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25 junho 2014

Quatro estações, de Stephen King

"O amor tem dentes; morde; as feridas nunca cicatrizam. Nenhuma palavra, nenhuma combinação de palavras pode fechar essas mordidas de amor." (p. 572)

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Finalizei ontem a leitura de Quatro estações (Different seasons, 1982), do escritor norte-americano Stephen King. Comprei pela internet a confortável edição de bolso da Ponto de Leitura, selo da Editora Objetiva, e me deleitei com as 650 páginas deste livro que reúne quatro contos inéditos do autor (ou mini-romances, dada a longa extensão de cada um). Deixando de lado o terror explícito de Carrie, a Estranha e O iluminado, King explora um gênero diferente nestas quatro histórias que misturam, de forma muito bem sucedida, drama, horror e suspense.

Eu já havia lido do autor o famoso À espera de um milagre, romance escrito em 1996 que ganhou as telas do cinema três anos depois, com Tom Hanks no papel principal. O prazer que senti ao ler este livro despertou minha atenção para o nome de Stephen King, que até então soava na minha cabeça somente como mais um autor best-seller que carrega nas costas uma legião de fãs. Quando cheguei à última página de À espera de um milagre, entendi por que King possui a sua legião extremamente fiel de fãs e porque ele é tão elogiado pela crítica. Resposta: o homem tem talento, e muito.


Sinopse: Nos quatro contos reunidos neste livro, Stephen King realiza um profundo mergulho na natureza humana, revelando medos, esperanças e impulsos, além de explorar todas as facetas do ser humano, desde seu mais puro desejo de ser livre à sua mais apavorante crueldade.


O mais longo dos contos, Aluno inteligente, possui 250 páginas e passeia com tranquilidade do drama ao horror, com King realizando uma prospecção subjetiva digna de mestre em cada um de seus personagens. O mesmo acontece com Rita Hayworth e a redenção de Shawshank e O corpo: duas histórias cujo gênero se encontra entre o dramático e o assustador, levando-nos a pensar nos limites da crueldade humana e em como os verdadeiros monstros podem não estar à solta no Lago Ness, mas dentro de nossas próprias cabeças e nas nossas ações. Infelizmente O Método Respiratório, último conto do livro, não está à altura dos outros: parece apressado, mal explorado e sem norte. Mesmo assim, consegue prender a atenção do leitor do início ao fim, como os demais.

Interessante notar que o sucesso de Quatro estações extrapolou as estantes das livrarias. Rita Hayworth e a redenção de Shawshank inspirou o filme Um sonho de liberdade, que concorreu a 7 Oscars em 1995. Aluno inteligente deu origem a O aprendiz, de 1998, muito bem recebido pela crítica. O corpo foi adaptado em 1986 e transformou-se no célebre Conta comigo, que alavancou a carreira de alguns atores mirins na época. E desde 2012 discute-se uma adaptação para O Método Respiratório, que, sim, estou ansioso para conferir.


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Os cartazes dos filmes inspirados nos contos do livro


É difícil escolher a história de que mais gostei. Se por um lado o último conto não me agradou de todo, por outro me senti totalmente fisgado pelos anteriores, especialmente por Aluno inteligente e O corpo. A impressão que dá é a de que existe uma história mais maravilhosa do que a outra, à medida que vamos avançando no livro. Se ficamos extasiados com a ânsia de liberdade de Andy Dufresne e sua luta contra a injustiça, ficamos também perplexos com o amadurecimento distorcido de Todd Bowden e arrebatados com a emocionante amizade entre Gordon Lachance, Cris Chambers, Vern Tessio e Teddy Duchamp. Justiça seja feita: é possível ficar apaixonado também pela determinação e pela graça da moça da última história, muito embora o conto em questão não tenha sido satisfatoriamente desenvolvido para dar espaço a esta personagem.

A escrita de Stephen King é de uma leveza convidativa, o que não a impede de ser profunda e emocionante. Dos quatro contos, três são escritos em primeira pessoa, e estas histórias são justamente as que trazem consigo o tom confessional tão caro ao escritor: os personagens destes contos são pessoas que escrevem sobre um evento passado de suas vidas e, em retrospecto, fazem um balanço do quanto estes episódios singulares influenciaram sua personalidade. Esta técnica é muito frequente na obra de King e abre a possibilidade de uma metalinguagem interessantíssima: o escritor que escreve sobre um escritor que escreve sobre um fato marcante de sua vida.

