Pesquisar neste Blog

24 julho 2010

Misto-quente, de Charles Bukowski

"Que tempos penosos foram aqueles anos – ter o desejo e a necessidade de viver, mas não a habilidade." (p. 7)

Misto-quenteCharles Bukowski

Segundo o calendário que está grudado na porta da minha geladeira, as férias de julho já estão chegando ao fim. E quando as aulas da universidade retornarem, não sei ao certo se vou encontrar tempo para ler alguma coisa relacionada a literatura recreativa – aí é provável que eu não tenha obras sobre as quais escrever aqui.

No entanto, para que o blog não fique abandonado pela falta de artigos, vou escolher aleatoriamente, por semana, um livro da minha estante e traçar alguns comentários sobre ele. Sendo assim, teremos sempre um artigo semanal, independentemente da eventualidade – pelo menos é o que eu espero.

Bem. Iniciando o circuito, o livro escolhido foi o improvável Misto-quente (Ham on rye, 1982), escrito pelo rei underground de Los Angeles, o alemão naturalizado norte-americano Charles Bukowski. Já escrevi sobre um outro livro dele aqui no blog, Factótum (1975).

~~~~

Sinopse: O que pode ser pior do que crescer nos Estados Unidos da recessão pós-1929? Ter pela frente apenas a perspectiva de servir de mão-de-obra barata em um mundo cada vez menos propício às pessoas sensíveis e problemáticas? Esta é a história de Henry Chinaski, o protagonista deste romance que é sem dúvida uma das obras mais comoventes e mais lidas de Charles Bukowski.

Verdadeiro romance de formação com toques autobiográficos, Misto-quente cativa o leitor pela sinceridade e aparente simplicidade com que a história é contada. Estão presentes a ânsia pela dignidade, a busca vã pela verdade e pela liberdade, trabalhadas de tal forma que fazem deste livro um dos melhores romances norte-americanos da segunda metade do século XX.

~~~~

"A primeira coisa de que me lembro é de estar debaixo de alguma coisa. Era uma mesa (…)" É assim que começa Misto-quente, o romance que antecede a narrativa de Factótum – embora tenha sido escrito sete anos depois deste – e conta os primeiros passos (infância e adolescência) de Henry Chinaski, o anti-herói alter-ego de Bukowski. Em Factótum, o autor narra as andanças irregulares de Chinaski pelo mundo dos trabalhos manuais árduos, como limpar banheiros, empacotar caixas e carregar caminhões, tudo isso permeado pela vida boêmia que se resumia a porres homéricos e a sexo mais do que casual. Numa vida em que emprego e desemprego andam juntos, o protagonista do livro leva sua vida como pode, tentando conciliar sua realidade áspera com o desejo de ser escritor.

Já aqui em Misto-quente, Bukowski nos conta o que aconteceu com Chinaski antes disso. É quando somos apresentados a tudo aquilo que fez parte da infância do próprio autor: ser pobre, de origem alemã, ter um pai truculento que maltratava filho e esposa, colegas de escola chatos e perversos, um rosto cravejado de horríveis e numerosas acnes, e as iniciações sexuais na juventude – sujas e escatológicas.

Realmente não é nem um pouco difícil encontrar na narrativa de Bukowski – não só em Misto-quente e em Factótum, mas na maior parte de sua obra – uma espécie de espelho refletindo o que o próprio Bukowski era. Seus livros são, quase totalmente, auto-biográficos, mesmo que isso não seja declarado abertamente. Ao contrário do que pensa Pedro Gonzaga, tradutor de Misto-quente, eu tenho a impressão de que os livros de Bukowski retratam fielmente a vida do autor.

Bem, não consigo imaginar os livros do "velho Buk" em outras edições que não sejam as da editora L&PM Pocket, em seus clássicos volumes de bolso. Me parece que uma edição mais elaborada e mais bem acabada dos romances dele iriam contra aquilo que está nas próprias páginas dos livros – iriam contra a simplicidade, a aspereza e a sinceridade que permeiam a obra de Bukowski. Um volume de bolso que você pode carregar para lá e para cá, sem ter muito cuidado, é quase que uma extensão das histórias do "velho Buk", nas quais as personagens vivem vidas desregradas, vulgares, despreocupadas. Sempre pensei isso.

Charles Bukowski 2Charles Bukowski 3

Sim: o cara das fotos de cima é o autor do livro sobre o qual estou falando. A garota da esquerda, com a qual ele está agarrado, é uma figura que ninguém consegue identificar, embora uma boa quantidade de fotos dele com ela esteja no Google (em posições muito mais à vontade, diga-se de passagem). Observando fotografias desse tipo, não deixo de pensar em Henry Chinaski, seu alter-ego literário, principal personagem de Misto-quente e Factótum, também protagonista de vários contos da obra Fabulário geral do delírio cotidiano.

Tudo bem, está na hora de falar da parte interessante; daquilo que faz de Bukowski um escritor muito superior àqueles que retratam apenas sordidez em seus livros. É preciso falar por que gosto dos escritos do autor e por que não o considero tão vulgar quanto ele aparenta ser normalmente.

Há muito tempo, muito antes de eu pensar em escrever esta resenha, dentro de uma livraria no centro da cidade, escutei um diálogo interessante. Me lembrei desse diálogo agora mesmo. Eu folheava Fortaleza Digital, do Dan Brown, quando atentei para uma conversa que se desenrolava na estante da frente entre um grupo de garotas. Dando um jeito de bisbilhotar por entre as estantes de ferro, percebi que uma delas segurava um exemplar de Misto-quente, dizendo: "Poxa, Bukowski! Adoro esse autor. Mas ele é bem… como a gente pode dizer?" Virou-se para uma das amigas. "É bem escatológico, não é?" A outra concordou: "É sim, bem pesado, muito sexo, muita bebedeira." Uma terceira garota, que folheava contos de Tchekhov, questionou: "Se é tão assim, por que vocês gostam?"

"Porque ele escreve muitíssimo bem", respondeu a que segurava o livro, "e seus personagens realmente têm vida." Relembrando esse diálogo, vejo que a garota tinha razão. Como disse um jornalista do New York Times, há verdadeiro sentimento nas pessoas que Bukowski retrata. Os palavrões, a escatologia e os porres homéricos presentes na obra dele escondem algo que raramente se encontra em livros do gênero: o amor e a simpatia pelos desvalidos. Há humanismo em diversas passagens de Misto-quente, dentre elas aquela em que Chinaski, já adulto, encontra um garoto mexicano dentro de uma casa de jogos, nas últimas páginas do livro.

Conclusão: ninguém é obrigado a gostar de Charles Bukowski, mas, enfim, ele é um escritor que merece a boa fama que tem.

~~~~

Abaixo, o trailer do filme Factótum, estrelado por Matt Dillon e Lili Taylor.

2 comentários:

  1. Um brinde a Bukowski e, principalmente, um brinde a Henry Chinaski. Isto é literatura pura e parabéns pela postagem, ótima.

    ResponderExcluir
  2. Um brinde! hehe... Obrigado pela visita, Kovacs, e obrigado pelo elogio! Bukowski é um grande escritor mesmo, literato por excelência. Abraço!

    ResponderExcluir

Muito obrigado pela visita ao Gato Branco! Seu comentário será extremamente bem-vindo! :)