"Dali em diante, estavam todos entregues aos caprichos do destino." (p. 154)
Durante os últimos anos recentes, eu achei que os romances de aventura e exploração não despertavam mais em mim o mesmo interesse que despertavam quando eu era criança. Naquela época, bastava uma sinopse que mencionasse ou um aventureiro em terras estranhas, ou um tesouro lendário proibido ou os perigos das selvas incólumes – de preferência, tudo isso junto – para que eu levasse o livro para casa sem sequer olhar o nome do autor.
Depois de crescido, achei que essa fascinação havia ficado para trás. Que agora só me interessavam dramas, relatos jornalísticos ou, no máximo, uma ficção científica. Agradável engano. Assim que pus os olhos na estante da livraria e vi um título chamado O Povo da Névoa (The people of the mist, 1894), que falava de um aventureiro nas selvas africanas e uma coleção preciosa de rubis atrás da qual ele estava – e que, ainda por cima, contava com a descoberta de um mundo perdido na floresta –, não perdi tempo.
Levei o livro para casa, tal como eu fazia nos tempos de criança fascinada. A única diferença é que, hoje, leio o nome do autor do livro que levo. O desse, por exemplo, é H. Rider Haggard, o mesmo do clássico As minas do Rei Salomão.
Sinopse: O Povo da Névoa conta a história do jovem inglês Leonard Outram, que, após testemunhar a decadência financeira e moral da família, parte em uma jornada para a África em busca de uma fortuna capaz de reaver o casarão leiloado e a honra dos Outram.
Após uma série de aventuras na selva, Leonard e seus companheiros (incluindo Juanna, uma mulher portuguesa que fora salva da escravidão) encontram o lendário Povo da Névoa, e lá são envolvidos no violento conflito político entre os Sacerdotes e um culto que adora um gigantesco deus-crocodilo.
Haggard é um dos pioneiros na criação de mundos perdidos no universo da literatura, e seus livros testemunham isso da forma mais notável possível. Consultei alguns colegas meus que já leram outras obras do autor, e eles afirmaram que Haggard, sempre que possível, insere nos seus romances de aventura uma sociedade selvagem perdida, misteriosa e potencialmente perigosa.
No caso de O Povo da Névoa, essa sociedade é justamente a que dá nome ao título, embora, ao longo do livro, os personagens se refiram a ela também como Crianças da Névoa, ou Habitantes da Névoa. No geral, o nome "O Povo da Névoa" está aí mais para designar uma qualidade da sociedade desses selvagens, e menos para designar o nome da sociedade deles em si.
Edições em inglês do romance
H. Rider Haggard foi um homem fruto do seu tempo e, assim como muitos outros nomes da literatura inglesa do século XIX, amparou-se em idéias e concepções que eram amplamente difundidas e aceitas como inquestionáveis naquela época. Basta notar que, na África do autor, todos os africanos são "selvagens" e pensam como tal; são vítimas da escravidão, sofrem, vivem em aldeias miseráveis e, em resumo, são inferiores aos homens brancos.
Otter, o fiel servo de Leornard, é retratado dentre outras coisas como um anão feio, submisso e ingênuo. Não por menos, muitos personagens se referem pejorativamente a ele como "cão negro" – com exceção de Leonard, Juanna e outros personagens europeus. Mesmo assim, apesar dos insultos que recebe ao longo da história – e é isso o que me impressiona em alguns romances daquela época – Otter é indiscutivelmente o herói da aventura, superior em perspicácia e força aos homens brancos, capaz de fazer sacrifícios extremos para salvar a todos, inclusive a seus mestres.
A fascinação desses antigos escritores europeus pelos "selvagens africanos" é imensa e pode ser facilmente percebida na exultação que Haggard faz a Otter, chamando várias vezes seu personagem de homem "forte" e "corajoso". A mesma fascinação pode ser vista em Rice Burroughs, por exemplo, ao criar o seu indestrutível Tarzan.