Fazendo jus à epígrafe da obra – O que importa é a história, e não o narradorQuatro estações oferece ao leitor o prazer de simplesmente ouvir uma boa história, um prazer que beira nossos costumes ancestrais de nos sentarmos ao redor de uma fogueira e sermos levados pela narrativa de alguém.

Composto por histórias memoráveis, este livro é um sopro de boa literatura. Atende aos desejos dos leitores mais exigentes – aqueles que buscam uma história de qualidade além do banal – e atende aos anseios dos leitores que estão em busca de algo mais leve e menos complexo. São histórias cujo valor está nelas mesmas, e não em um suposto artifício literário ou escondido atrás de um nome famoso.

Extremamente recomendado, posso dizer que Quatro estações é, desde já, uma das melhores leituras do ano.

11 junho 2014

Sergio Y. vai à América, de Alexandre Vidal Porto

"Foi com Sergio que descobri a importância da humildade." (p. 17)

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Nos meus anos de Ensino Médio, conheci um rapaz que gostava de ler livros inteiros nas poltronas das livrarias da cidade. Foi assim que ele leu algumas obras de Sidney Sheldon, Agatha Christie e Dean Koontz, na verdade: simplesmente se dirigia às prateleiras de ação e suspense, escolhia um título a seu gosto, sentava-se em uma das poltronas vazias da livraria e iniciava a leitura. Só se levantava outra vez quando chegava ao final do volume. E não importava se eram 100 ou 300 páginas: lia tudo, do início ao fim. Era seu costume ir à Saraiva ou à Cultura mais próxima de casa nos finais de semana e deleitar-se na leitura daqueles romances, esquecendo-se das obrigações de escola – que naqueles tempos eram muitas, para qualquer pré-vestibulando como nós, como vocês podem imaginar.

Fiz a mesma coisa que este meu amigo muitos anos depois de deixar o Ensino Médio, quando peguei nas mãos Vida roubada, de Jaycee Dugard, livro que li de uma só vez numa das poltronas da livraria que visito aqui perto. Foi uma leitura ao mesmo tempo agradável (porque o livro era bom) e desconfortável (porque eu tive que ler tudo muito rápido, quase loucamente, antes que o lugar fechasse as portas).

Eu já havia prometido a mim mesmo que não faria isso de novo quando, na semana passada, repeti a experiência: dessa vez quem me fisgou foi Sergio Y. vai à América (2014), de Alexandre Vidal Porto, que li em três horas de frente para o balcão dos caixas de uma livraria Saraiva. É curioso como esse tipo de coisa acontece comigo sem o menor planejamento: simplesmente vi o livro, o título me chamou a atenção, comecei a lê-lo e, quando me dei conta, já estava na página 60. Por que não ir até o final?


Sinopse: O jovem Sergio Y., bem-nascido e aparentemente sem grandes dramas na sua ainda curta existência – embora se considere infeliz –, é um “paciente interessante”, como diz o narrador. Frequenta o consultório regularmente, rememora aspectos da sua formação familiar, mas um dia desaparece para sempre, abandonando o tratamento. A esse mistério se acrescenta outro, acachapante, que tira a aparente serenidade do psiquiatra e o faz incursionar em uma busca que tem tanto de detetivesca quanto de psicanalítica.


Isso significa, então, que o livro é envolvente.

A narrativa é cadenciada num ritmo cauteloso, lento, que faz o leitor passear pelos sentimentos mais íntimos dos personagens principais. O narrador, o psiquiatra que atende o personagem que dá nome ao livro, é um melancólico senhor de 70 anos que parece estar passando pela crise da terceira idade: filha única se casando e saindo do país, carreira consolidada como médico, esposa falecida há muito tempo, compras rotineiras no supermercado... Nada de emocionante no horizonte. Uma existência tranquila, sem grandes percalços, e por isso monótona.

