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10 abril 2013

O que realmente nos toca?

Algumas reflexões sobre experiências cotidianas autênticas.

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Quem acompanha o Gato Branco em Fuligem de Carvão com alguma regularidade já deve ter percebido que entra semana, sai semana, e continuo não atualizando as postagens do blog. Nada de resenhas sobre livros, nada de críticas sobre filmes (que sempre foram poucas, convém lembrar), nada de comentários sobre CD's de música – nada de nada. O motivo desta ausência, que é a correria e a pressa do dia-a-dia, me levou a pensar algumas coisas sobre como o ser humano da cidade grande anda perdendo qualquer coisa da sensibilidade, e é cada vez mais incapaz de ser tocado emocionalmente por algo trivial. Como estamos cada vez mais fazendo mais coisas e tendo cada vez menos tempo para nós mesmos e nossos botões.

É comum nós acharmos que a palavra experiência pode designar todo tipo de fenômeno que nos acontece, sem entrarmos nos detalhes que o significado do substantivo tem a oferecer. Geralmente chamamos de experiência aquilo que fazemos, aquilo que aprendemos de modo geral e aquilo que chega até nós em forma de estímulo. Mas a experiência propriamente dita, no sentido em que estou falando aqui, carrega um significado bem mais profundo, que está para além daquilo que meramente nos acontece. A experiência autêntica é aquela que nos toca como sujeitos. E, para que isto ocorra, é necessária uma grande dose de sensibilidade – ser passional sem ser passivo, oferecer-se sem precisar anular-se.

Na semana passada, afetado pelo calor noturno de Fortaleza, acordei em meio à madrugada e não consegui mais dormir de jeito nenhum. Na escuridão do quarto, consultei o relógio e vi que passava pouco das quatro horas da manhã. Impossibilitado de pegar no sono outra vez, e cansado de ficar sobre a cama, levantei-me e comecei a passear pela casa – cozinha, sala, corredores –, até que enfim me permiti ficar parado na varanda, em pé. Quando coloquei meus olhos sobre o céu que se descortinava à minha frente, não consegui mais pensar em absolutamente nada – ali estava um céu que parecia ter saído de um quadro de Edward Hopper, lindo e soturno ao mesmo tempo. Havia uma pequena sugestão de claridade que começava a se infiltrar pelas nuvens do horizonte. Pessoas isoladas transitavam pela rua, e era possível mesmo ouvir o som dos seus passos no asfalto, o barulho da corrente da bicicleta de alguns e o ruído distante dos canos de escapamento do carro de outros.

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Em determinado momento, um bando de periquitos passou voando a mais ou menos um quarteirão de distância, e sua algazarra característica me fez lembrar instantaneamente dos tempos de infância em Belém do Pará, tardes nas quais eu caminhava pela Praça da República e ouvia esse som natural tão marcante. Foi uma espécie de viagem no tempo que durou não mais que 5 segundos, porém intensa o suficiente para que eu passasse vários minutos refletindo sobre ela. Enquanto isso, aos poucos, o sol ia surgindo por detrás dos prédios. De repente, me senti unido – conectado – a tudo aquilo que eu estava vendo da varanda da minha casa: o sol aparecendo de pouquinho em pouquinho, os ruídos urbanos que começavam a se intensificar, as pessoas na rua que começavam a crescer em número. Era estranho, mas acabei sentindo como se tudo aquilo me pertencesse e, por extensão, pertencesse ao mundo.

Comecei a sentir um conforto muito grande, que, julguei, só poderia se justificar por essa sensação de posse e pela apreensão da beleza da paisagem. Quando começou a chover, percebi, de maneira bem mais clara, que tudo aquilo que eu estava presenciando ali – e vivendo intensamente – era melancólico sem ser triste, era atraente sem ser necessariamente bonito. Era uma experiência única e singular como todas as experiências autênticas são. Descobri que duas experiências podem ser semelhantes, mas nunca iguais. Eu já havia muitas vezes, no passado, acordado em meio à madrugada e, sem sono, ido até a varanda de casa – mas daquela vez era diferente. Era igual às outras vezes, mas diferente.

A experiência autêntica, para existir e ser assimilada, necessita encontrar um indivíduo sensibilizado com o que o cerca. Porque, afinal, milhares de coisas nos acontecem todos os dias, mas somente poucos de nós têm a capacidade de identificar aquilo que nos toca. Para que possamos exercer um certo treino nesse sentido, ou seja, para que tenhamos essa capacidade de discernimento aflorada, precisamos nos lançar no mundo, nos projetar, escolher experimentar. Somente o sujeito que experimenta os fenômenos sem preconceito é capaz de viver uma experiência autêntica, porque ele sempre se surpreenderá com a novidade da vida.

HopperCCMorning Hopper, Edward (1882-1967): People in the Sun. 1960. . Washington DC, Smithsonian American Art Museum, Washington DC *** Permission for usage must be provided in writing from Scala. May have restrictions - please contact Scala for details. ***

Eu diria que o sujeito capaz de experiência é um sujeito que carrega consigo uma pequena dose de melancolia e uma grande dose de humildade. A melancolia está presente porque, ao vivermos uma experiência desse tipo, saímos do nosso lugar certo no mundo e passamos a ocupar um lugar que não pode ser definido com exatidão, e isso, embora não suscite necessariamente tristeza, gera a nostalgia e a sensação de que estamos sozinhos. O sujeito da experiência é o sujeito que, naquele momento de fluxo e sensibilidade, está sozinho – sozinho porque finalmente compreendeu a singularidade do fenômeno da existência, mesmo que essa compreensão dure apenas alguns instantes.

A humildade está presente na experiência porque o sujeito capaz de vivenciá-la entende que é preciso lançar-se e oferecer-se à vida, abrindo mão de todos os pressupostos de que dispõe. Não é tarefa fácil. Precisa-se entender que o que possuímos não é definitivo, que existe uma fluidez na existência capaz de colocar de cabeça para baixo tudo o que construímos até então – e essa reviravolta pode ocorrer em um momento autêntico, surpreendente, singular. Pode ser uma reviravolta muito, muito boa, como uma viagem a um país distante, que quebra em pedaços todos os nossos preconceitos, um por um.

Em uma palavra, ser capaz de viver a experiência é ser capaz de perceber o mundo em toda a sua complexidade e extensão, e saber extrair disso o prazer de estar presente. Como diria Alberto Caeiro, heterônimo poético de Fernando Pessoa, "às vezes eu acho que só para ouvir passar o vento vale a pena ter nascido".

Uma vida rica em experiências a todos nós.

2 comentários:

  1. Eu às vezes me pergunto se deixo passar "momentos" demais e não os vivo. Sei e reconheço o que me toca, conforta e alegra... mas quantas vezes eu me vejo longe de distinguir uma ou outra coisa que valha a pena em meio ao turbilhão de afazeres diários? ;/
    Gosto muito de seus textos.

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  2. Olá, Eliana (:

    Todos nós somos assaltados por esta dúvida de sermos ou não capazes de captar esses "momentos", essas vivências. Mas eu garanto que o fato de nos questionarmos sobre isso já é mais de meio caminho andado. E a boa notícia é que podemos ter um dia atolado de afazeres sem sentido, mas um momento autêntico é capaz de nos revigorar para uma semana ou até mais - para a vida toda, por que não?

    Abraços, e obrigado sempre (:

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