imaginando a jovem Lu vestida de calças jeans e camisetas apertadas contra os seios - visto que naquela época provavelmente imperavam os vestidinhos bem-ajustados e comportados. Curioso, não, a força da expressão?

Bom, não quero me demorar aqui falando de cada um dos muitos personagens do livro... Mas não poderia deixar de citar também o velho, irascível e cínico dr. Seixas (Seria o mesmo de Olhai os Lírios do Campo?), que, iludido com a vida e com os homens de idade, vituperava para Dona Magnólia e para o rev. Bell: "O mundo está perdido! E a culpa é nossa, dos velhos, que deixamos para os jovens todos os nossos malditos erros! É por isso que eles são assim, arredios!" E não posso deixar de citar a hilária cena em que, entrando na casa do sr. Orozimbo, Seixas flagra Lu e o namorado na cozinha, entregues a amassos pesados, somente para falar: "Então, brincando de ioiô?" (xDDD)

Existe uma imensa amplitude de reflexões que o autor empresta aos seus personagens ao longo da obra; reflexões que vão desde a vacuidade carnal do amor até a filosofia por trás da arte de escrever livros, passando pela metafísica profunda da existência dos seres humanos e pelos sentimentos emanados por causa da simples falta de um emprego. Em dados momentos, damos com Noel pondo-se a pensar sobre o trabalho artesanal e regozijante que é fazer literatura, enquanto, do outro lado da cidade, o conde austríaco Oskar conversa com Vasco sobre a existência humana e a resume em metáforas, enquanto tomam café.

"Eu acho, jovem amigo", diz ele, "que a humanidade não passa de um parque de diversões que foi lotado por máquinas que os homens construíram - máquinas cinzentas, sujas, engraxadas, que espirram óleo nas pessoas que estão no parque. E eu, como bom gentleman, tento apenas passear pelo belo parque, fazendo o possível para que estas máquinas terríveis não me espirrem qualquer coisa da sua sujeira". (Estas palavras são minhas, e não do autor; somente resumi o pensamento do personagem Oskar.)

Enfim... É a prosa irresistível de Erico, a boa edição da Companhia das Letras (se bem que, para uma edição comemorativa, faltou as orelhas), o otimismo incurável da personagem Fernanda (24 anos e já dona-de-casa), a insaciável sede de viagens de Vasco ("O mundo! Que coisa bela é o mundo!"), as aventuras rocambolescas de Lu ("Ela é jovem, está em busca do prazer."), as frustrações cômicas de Amaro Terra ("Ex-bancário. Desempregado e pianista."), a docilidade frágil e enervante de Clarissa ("Ela sorri aos canários da primavera.") - enfim, é tudo isto, e mais todo o resto, que fazem de Um Lugar ao Sol um dos livros mais impressionantes que já li.

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Aqui vai um pequeno fragmento do texto que, como de praxe, sempre costumo colocar no final das minhas resenhas. Longe de ser "O melhor" trecho, esta passagem me chamou a atenção apenas por ser de uma docilidade e expressão únicas. (Não sei se quem que não leu o livro vai achá-la tão marcante quanto eu achei.)

Na cena em questão, acontece que o dr. Seixas é chamado em domicílio para dar o prognóstico do enfermo sr. Orozimbo, e, atendendo aos pedidos insistentes de Dona Magnólia, vai ver também o caso da irreverente Lu e "dar-lhe conselhos para que ela pare com esta revolta enervante" e com esta vida de "rapariga farrista".

Mas o dr. Seixas, como sempre, apesar de ser amigo da família, acaba se revoltando contra a arenga da senhora e despeja:

"Olhe bem, dona Mag. Nós somos os culpados, nós os mais velhos. Fazemos guerras, loucuras, não temos juízo no miolo, estragamos o mundo e os jovens que vêm atrás de nós é que sofrem. Que culpa têm eles? Por que é que fizemos a Grande Guerra? Que foi que o mundo lucrou? Lucrou isto: toda essa pobre rapaziada hoje não sabe a quantas anda. Nós os velhos malucos, viciados e egoístas é que temos a culpa..."

O dr. Seixas fumava, sombrio. Continuou:

"Não adianta, não adianta. Hoje, depois... Mais tarde ou mais cedo a Lu vai embora, foge. Tem dezessete anos. Os mais moços não compreendem os mais velhos. É a vida. Não se iluda."

(...)

O doutor entrou no quarto de Lu. Segurou a menina pelos braços e olhou-a bem no rosto. Lu sorriu. Com o toco do cigarro colado ao lábio inferior, o doutor olhava firme para aqueles olhos dum verde sensual fresco e vítreo. Depois sorriu e largou-a. Voltou para a sala.

"Não houve nada. Boto a minha mão no fogo por aquela garota."

Enterrou o chapéu na cabeça e encaminhou-se para a porta. Voltou-se antes de sair.

"Não tem jeito, dona Mag. Nós somos os culpados. Nós, as pessoas que já estiveram antes aqui nesta terra e fizeram do mundo um lugar pior. Não se iluda. E não culpe a menina."

Disse isso e se foi.

***

(VERISSIMO, Erico. Um Lugar ao Sol, págs. 362-3. Companhia das Letras, 2005.)

Um comentário:

  1. Bom dia, Marlo-kun!
    Tinha visto ontem, enquanto conversávamos, que havia psotado um texto novo no seu blog, mas como estava distraída no msn, resolvi que leria com mais calma mais tarde. E cá estou. ^^
    Sempre achei que a literatura brasileira pudesse ser assim, vazia e chata. As poucas coisas que li não me chamaram a menor atenção, além do que, tenho uma grande implicância e desconfiança com tudo que venha do Brasil! xD
    Mas, vejo que Erico Verissimo possa ser uma exceção, quando eu for a uma livraria, procurarei por ele. ^^
    E, por fim, vejo que ainda está preocupado por não estar conseguindo escrever muito. Creio eu que entenda como se sente, em mim esta falta do que escrever causa certo medo, medo mesmo, sabe?, de perder a capacidade de fazer algo que me agrade ao final... É estranho, mas tenho esta sensação, dentre muitas outras. Ainda sim, se nos forçarmos a digitar alguma coisa sem a tal fadada inspiração, pode apenas vir a ser pior, criando um texto massudo e que, para nós, não tem o menor significado (o que vejo como o resultado pior ao se escrever), e, então, nos sentirmos ainda mais abalados. Se for mesmo isto que está sentindo, liga não, apenas curta um bom ócio. :)

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