"O mar verde estava calmo. A terra que se via adiante era uma cordilheira de montanhas negras e azuis, envoltas em nevoeiro. Navegamos na direção do cais e percebemos que as nuvens estavam baixas, pouco acima das copas das árvores. Acima delas, erguia-se uma cadeia de picos. Alguns eram como espinhos no dorso de lagartos monstruosos. Outros pareciam dentes molares."
Certos livros são facilmente reconhecíveis como clássicos da literatura.
Uma história original, uma narrativa vigorosa e autoral, um estilo de escrita belo e profundo, um personagem emblemático e um enredo que nos sugere metáforas sobre a condição humana são alguns dos elementos de um bom livro. Quer dizer, quando você encontra uma ou duas dessas características em uma obra, podemos dizer que você tem em mãos uma ótima leitura. Mas quando você tem a sorte de encontrar todos esses elementos juntos, então podemos dizer, sem medo de errar, que se trata de um clássico - se não já consolidado, ao menos em potencial. A Costa do Mosquito (The Mosquito Coast, 1982) possui todas essas qualidades que eu citei; foi o livro mais recente que li que pode ser chamado de clássico.
Paul Theroux disserta ao longo do romance, de modo muito consistente, o seu modo particular de enxergar a cultura norte-americana e a verve expansionista e imperialista estadunidense que rendeu aos ianques a fama de "xerifes do mundo" ou "modelo de desenvolvimento e progresso". Essa visão de Theroux sobre o próprio país possibilita as várias metáforas sociais que pululam pelo texto, todas circulando ao redor do elemento principal da história: Allie Fox, um inventor obsessivo e irascível, que vende tudo o que possui nos Estados Unidos e faz a família sair da pacata Hatfield, em Massachussets, para começar tudo do zero nas selvas opressivas de Honduras - um lugar isolado que, para ele, remete a uma espécie de paraíso em que se pode finalmente fundar uma sociedade funcional baseada na técnica e no trabalho árduo.
Fox não encontra grandes dificuldades para efetuar essa mudança repentina de vida porque nenhum dos demais membros da sua família - quatro crianças e uma mulher submissa - tem voz suficiente para contestar os planos notoriamente descabidos do homem. Todos o seguem como se ele fosse uma espécie de salvador penitente, como se, ao fazer aquilo - ao promover uma mudança de vida tão violenta a si e à família -, ele estivesse deixando para trás um mundo de horror e idiotia em prol do sacrifício de fundar uma sociedade livre, honesta e naturalista da qual todos irão gozar posteriormente. Certos da infalibilidade do patriarca, ninguém o contesta.
É pensando nessa sociedade tecnicamente eficiente e em um estilo de vida próprio que Allie Fox compra um vilarejo decrépito no meio da floresta hondurenha, às margens de um rio barrento. Lá ele busca dar início ao seu projeto para afirmar, talvez para si mesmo, que estava certo: que uma vida liberta é uma vida em que o trabalho prático e a engenhosidade se unem em prol do conforto. Logo que chega ao terreno, Fox se põe a trabalhar e distribui obrigações à sua família e aos diversos nativos que acabam tomando parte de sua empreitada.
Uma história original, uma narrativa vigorosa e autoral, um estilo de escrita belo e profundo, um personagem emblemático e um enredo que nos sugere metáforas sobre a condição humana são alguns dos elementos de um bom livro. Quer dizer, quando você encontra uma ou duas dessas características em uma obra, podemos dizer que você tem em mãos uma ótima leitura. Mas quando você tem a sorte de encontrar todos esses elementos juntos, então podemos dizer, sem medo de errar, que se trata de um clássico - se não já consolidado, ao menos em potencial. A Costa do Mosquito (The Mosquito Coast, 1982) possui todas essas qualidades que eu citei; foi o livro mais recente que li que pode ser chamado de clássico.
