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18 março 2013

O silêncio contra Muamar Kadafi, de Andrei Netto

"Nossas cabeças estiveram sob a alça de mira de Kadafi por muitos anos. Agora chegou a hora da liberdade." (p. 96)

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Finalizei hoje a leitura do livro O silêncio contra Muamar Kadafi (2012), escrito pelo jornalista brasileiro Andrei Netto, correspondente em Paris do jornal O Estado de S. Paulo. Na obra, que possui pouco mais de 350 páginas, Netto relata toda a experiência que viveu como repórter na Líbia assolada pela revolução de 2011, cujos desdobramentos culminaram na queda da ditadura de Muamar Kadafi, responsável por governar opressivamente o país durante 42 anos. A Guerra Civil Líbia, iniciada em fevereiro de 2011 com movimentos populares pacíficos reprimidos com violência pelas tropas kadafistas e terminada no final do mesmo ano, fez parte da chamada Primavera Árabe – termo usado para designar uma série de levantes populares em diferentes países árabes, com o intuito de derrubar o regime vigente, caso da Tunísia e do Egito.

Li O silêncio em uma época abarrotada de trabalhos da universidade e do estágio, e foi por esse motivo que, dado o pouco tempo disponível para leitura, demorei quase o triplo de dias que usualmente levaria para terminá-lo. O fato é que, mesmo lendo aproximadamente exíguas 10 páginas diárias, em meio a uma série de outros compromissos, a obra de Netto conquistou minha atenção logo no primeiro dia e revelou-se, com o passar das semanas, uma das melhores publicações jornalísticas brasileiras dos últimos anos, verdadeira referência para quem se interessa pela vertente investigativa do jornalismo à la Jon Krakauer.


Sinopse: Em 10 de março de 2011, familiares, amigos e colegas suspiraram aliviados após vários dias sem notícias do jornalista Andrei Netto no interior da Líbia, então conflagrada pela revolução. O repórter do jornal O Estado de S. Paulo acabava de ser entregue pelas autoridades do claudicante regime líbio aos cuidados do embaixador brasileiro em Trípoli, de onde retornou a sua casa em Paris. Netto, na companhia de um jornalista iraquiano do Guardian, havia sido sequestrado no início do mês por militantes kadafistas na pequena cidade de Sabratha, no oeste do país, e levado para uma prisão secreta nos arredores de Trípoli. A detenção lhe rendeu oito dias de isolamento e deflagrou uma campanha internacional por sua libertação, felizmente bem-sucedida.


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Insurgentes comemoram os avanços da ofensiva rebelde nas principais cidades líbias


Dono de um texto agradabilíssimo de ler, dotado de um grande senso de narrativa de aventura, Netto inicia o livro relatando os momentos cruciais da prisão de Kadafi por uma tropa rebelde, já nos últimos instantes da revolução, quando os oposicionistas invadem definitivamente a cidade de Sirte, na qual o ditador se escondia. Depois deste prólogo emocionante – no qual o autor comenta sua própria participação nos acontecimentos da capital, Trípoli, na condição de jornalista – tem início a história propriamente dita, desde a contextualização histórica da Líbia, passando pelos primeiros anos da ditadura de Kadafi, os primeiros movimentos contra o regime, a guerra, as experiências vividas como jornalista e a captura do temível governante no final (ou seja, o início do livro).

Entre o prólogo e o epílogo, toda a revolução é contada em detalhes claros e surpreendentes por Netto, que se coloca na narrativa como personagem, ao lado de outro jornalista extremamente carismático com o qual ele divide as 200 primeiras páginas: Ghaith Abdul-Ahad, repórter iraquiano do The Guardian. Ao lado deste colega de profissão, Netto invade a Líbia clandestinamente, ultrapassa postos de controle sem visto oficial, é abrigado em uma cidade perigosíssima pró-Kadafi, e o resultado dessas e de muitas outras peripécias é um livro que se lê como um thriller de ação, intercalado por numerosas e valiosíssimas informações jornalísticas sobre o conflito no norte da África – muitas delas inéditas.


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Detalhe do caderno de fotos


O silêncio contra Muamar Kadafi é um livro fascinante porque consegue envolver completamente o leitor da primeira à última página; é uma obra de não-ficção narrada com uma estrutura de romance, sem parecer piegas, boba ou com fins puramente alarmistas. É um trabalho jornalístico sério, e o profissionalismo de ponta do autor é visível em cada página. Acompanhando de perto toda a movimentação dos insurgentes, Netto colhe depoimentos dos quais extrai as estratégias militares dos rebeldes, a sua visão de política e as perspectivas para uma Líbia pós-revolução. Tudo trabalhado com muito esmero e dedicação, o que confere ao livro um indiscutível material de primeiríssima qualidade.

Especialmente interessante é o capítulo "Traição", no qual Andrei narra seus dias de penúria nos calabouços do regime kadafista, após ser preso por tropas leais ao ditador na cidade de Sabratha, semanas antes da intervenção da OTAN no conflito. Libertado graças a um jogo diplomático brasileiro, com a condição de que deveria deixar a Líbia, Netto retorna ainda duas vezes ao país, ocasiões que usaria para cobrir os momentos finais da insurgência.

O livro conta ainda com um interessantíssimo caderno de fotos que contém registros da guerra urbana nas cidades de Sirte, Trípoli e Misrata, importantes pontos estratégicos disputados durante os confrontos entre oposicionistas e governistas.

Em suma, O silêncio contra Muamar Kadafi é não somente um excelente livro que mistura entretenimento com informação de ponta, mas, também, um dos principais lançamentos editoriais do ano, escrito por um jornalista extremamente competente que, pode-se dizer, esteve no "olho do furacão" da Primavera Árabe na Líbia. Leitura recomendadíssima.


"Então fui assaltado pela impressão de que meu destino poderia estar selado, e que eu viraria mais um corpo atirado ao deserto, desaparecido para sempre, como Lúcia advertira. Foram breves instantes intermináveis, nos quais o soldado que me empurrava continuou a rezingar algo cujo significado eu não entendia, enquanto outros gritavam ao fundo. Me preparei para a execução sentindo uma tristeza imensa, a mesma que sentira dez anos antes, no Brasil, ao ser assaltado. Nesse instante eterno, me senti só. Um buraco se abriu em meu peito, e senti um vazio profundo. O medo que eu tinha experimentado em outros momentos se dissipara por completo; sabia que, se acontecesse, seria ali, rápido, sem torturas, sem sofrimento. Lamentei a dor eventual da minha família e das pessoas mais importantes da minha vida. Pensei em Lúcia e pedi desculpas a ela. Mas não lamentei nada além do sofrimento alheio, nem me arrependi das decisões que tomara. Me senti digno e seguro das minhas escolhas, de todas. E tive a certeza de que assumiria todos os riscos de novo, sem hesitar, porque aqueles riscos fazem parte da vida que escolhi." [p. 190-1]

2 comentários:

  1. Eu já cheguei a ler artigos do Netto, mas não sabia do livro! Gostei de conhecer. Gosto do estilo e é do tipo que me faz querer aprender mais e mais após a leitura (adoro quando vem esses "extras", com fotos, como se fosse um grande jornal).

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  2. Olá, Eliana!

    O Netto escreve super bem. Esse livro dele sobre a Líbia é um verdadeiro tesouro para estudantes de jornalismo, eu acho, porque realmente inspira qualquer um!

    E também curto demais esses "extras", como caderno de fotos e coisas do tipo! rs

    Abraços :)

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