Esta aparente banalidade na vida de Armando é chacoalhada quando surge no seu consultório um paciente novo que, por vários motivos, prende a sua atenção – a do médico e a do leitor, diga-se de passagem. Os atendimentos continuam por alguns meses, quando então o rapaz se declara "curado" e vai embora para os Estados Unidos. Embora afetivamente distantes – uma distância resguardada pela própria prática clínica –, Armando e Sergio gostam um do outro e se sentem unidos por um laço forte de simpatia e respeito. Quando um episódio inesperado vem à tona, já anos depois do término do tratamento, Armando se vê na obrigação profissional e pessoal de investigar os fatos que desencadearam esta circunstância.

Cheio de mistério, floreado com pontadas de filosofia psicanalítica, regado por um tom melancólico, Sergio Y. vai à América é um romance no qual nada e tudo acontecem. O que quero dizer com isso? Que a beleza do livro está em conseguir nos fazer refletir sobre a vida apresentando uma história aparentemente simples, em que nada de exagerado ou espetacular ocorre. E essa simplicidade superficial esconde uma verdade a qual não podemos ignorar: que o curso cotidiano das nossas vidas guarda uma série quase interminável de lições que podemos aprender se estivermos dispostos a nos debruçar sobre elas.

Quando terminei a leitura, admito que me peguei pensando: "O que esse livro tem de surpreendente? Nada. Existe um conflito, claro, como em todo romance, mas esse conflito é uma coisa importante apenas para o narrador da história. Mas por que estou pensando nesse livro até agora, então?". O fato é que Sergio Y. vai à América é um romance sobre duas coisas: aceitar que não temos o controle sobre tudo nas nossas vidas e estar disposto a aceitar isso. Fala, também, sobre a coragem de assumir nossas identidades em um mundo que tem receio de algo não-estereotipado. E quanto mais pensamos nestas questões, mais nos damos conta de que viver é um risco.

Só percebi essas mensagens escondidas depois de uma semana, ainda pensando no livro.

Composto por capítulos curtos em que se misturam os gêneros detetivesco e confessional, o romance realmente prende a atenção do leitor já nos momentos iniciais e, dizendo por experiência própria, você só vai conseguir largá-lo quando chegar à última página. Vidal Porto, este diplomata paulista estreante na literatura, revela-se um nome digno de nota, um nome ao qual devemos ficar atentos nos próximos anos. Por enquanto, recomendo Sergio Y. às pessoas que gostam de fazer um balanço eventual de suas vidas (pessoal e profissional) e que conseguem enxergar no irrisório dia-a-dia toda a trama intrincada e complexa que faz do mundo este lugar em que as relações afetivas são tão importantes.

13 abril 2014

Nos bastidores do Pink Floyd, de Mark Blake

"(…) o rock estava desesperado para ser levado a sério como forma de arte." (p. 200)

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Era uma manhã de sábado quando minha ex-namorada me telefonou e disse que tinha uma notícia capaz de me deixar muito feliz. Sem conseguir deduzir que notícia era essa, pedi que ela rompesse com o suspense e me contasse logo. "Finalmente lançaram uma biografia do Pink Floyd", ela revelou. "Acabei de ver na televisão. Um jornalista conceituado norte-americano publicou um livro em que conta a história da banda desde os primórdios até pouco depois do Division Bell." E ela encerrou a ligação dizendo: "Bom, achei que você gostaria de saber."

Mas é claro que eu gostei de saber. Como grande admirador da banda britânica de Cambridge desde criança (lembro de ouvir meu pai colocando os clássicos Time e Wish You Were Here para tocar em casa, durante bons domingos modorrentos), a notícia de que alguém finalmente havia se dado ao trabalho de contar a história do Pink Floyd me encheu de animação. Há anos reunindo discografia, bootlegs, DVDs e pequenos documentários na internet, eu senti que com o advento daquele livro uma grande parte da minha sede de informações sobre os bastidores da banda seria saciada; havia algo naquela biografia que poderia ser chamado de definitivo.

Sendo assim, eu deveria colocar minhas mãos nela o quanto antes. No Brasil não havia até então um livro completo sobre a história do Pink Floyd, e por isso a perspectiva de entrar em contato com um trabalho profundo como esse era agradável.