Paul Theroux disserta ao longo do romance, de modo muito consistente, o seu modo particular de enxergar a cultura norte-americana e a verve expansionista e imperialista estadunidense que rendeu aos ianques a fama de "xerifes do mundo" ou "modelo de desenvolvimento e progresso". Essa visão de Theroux sobre o próprio país possibilita as várias metáforas sociais que pululam pelo texto, todas circulando ao redor do elemento principal da história: Allie Fox, um inventor obsessivo e irascível, que vende tudo o que possui nos Estados Unidos e faz a família sair da pacata Hatfield, em Massachussets, para começar tudo do zero nas selvas opressivas de Honduras - um lugar isolado que, para ele, remete a uma espécie de paraíso em que se pode finalmente fundar uma sociedade funcional baseada na técnica e no trabalho árduo.
Fox não encontra grandes dificuldades para efetuar essa mudança repentina de vida porque nenhum dos demais membros da sua família - quatro crianças e uma mulher submissa - tem voz suficiente para contestar os planos notoriamente descabidos do homem. Todos o seguem como se ele fosse uma espécie de salvador penitente, como se, ao fazer aquilo - ao promover uma mudança de vida tão violenta a si e à família -, ele estivesse deixando para trás um mundo de horror e idiotia em prol do sacrifício de fundar uma sociedade livre, honesta e naturalista da qual todos irão gozar posteriormente. Certos da infalibilidade do patriarca, ninguém o contesta.
É pensando nessa sociedade tecnicamente eficiente e em um estilo de vida próprio que Allie Fox compra um vilarejo decrépito no meio da floresta hondurenha, às margens de um rio barrento. Lá ele busca dar início ao seu projeto para afirmar, talvez para si mesmo, que estava certo: que uma vida liberta é uma vida em que o trabalho prático e a engenhosidade se unem em prol do conforto. Logo que chega ao terreno, Fox se põe a trabalhar e distribui obrigações à sua família e aos diversos nativos que acabam tomando parte de sua empreitada.
Acompanhamos a história pelos olhos de Charlie Fox - o filho mais velho, de treze anos -, que se vale de uma visão em retrospecto para pincelar com certa sabedoria os contornos da personalidade do pai, da mãe e dos irmãos - muito embora as situações sejam todas narradas como se estivessem acontecendo no calor do momento. O fato de a narrativa se desenrolar através das palavras de Charlie é um dos elementos principais do romance, pois é através desse recurso que Theroux explora com beleza a relação contraditória e conflituosa entre pai e filho, o peso do patriarcado autoritário e a descoberta da fragilidade e dos defeitos dos genitores. Charlie dá ao leitor a chance de conhecer Allie Fox pela sua própria ótica, e ele consegue enxergá-lo, apesar de tudo, a certa distância, perscrutando sua personalidade imprevisível.
É curioso notar como Theroux conseguiu criar um personagem sólido e muito profundo usando apenas a ótica de outro personagem - no caso, do narrador, Charlie. Tudo o que conhecemos de Allie é fruto do relato de seu filho primogênito, mas não é preciso muito tempo para que o leitor perceba que o protagonista da história é ele mesmo, Allie. A maneira como o patriarca governa a própria família e os nativos da floresta - como se estivesse governando um país -, a sua eficiência ao gerenciar recursos e obras e a sua loquacidade perturbadora, cheia de personalidade, são o grande destaque de tudo o que salta das páginas. Allie Fox é um sujeito genioso, ríspido, inconstante, mas todos o seguem como se sua autoridade fosse naturalmente incontestável - como se ele de fato soubesse o que é melhor para todos.
