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10 junho 2009

Sobre insônia e a escuridão do meu quarto - parte primeira.

Inicia-se com este post o que eu denominarei de "textos-diários"; isto é, textos escritos por mim e que visam contar alguma coisa do meu dia às pessoas que se dão ao trabalho de ler o blog. Os fatos contidos neste texto (assim como nos próximos) são verídicos, e foram apenas levemente moldados para caberem na narrativa. Espero que gostem da novidade (antes eu só me limitava a escrever sobre os livros que lia) e, se pelo menos uma pessoa disser que está interessante, continuo com a coisa com o maior prazer - principalmente agora que descobri a incrível ferramenta blogueira do Windows, o Windows Live Writer! :D

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O relógio da minha mesinha-de-cabeceira marca exatamente 4 horas da manhã. Tudo está mergulhado na mais perfeita escuridão do quarto, e eu estou no 6º sono da noite quando o telefone ao lado da minha cama tilinta estridentemente. Salto da cama no mais pleno susto, indo parar do outro lado do colchão, completamente envolto pelos lençóis (foi uma péssima idéia instalar este telefone aqui ao lado, eu disse, mas ninguém me ouviu e o resultado é este). Consulto o relógio: certifico-me que é tarde da madrugada. Quem será que está telefonando a uma hora dessas?

Como há aqui em casa dois telefones conectados pela mesma linha - isto é, ambos tocam ao mesmo tempo, tanto o do meu quarto quanto o do quarto dos meus pais -, me precipito imediatamente sobre o aparelho a fim de que nenhuma chamada a mais possa interromper o sono das outras pessoas da casa (incluindo meu irascível irmão), que têm o sono mais leve do mundo. Sento-me na cama, ergo o fone e, mesmo com o ouvido levemente atordoado, escuto nitidamente alguém pronunciar o meu atípico nome lá do outro lado da linha:

"Marlo?"

Identifico a voz suave de uma garota. Penso: Pelo menos isso. E no instante seguinte reconheço que a dona da voz é a Natália, uma das minhas amigas mais problemáticas. Estou coçando as duas pálpebras com a mão direita, e, enquanto isso, fica rolando pela minha cabeça a seguinte pergunta: "O que será que ela quer?"

"Marlito, droga, eu não agüento mais isso...", diz ela. Como eu fico calado, ela continua: "Sabe, esse negócio de namorar com o Paulo não está dando certo de jeito nenhum!" Sua voz é chorosa, melódica, mas ela não está chorando, nem fazendo drama; está apenas irritada, suponho. Irritada com o Paulo, que eu não faço a mais remota idéia de quem seja.

"Poxa, garota...", digo, "você sabe que horas são?"

Ela faz uma pequena pausa, como que consultando o relógio de pulso, e diz a seguir na maior naturalidade: "São... 4 da manhã".

"Sabe, eu costumo estar dormindo nessa hora. E o pessoal aqui de casa também".

No entanto, sei por que ela teve confiança ao ligar para a minha casa de madrugada. Natália sabe que existe um telefone ao lado do meu ouvido enquanto eu estou dormindo. Se não fosse por isso, ela provavelmente jamais me telefonaria às 4 da manhã.

"Sério, eu peço um milhão de desculpas por estar te ligando a essa hora", ela admite, "mas estou sem conseguir dormir e precisando muito conversar com alguém. E eu sei que você pode me ajudar, Marlito!"

Ela sempre me chama de 'Marlito'. Ainda sentado sobre a cama e organizando as impressões, penso: Ser chamado de Marlito é o cúmulo. E imagino o que terá passado pela cabeça da Natália ao supor que eu sou psicólogo clínico 24 horas. Imagino-a na sua casa, sem conseguir dormir, revirando o corpo de um lado para outro sobre a cama, e finalmente erguendo o telefone e digitando o número da minha residência, em busca de socorro psicológico.

"Esse namoro está um saco, apesar de já fazer quase 5 meses", ela me diz. E eu, acostumado a ouvir essas queixas amorosas, recomendo que ela leia alguns versos de 'Poesias Completas de Alberto Caeiro', do Fernando Pessoa, porque assim, talvez, ela acalme os ânimos.

"Não, não, o Fernando não pode me ajudar dessa vez". Ela sempre se refere aos escritores pelo primeiro nome. Acho isso engraçado, e é a primeira pessoa na qual eu reparo essa mania. Por fim, pergunto se afinal ela está grávida, ou o que é. Quando recebo um "Não!, o que é isso, Marlo?!" suspiro aliviado e procuro mudar de assunto, agora que ela já conseguiu me despertar de vez.