Para escrever Nos bastidores do Pink Floyd (Pigs might fly: the inside history of Pink Floyd, 2007) Mark Blake fez um trabalho digno de um bom jornalista documental e realizou entrevistas extensas com os integrantes da banda, com produtores, colegas de trabalho, amigos, namoradas, críticos musicais e até mesmo outros músicos ligados aos rapazes de Cambridge. O resultado é um livro de 450 páginas que esmiúça detalhes da trajetória do Pink Floyd desde as formações iniciais na década de 1960 até os álbuns pós-Waters, passando pelas conturbadas turnês e pelas famosas brigas judiciais. Blake encerra a obra momentos depois da morte de Syd Barrett, em 2006, descrevendo um evento em que o ex-fundador do conjunto é homenageado por amigos e pelos ex-colegas de banda.


Sinopse: Criada em Cambridge, na Inglaterra, Pink Floyd é considerada uma das bandas de rock progressivo mais influentes do mundo. Famosa por suas letras contestadoras e shows bem elaborados, a banda que vendeu mais de 230 milhões de álbuns em todo o mundo também ficou muito conhecida pela desordem e pelo desentendimento dos integrantes, que algumas vezes chegaram a sobrepujar as conquistas. Interessada em desvendar os mistérios que cercam a polêmica história da banda, a Editora Évora, pelo selo Generale, traz ao Brasil Nos Bastidores do Pink Floyd, a mais completa e detalhada biografia deste ícone do rock moderno.


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O início do livro é um verdadeiro convite à atmosfera psicodélica e criativa dos anos 1960, quando teve início a história daquela banda que viria a ser conhecida no mundo todo. "Leitura prazerosa e informativa" é uma boa expressão para qualificar esta biografia. Fãs de Pink Floyd irão encontrar na obra de Blake muitas informações que, de alguma maneira, já são lugares-comuns na história do conjunto, mas que aqui adquirem um tom formal e vêm acompanhadas de detalhes muito interessantes e até então inéditos. Por exemplo, a substituição de Barrett por Gilmour nos palcos – e, depois, na formação oficial da banda – é rica em testemunhos e relatos pessoais, o que nos dá uma compreensão mais ampla da história. Cada membro dá a sua visão sobre os acontecimentos que afetaram a trajetória da banda, e o autor costura esses depoimentos com grande habilidade, construindo uma cronologia perfeita.

Para clarear um pouco os momentos turbulentos do Pink Floyd, Blake chega a citar episódios controversos como, por exemplo, a ira de Roger Waters ao cuspir no rosto de um homem sentado na primeira fileira da plateia, durante a turnê de Animals em 1977, fato que o impulsionou a criar a obra-prima The Wall – amargurado, o álbum é praticamente uma retrospectiva de sua vida. Como não poderia deixar de ser, temos também detalhes acerca da elaboração de The Dark Side of the Moon, divisor de águas na carreira do grupo, e tudo o que levou a banda a começar a se desentender a partir da década de 1970. São constantes as referências às outras bandas da época – como Yes e Beatles – e às revistas que opinavam sobre a performance do Floyd nos estúdios e nos palcos.

Juntando tudo isso, chegamos a uma conclusão óbvia: muito mais do que um amontoado de curiosidades sobre o Pink Floyd, o livro de Blake é um documento extremamente detalhado e lúcido sobre a biografia da banda como um todo – além de conter longos trechos que também lançam luz sobre os passos de cada membro fora da banda, seja nas suas carreiras solo, seja na sua vida pessoal. Destaque para a cobertura que o autor nos fornece acerca de Syd Barrett – após ser demitido do grupo no final da década de 1960, ele esboçou uma carreira solo e viveu uma vida reclusa e enigmática.

Para os fãs que leem o livro, é muito agradável e empolgante acompanhar a ascensão do Pink Floyd, que começou tocando em clubes noturnos locais regados a ácido lisérgico e, depois, em sua fase madura, lotava estádios e produzia shows pirotécnicos dignos de deixar qualquer cético abalado – gerando, claro, milhões de dólares no processo. Talvez mais empolgante ainda é acompanhar, passo a passo, a produção e a elaboração de todos os CDs de estúdio da banda, incluindo aí o mítico encontro do Floyd com os Beatles durante a gravação de The Piper at the Gates of Dawn, no lendário Abbey Road.