E o mais impressionante é como podemos ser seduzidos pelos discursos de Allie. Ao longo do romance, o personagem faz várias preleções breves, a maioria delas girando em torno da mesma temática: o conformismo americano, as contradições de uma sociedade que parece cada vez mais doente - "os dentistas são acionistas de fábricas de doces!" -, a capacidade que todos nós devemos ter de tocar nossas vidas com nossos próprios recursos, sem excessos e de maneira eficiente, o consumismo nocivo, o desperdício de materiais que podem ser reaproveitados etc. São discursos simples, sempre exagerados e inflamados, mas com um fundo de sensatez que nos faz compreender um pouco as motivações de um personagem tão complexo.
"Naquela noite, abri os olhos no escuro e senti que o Pai não estava em casa. A sensação de que falta alguém é mais forte do que a sensação da presença de alguém. (...) Foi uma sensação de vazio solitário, como se, em algum lugar da casa, um buraco de ar estivesse no lugar onde seu corpo deveria estar. Meu medo era de que aquele homem imprevisível estivesse morto, ou, pior que morto, estripado e assombrando a propriedade."
Cena do filme A Costa do Mosquito (1986) |
A Costa do Mosquito é o romance mais conhecido de Paul Theroux não somente porque é o mais audacioso e acertado dos seus livros de ficção, mas também porque ele sintetiza de forma muito precisa toda a visão que o autor tem sobre o estilo de vida vaidoso norte-americano e sobre a própria missão geopolítica dos Estados Unidos. Não por acaso Allie Fox encarna o sujeito que, nas suas palavras, vai trazer a civilização para a selva de um país esquecido da América Central e, com ela, a esperança, o desenvolvimento social e a inteligência necessária para que os nativos caminhem por sua conta. Este é, afinal, o modelo de algumas das estratégias imperialistas do país: o mesmo país que o personagem tanto odeia e do qual está fugindo, aliás. Invadindo vilarejos sem ser convidado e ignorando a cultura local, Allie difunde - ou acha que difunde - sua ideologia pessoal, considerando-a tão certa que ele sequer cogita a possibilidade de ser contestado. O que está em jogo aqui não é a validade de sua teoria ou de seus propósitos, mas a capacidade do personagem de fazer com que ela seja assimilada pelos nativos - e pela sua própria família - que ele julga proteger e ajudar.
Contundente, violento e sufocante, A Costa do Mosquito não deixa de ser belíssimo, tanto em sua forma quanto em seu conteúdo, graças ao talento notável de Paul Theroux com as palavras. As surpresas do mundo exótico descrito pelo autor - das florestas de Honduras ou de suas praias desertas - estão escondidas em cada página e são reveladas aos poucos, como quando alguém abre um pop-up book. É um livro que, após fechado, imediatamente cava seu lugar na nossa memória: seja pelo choque do percurso, pela simples beleza da escrita do autor ou - mais provavelmente - pelos dois.
Olha só, um novo texto depois de tanto tempo :)
ResponderExcluir"A costa do mosquito" parece realmente interessante. A impressão que eu tive é de que é uma narrativa densa e repleta de camadas. É, também, um tipo de livro que você parece gostar bastante, pelo que lembro das suas preferências. Vou colocar na minha lista de leituras :)
Só discordo um pouco do trecho "Uma história original, uma narrativa vigorosa e autoral, um estilo de escrita belo e profundo, um personagem emblemático e um enredo que nos sugere metáforas sobre a condição humana são alguns dos elementos de um bom livro. Quer dizer, quando você encontra uma ou duas dessas características em uma obra, podemos dizer que você tem em mãos uma ótima leitura.". Para mim, isso que você afirma aqui, não é necessariamente verdade, principalmente pelo fato do nosso estado de espírito variar constantemente: às vezes a "ótima leitura" é aquele best seller bem raso sem nenhuma dessas características; já outras vezes os "clássicos imperdíveis", aqueles que atendem a esses requisitos, podem ser completamente enfadonhos. Eu gosto de pensar que a leitura é algo democrático e que praticamente qualquer leitura é válida — no fim das contas, tudo não passa de entretenimento, afinal.
Espero ver mais textos seus por aqui :)
Abraço!