Mais edições originais em inglês
E quanto ao livro em si? Posso dizer que adorei lê-lo e que não me decepcionei. Voltei à infância e redescobri aquele mundo longínqüo repleto de imaginação, no qual um punhado de aventureiros corajosos enfrentam sujeitos misteriosos e selvagens. No fundo, inserir-se no universo de um livro desses é a mesma coisa que dizer: "Por ora, quero dar um basta deste mundo real em que vivemos, cheio de paranóias e preocupações modernas".
A história de O Povo da Névoa é basicamente dividida em duas partes. A primeira apresenta alguns dos personagens principais, claro, e foca um objetivo no horizonte: os aventureiros devem resgatar Juanna do campo de escravos. A segunda parte, por fim, se refere aos aventureiros dentro da sociedade da névoa, enfrentando todos os perigos que um romance de aventura como este pode oferecer.
Além da aventura propriamente dita, temos muitos elementos que remetem ao drama e ao romance. No fim das contas, o painel que se forma diante do leitor é o de um típico romance europeu do século retrasado; seu autor nos fala de um continente imenso e pouco explorado, cujos territórios não conhecidos pelo homem "civilizado" guardam muitos segredos e provações.
Recomendo o livro para quem tem o interesse pelo gênero. Vale a pena!
Num primeiro momento pensei "ok, mais um livro de aventura qualquer", mas gostei muito de você ter analizado a trama e características da escrita do autor em relação à época em que o romance foi escrito, muito interessante. Me parece que é bem na linha daqueles filmes de aventura da década de 80.
ResponderExcluirAgora achei engraçado você falar que não se interessava mais tanto por esse tipo de livro... Estou enganado ou 'Templo' e 'Latitudes Piratas' têm a mesma 'essência' de aventura de 'O Povo da Névoa'?
Abraço!
Olá, Farley!
ResponderExcluirRealmente foi um diferencial o fato de eu ter comentado essas coisas do livro de Haggard. Ficou melhor do que se eu tivesse resenhado apenas sobre o livro em si, sem uma reflexão crítica. ^^
'Templo' e 'Latitudes piratas' são romances de aventura modernos. De certa forma, mesclam ingredientes dos livros clássicos de aventura com ingredientes da literatura de ação moderna, e suas tramas têm mais a ver com assuntos atuais do que com os assuntos pertinentes à literatura de aventura tradicional. ('Latitudes piratas' talvez apresente um viés mais clássico, mas mesmo assim foi escrito por um autor moderno; conseqüentemente, a história terá uma faceta mais atual.)
Na resenha eu disse que, aparentemente, os romances clássicos de aventura não me interessavam mais agora tanto quanto na infância. Essa suposição caiu por terra quando vi a sinopse de 'O Povo da Névoa', clássico romance de aventura como os que eu lia na infância.
Espero que tenha ficado claro. rsrs
Grande abraço! E obrigado pela visita e pelo comentário!
Prezado Marlo,
ResponderExcluirNas idas e vindas da leitura o preconceito é desfeito quando somos atraídos por uma obra que antes, não tínhamos mais interesse despertado.
O Povo da Névoa é fruto de época de "aventuras" no qual estavam mergulhados os autores europeus. Demonstra a visão colonialista como você bem descreve, portanto contribuí para nossa concepção histórica e sociológica do mundo.
Parabéns pela resenha e avante!
abraços,
G. J. Barbosa
Caro Gustavo!
ResponderExcluirRevisitar as obras publicadas nos séculos passados é uma riquíssima fonte de estudo antropológico, como você bem disse. Dessa maneira, temos acesso a uma cultura que vingou no passado e que hoje já pode se mostrar obsoleta. É o caso do espírito colonialista de 'O Povo da Névoa'.
Como o prefacista diz na orelha do livro, a aventura sempre vai despertar paixões nos seres humanos!
Grande abraço e obrigado pela visita!