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A biografia tem o grande mérito de não se perder em detalhes técnicos enfadonhos sobre o mundo corporativo da música e, assim, consegue alcançar uma escrita leve, embora densa pela quantidade de informações que traz consigo. De fato, o livro parece priorizar mais as questões humanas da vida pessoal de cada membro e da experiência deles enquanto quarteto de rock. Tanto é que grande parte da primeira metade da obra conta com os testemunhos de Libby Gausden, namorada de Barrett na época em que o Pink Floyd era ainda uma ideia difusa. Valendo-se de uma visão em retrospecto quase nostálgica, Libby revela um pouco da atmosfera dos anos 1960 e conta casos específicos envolvendo o ex-namorado, além de detalhes da personalidade de Syd.

É fácil perceber como o grupo começou a criar tensão depois do sucesso de The Dark Side of the Moon. Como diria Nick Mason, a popularidade do álbum clássico da banda fez todo aquele dinheiro e toda aquela fama surgirem de repente – e os rapazes de Cambridge não sabiam muito bem como lidar com isso, o que acabou levando todos a disputarem mais acirradamente seu espaço na banda. De modo que, além de descrever a produção dos álbuns de estúdio do Floyd nos anos 1980, a segunda metade da biografia aborda detalhes do que seria a principal preocupação do grupo naquela época: questões judiciais envolvendo os direitos de cada membro, sobretudo de David Gilmour e Roger Waters. O clima de fim de festa nessa altura do livro não passa despercebido: é como se, realmente, o Pink Floyd devesse admitir que o melhor que tinham a oferecer já havia ficado para trás há muito tempo.

A escrita do autor chega a ser quase neutra ao relatar polêmicas e acontecimentos turbulentos, o que dá ao livro um caráter bem-vindo de seriedade. Rico em informações de todo tipo, fiel ao seu objetivo de detalhar o surgimento e a trajetória da banda, Nos bastidores do Pink Floyd é leitura obrigatória para os fãs de carteirinha do conjunto.

22 março 2014

O Torreão, de Jennifer Egan

"A gente estava aqui achando que não tinha nada em comum além do lugar em que a gente veio parar e, durante todo o tempo, estávamos fazendo a mesma coisa: captando sinais de fantasmas." (p. 102)

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Os olhos do mundo inteiro estão voltados para a escritora norte-americana Jennifer Egan desde que ela lançou um romance chamado A visita cruel do tempo, já resenhado aqui no blog, e ganhou o Pulitzer de Ficção 2011 por causa dele. Muito cedo o público e a crítica reconheceram Egan como uma autora tipicamente pós-moderna, capaz de subverter gêneros, moldar as técnicas narrativas a seu bel-prazer e, mesmo assim, apresentar ao leitor uma história que vale a pena ser lida.

Isso é raro hoje em dia – colocar a técnica a serviço de uma boa história. A visita cruel do tempo, por exemplo, é um livro que assusta os leitores desavisados pela aparente ruptura com qualquer estilo de narração convencional: nesse romance, a autora escreve capítulos em primeira, terceira e segunda pessoa, insere uma extensa apresentação de Power Point no meio da trama e segue uma cronologia totalmente embaralhada. De fato, esses são ingredientes que poderiam resultar em um grande fiasco experimentalista, mas Egan é talentosa demais para se deslumbrar com o que ela mesma escreve: em vez disso, lúcida, revela que para além de toda aquela aparente subversão do texto existe uma história emocionante que toca a todos nós. A técnica ousada não está ali para desconstruir a história, mas, pelo contrário, para ajudar a contá-la.

O Torreão (The Keep, 2006) segue o mesmo estilo. Nele, Jennifer Egan utiliza seu malabarismo de técnicas para manter um certo suspense e construir com cuidado as bases da sua proposta. A primeira palavra que me vem à cabeça para classificar este livro é "inventivo", porque, aos poucos, na medida em que vamos virando as páginas, os elementos inseridos pela autora na trama vão tomando proporções enormes e mostrando o quanto a história é mesmo surpreendente.