"Eu só tive uma briga feia com ele. E não planejo ter filhos, você sabe", ela me diz, agora num tom de voz mais calmo e manso. Eu posso me gabar de ser um dos pouquíssimos homens para os quais ela declara seus sentimentos não-conversáveis. E imagino que, se um dia Natália souber que eu escrevi isso aqui, ela vai ficar... muito irritada comigo, na melhor das hipóteses.

"Não sei como eu me relacionaria com os meus próprios filhos. É estranho, não é?", ela continua dizendo. Na escuridão do meu quarto, identifico nessa fala um trecho de 'Caçando Carneiros', de Haruki Murakami. Não tenho idéia de como eu poderia me relacionar com eles, diz o protagonista sem nome do livro.

(Às vezes eu acho que é bastante agradável conversar com minhas amigas pelo telefone. Sério. Sinto como se fosse possível perceber a tradução dos seus sentimentos através da linha telefônica. Cada pausa, cada suspiro distorcido pela transmissão significa alguma coisa relevante na conversa com uma mulher. Eu já aprendi isso!)

De qualquer forma, continuo sentado sobre a cama e observo o relógio outra vez: 4 e 15 da manhã. Graças à luz do luar que entra pela janela e acerta o relógio, posso distinguir o brilho dos dígitos e ver as horas.

Fico esperando que Natália mude de assunto; quero dizer, converse algo mais fácil, algo que não seja sobre filhos ou sobre o namorado incompreensível. Esses assuntos são densos demais para se conversar a essa altura, principalmente levando-se em conta minha cabeça entorpecida e a dela, não muito diferente. Posso acabar dando um conselho errado ou impulsivo para a pobre coitada. E ela vai acabar seguindo.

É preciso cerca de 5 segundos de silêncio para que Natália rume para outro caminho:

"E então", ela diz, animada, como se fossem onze horas da manhã e tivéssemos acabado de sair do campus, "será que o curso de segundo semestre na UNIFOR é difícil?" UNIFOR é o nome da universidade em que nós estudamos, e significa Universidade de Fortaleza. Gostamos desse nome porque lembra "Universidade de Tóquio" (Toudai), "Universidade de Harvard" ou "Universidade de Colúmbia". É um nome legal, que remete à internacionalização. É diferente de, por exemplo, Faculdade Integrada do Ceará.

"Marlo, que diabos, você está dormindo?", ela grita do outro lado, rindo. Rio também e digo que não, que não é de meu costume dormir pendurado ao telefone, por mais que alguém me azucrine ligando de madrugada e me deixando trôpego de sono.

"Pois bem", ela continua. Natália é da laia de mulheres que conseguem passar muito tempo falando. Ela fala qualquer coisa que vem à mente. "Eu fiquei sabendo que nós vamos mexer com ratos no próximo semestre. Estudar o comportamento deles em labirintos e tal. O que acha disso? Divertido, não é?"

"Muito", digo com sinceridade. Também ouvi esse boato pelos corredores. "Ainda bem que não são aranhas". Morro de medo de aranhas. Diagnóstico: aracnofobia - nível 1. Certa vez, apareceu uma gigantesca e peluda atrás do meu armário. Foi terrível. Podem me chamar do que quiserem.

Natália ri. "A propósito, quais são as cadeiras que você vai cursar nos próximos seis meses?", ela pergunta. "As minhas são Filosofia e Psicologia 1, Práticas Integrativas, que é obrigatória, Sociologia e Estudo da Memória... E você?"

Me sinto inclinado a dizer que, dessas que ela citou, pelo menos duas estão no meu fluxograma. Mas não tenho tanta certeza assim. Lembro de ter visto algo relacionado ao estudo do comportamento das crianças, com 6 créditos. Penso em me levantar da cama, ir até a mesa onde está o boletim universitário (que eu imprimi hoje mesmo) e ir conferir as disciplinas planejadas, mas acabo desistindo da idéia e me julgando trouxa demais por ter uma memória tão fraca. Deito-me na cama com o telefone ao ouvido. "Sinto muito, Natália, mas estou cansado demais para atravessar o meu enorme quarto [ironia] e responder isso para ti com precisão".

Ela ri. E eu me sinto o próprio Toru Watanabe quando Natália comenta: "Você fala de um jeito muito engraçado. Parece personagem de um livro". Mais uma vez, penso, Haruki Murakami interferindo na minha vida. Me calo para ouvir a próxima coisa que minha amiga tem a dizer.

Um comentário:

  1. Digamos, de certa forma, que eu fiquei um tanto quanto intrigado com o seu texto :D, mas claro, isso não tornará o seu brilhantamento menor, meu caro.

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