"Longe desse escarcéu, no silêncio reconquistado, posso ouvir as borboletas voando pela minha cabeça." (p. 105)
Na minha cabeça existe uma lista de histórias que mais me impressionaram e mais me inspiraram a viver uma vida de dedicação, esforço e altruísmo. Essas histórias ainda fizeram com que eu visse que os meus problemas mundanos, perto dos problemas extraordinários retratados nessas histórias, não são absolutamente nada dignos de nota.
Senão, vejamos...
Nessa minha lista está o verídico drama do Milagre dos Andes, em que um time de rúgbi teve de enfrentar as cadeias geladas de montanhas dessa cordilheira latina, após o seu avião chocar-se contra uma delas. Depois de 72 dias na neve, os rapazes conseguiram voltar para casa, não sem antes passarem por uma sucursal do inferno, onde a força de vontade e a fé teve de atingir o seu grau máximo para que a sobrevivência fosse possível.
Na mesma lista está a história famosíssima de Anne Frank, a adolescente alemã que, durante o período em que se manteve escondida com a família e alguns "amigos" em um prédio na Holanda, escreveu um diário que mais tarde se tornaria símbolo do Holocausto e da luta pela justiça, além de ser "um dos livros mais importantes do século XX", segundo o New York Times.
Continuando a seqüência da minha lista de "histórias humanas incríveis", temos a surpreendente aventura do norte-americano Christopher Johnson McCandless, jovem de família abastada que, embora de maneira um pouco equivocada e egoísta, abandonou o conforto de sua vida para ir trilhar os caminhos áridos do país, numa jornada de puro auto-conhecimento e simplicidade, onde a busca pela felicidade frugal reinava.
Pois bem. Devo dizer que, com o término da leitura do livro O Escafandro e a Borboleta (Le Scaphandre et le Papillon, 1997), essa minha lista de admirações ganhou mais um item.
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Sinopse: No dia 8 de dezembro de 1995, o redator-chefe da revista francesa Elle, Jean-Dominique Bauby, sofreu um terrível derrame cerebral que lhe deu uma das mais terríveis conseqüências prognósticas clínicas: todos os músculos do seu corpo ficaram paralisados e não permitiam o menor movimento, com a exceção de um - a pálpebra do olho esquerdo. E é com esta pálpebra que Bauby aprendeu a se comunicar com o mundo externo e, por fim, por incrível que pareça, conseguiu escrever um livro sobre a sua rotina no Hospital Becker, à beira-mar.
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Um feito extraordinário. Essas três palavras são capazes de resumir, de forma simples e precisa, a imagem de O Escafandro e a Borboleta. É um livro em que os limites do possível - como em muitas outras ocasiões que se vê por aí - são colocados à prova. Afinal de contas, como alguém que só consegue mexer a pálpebra do olho esquerdo pode escrever um livro de memórias?
"Simples" assim: um alfabeto distinto (em que as letras mais usadas do idioma são as primeiras) é ditado em voz alta para Jean-Dominique. Quando a letra pretendida por ele é proferida, Dominique pisca o olho uma vez. A letra é escrita então em um caderno à parte e a pessoa volta a ditar o alfabeto conveniente, desde o início, letra por letra. De súbito Dominique pisca o olho outra vez. E assim vão-se formando as palavras. E as frases. E as páginas inteiras.
Parece propício para nós imaginar que, pelo fato de se tratar de um escritor enfermo por uma debilidade tão devastadora, o relato de O Escafandro e a Borboleta seja constituído por uma espécie de telegrama mórbido onde as palavras são jogadas a esmo e o leitor que se vire para decifrar as derradeiras impressões de um doente tetraplégico como Bauby. No entanto, é um engano pensar assim. Este é um livro lindo e, muito mais que um simples relato funesto das semanas no hospital, é também um verdadeiro haicai de parábolas e pensamentos metafóricos escritos em linguagem viva e penetrante. Por sinal, às vezes passava pela minha cabeça o seguinte pensamento: Como é que o cara consegue manter uma calma tão estóica assim diante de uma guinada avassaladora em sua vida? Parece realmente ser algo que de fato não pertence ao mundo das coisas normais.
É claro que, apesar da aparente descontração narrada naquelas páginas, Bauby passa por momentos de melancolia bem difíceis. São situações cujas implicações realmente nos devem pôr para pensar. Por exemplo, o que dizer do momento em que Bauby vai passear pela orla da praia, de cadeira de rodas, em um dia de sol, na companhia da ex-mulher e dos filhos pequenos? Theóphile, o rapazinho, o contempla num mutismo doloroso; Celéste, a mocinha (mais nova que o irmão), limpa a boca babante do pai e lhe sorri de modo afetado. E Bauby reflete que é mais que horrível não poder passar a mão pelos cabelos dos filhos. Deve ser, mesmo.
Como muitas pessoas já devem saber, existe uma adaptação cinematográfica homônima deste livro. É uma produção francesa dirigida por Julian Schnabel (que foi indicado a melhor diretor pelo Cannes justamente por causa dessa obra) e produzida por Katheleen Kennedy (a mesma de Jurassic Park e O Curioso Caso de Benjamin Button).
Apesar de haver no filme muitos elementos largamente alterados ou fictícios - como naturalmente haveria de ser, já que seria uma história levada para os cinemas -, há também toda a gama de sensações que são encontradas no livro e que, de fato, são responsáveis por nos comover. Portanto, além do livro, recomendo o filme.
Em suma, como diria Elie Wiesel, O Escafandro e a Borboleta "conta como transformar dor em criatividade, sofrimento humano em milagre literário." Sem sombra de dúvidas, estamos diante de um livro incrível e altamente recomendado para aquelas pessoas que, sobretudo, amam a vida.
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Abaixo, segue-se uma passagem curta e aleatória do livro:
"É domingo. O sino badala gravemente as horas. Na parede, o pequeno calendário da Assistência Pública, cujas folhas vão sendo arrancadas dia após dia, já indica que é agosto. Por qual paradoxo o tempo, imóvel aqui, corre ali desenfreadamente? No meu universo encolhido as horas se espicham e os meses passam como relâmpagos. Não me conformo de estar em agosto. Amigos, mulheres, filhos se dispersaram no vento das férias." (p. 109)
A seguir, um pensamento muito interessante de Bauby, que (estranho) não se encontra no livro.
"Considero saudável estar só na maior parte do tempo. Estar acompanhado, mesmo pelos melhores, cedo se torna enfadonho e dispersivo. Adoro estar só. Nunca encontrei um companheiro tão sociável como a solidão. Estamos geralmente mais sós quando viajamos com outros homens do que quando permanecemos nos nossos aposentos. Um homem quando pensa ou trabalha está sempre só, deixai-o pois estar onde ele deseja; a solidão não é medida pelas milhas de espaço que separam um homem e os seus congêneres."
Esse livro é muuuuito emocionante. Além de poético, quando entendemos a forma com a qual o autor "escreveu" a obra não tem como não se sentir inspirado. O filme também é ótimo!
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