Sinopse: Nos confins da Europa Oriental, um misterioso castelo resistiu a centenas de anos, apoiado no orgulho e na tradição de uma família. Até que Danny, um cínico nova-iorquino de trinta e seis anos que raramente vai a algum lugar que não tenha conexão wi-fi, chega para ajudar seu enigmático primo a reformar o castelo e transformá-lo em um hotel de luxo. Mas as coisas começam a ficar estranhas. Uma baronesa sinistra, um trágico acidente em uma piscina mal-assombrada, um traiçoeiro labirinto subterrâneo... Quando o pânico toma conta de Danny, ele descobre que a "realidade" pode ser algo em que ele não consegue mais acreditar.


Com O Torreão aconteceu exatamente a mesma coisa que ocorreu com A visita cruel do tempo: virei a última página do livro e tive vontade começar a leitura de novo, desde o início. Ambos são livros que nos deixam com esse desejo de uma releitura imediata. É difícil explicar por que isso acontece, mas tenho um palpite: O Torreão é um desses romances que podem ser visualizados como um quebra-cabeça. Eis que, quando chegamos ao último capítulo – ou seja, quando montamos a peça inteira – tudo parece fazer um sentido tal que nos deslumbra a ponto de querermos desmontar tudo e voltar à estaca zero, agora munidos de uma compreensão mais completa da figura a ser formada. E essa releitura nos fornece um tipo de deleite, pois estamos agora certos do que vamos encontrar pelo caminho, e então podemos nos ater aos detalhes que deixamos escapar antes.

O livro é, do início ao fim, um exercício de metalinguagem que nos coloca ora ao lado do narrador, ora ao lado do personagem principal, ora ao lado de um terceiro elemento. E no final das contas ficamos nos perguntando quem é de verdade o "personagem principal" de O Torreão, se é que ele existe mesmo. Seria Danny, com a sua personalidade egocêntrica e quase infantil? Howard, o transformado primo do passado? Ray, que parece fazer as vezes de um deus ex machina? A propósito, aqui Jennifer Egan pratica este que é um dos seus maiores apetites: a polifonia. Cada personagem central do romance parece ter a sua vez de contar a história, e a impressão que dá é a de que o texto está sendo sempre manipulado por alguém. Nisso reside uma grande parte da inteligência da obra: fazer o leitor acompanhar não apenas o que está se passando com os personagens, mas, também, quem está contando essa história.

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É curioso notar como o tempo é um elemento sempre presente nos livros de Jennifer Egan. Se na obra-prima da autora essa preocupação com o tempo é explícita, em O Torreão ela é mais sutil, deixando-se perceber apenas nas entrelinhas. Danny, um dos personagens principais, é um viciado em internet que está sempre a perceber o tempo da sua vida escorrendo por entre seus dedos, e não raro ele se questiona sobre o que conseguiu fazer de relevante até agora. Howard, outro personagem central, só tem seu peso na trama por causa da passagem do tempo – da mudança que se operou nele desde os anos da infância até agora. Ray é um presidiário que, como todos os presidiários, está preso a um evento do seu passado – e o que ele pode fazer com o seu presente é algo de que depende sua própria redenção.

Por fim, O Torreão é um romance que declaradamente presta homenagens à Imaginação, essa capacidade que pode nos abrir portas, reais ou abstratas, e fazer a realidade material parecer apenas uma nota de rodapé. Neste romance, Jennifer Egan utiliza vários artifícios que nos fazem enxergar o poder da imaginação: seja pela atmosfera gótica que a autora constrói nos primeiros capítulos (e que lança o leitor numa espécie de aventura surreal), seja pela metalinguagem do texto, seja pelo fato de que tudo aquilo que estamos observando agora pode ser fruto da cabeça de uma única pessoa. Nesse caso, o que fazer? Em que personagem acreditar?

O Torreão mexe com o leitor de alguma maneira – e pelo que pude perceber até agora, o objetivo dos livros de Egan é esse mesmo.