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25 dezembro 2012

Estado de graça, de Ann Patchett

"Agora que Marina estava no Amazonas, parecia infindável a lista de coisas que poderiam matar uma pessoa sem que a culpa fosse atribuída a alguém (…)" (p. 86)

Estado-de-Graca patchett

Lá estava eu na livraria que costumo visitar praticamente todos os dias, cheia de gente neste fim de ano, quando vejo ao lado de uma montanha de edições de O Hobbit alguns exemplares do livro Estado de graça (State of wonder, 2011), escrito pela norte-americana Ann Patchett. Fui direto para a estante em que eles estavam, querendo pôr as mãos naquele livro e folheá-lo a qualquer custo. Não que eu já tivesse escutado algo a respeito da obra, nem mesmo a respeito da autora: eram ambos completamente inéditos para mim. O que me chamou a atenção imediatamente, e o que me fez querer investigar Estado de graça, foi a arte da capa. Sim, às vezes ninguém consegue fugir disso, nem mesmo os leitores mais conservadores: somos reféns de algumas capas maravilhosamente trabalhadas.

Através de uma rápida olhada na sinopse da orelha, descobri que o livro é uma espécie de romance de aventura que envolve pesquisa científica, excursões pela Amazônia indígena e uma espécie de "busca pela fonte da juventude" – metaforicamente falando. Descobri também que Patchett foi a vencedora do Prêmio Orange de Literatura pela obra Bel Canto, que estou esperando sair em português para conferir.

Quanto a Estado de graça, foi certamente uma das melhores leituras que fiz neste ano.


Sinopse: A Dra. Marina Singh trabalha para uma empresa norte-americana que financia o desenvolvimento de uma nova droga na Amazônia. À frente da pesquisa está a Dra. Annick Swenson, que descobriu uma tribo isolada na floresta Amazônica. As mulheres desta tribo permanecem férteis por toda a vida e dão à luz filhos saudáveis depois dos 60 anos, graças ao hábito de mascarem a casca de determinada árvore. Um medicamento feito a partir dessa substância significaria a solução para os problemas de fertilidade de mulheres em todo o mundo. Implacável e intransigente, a Dra. Swenson faz de tudo para proteger sua pesquisa dos olhos ambiciosos da indústria farmacêutica e manter em segredo as informações sobre o progresso com os estudos. Após a morte de um colega de laboratório, Marina é enviada ao Brasil com o objetivo de encontrar respostas.


Acredito que seja sempre um desafio, para o escritor, redigir uma história que se passa em um país diferente do seu: no caso dos escritores que se prezam, é preciso viajar a fim de coletar informações in loco, ouvir e estudar a língua nativa, investigar a cultura do povo e todas as suas particularidades. Me parece que Patchett cumpriu essas exigências ao se propor a escrever sobre o Brasil – mais especificamente, sobre Manaus e a Amazônia. Não existe em seu texto algo que revele leviandade ou ingenuidade: apenas os fatos, tais como são, crus. A população da zona portuária de Manaus, as características do clima da região, a população indígena. Se às vezes a autora parece cair em um lugar-comum, seja ao dizer que o menino vestia uma camisa da Copa do Mundo ou que os vendedores ambulantes brasileiros empurram suas bugigangas aos turistas sem piedade, basta olharmos em volta e perceber que isso não é mera ficção estereotipada. É a realidade que se apresenta no cotidiano brasileiro.

Uma das características mais chamativas de Estado de graça é a própria escrita de Ann Patchett, escrita esta que foi inclusive largamente elogiada pelo suplemento literário do The New York Times. Não sem razão: o texto da norte-americana possui fluidez, estofo, do tipo que não subestima a inteligência do leitor. Explora psicologicamente todos os lados da condição em que os personagens se encontram, explora seus sentimentos contraditórios e convida o leitor a tomar parte dessas contradições. Não é propriamente uma linguagem de best-seller à qual estamos acostumados hoje em dia, meramente descritiva e superficial quando trata de conteúdos abstratos. Portanto, embora a sinopse sugira algo bem próximo da aventura descompromissada, a autora que narra essa aventura mostra estar preocupada, também, com os aspectos mais profundos de sua trama – como a ética na pesquisa científica, o poder da empresa que a patrocina e o exotismo das populações indígenas.

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Diferentes edições em inglês de Bel Canto, a mais conceituada obra de Ann Patchett

A propósito, Estado de graça é uma mistura muito bem sucedida dos gêneros drama, aventura e investigação policial. No início da história, muitos personagens são apenas citados, de modo que o leitor não sabe o que é feito deles, onde estão e o que realmente fazem: paira uma atmosfera de chão movediço e mistério em que pululam muitas perguntas e não há quase nenhuma resposta plausível – e esse enigmático estado de coisas é uma das razões pelas quais a protagonista, Marina Singh, viaja para o Brasil e vai conferir as coisas pessoalmente. Desde a primeira página, quando os enigmas e as poucas explicações já começam a intrigar o leitor, somos levados a ir virando as folhas quase ininterruptamente, acompanhando os desdobramentos imprevisíveis da trama.

"Envolvente" e "inteligente" são as duas palavras que, creio, definem melhor o que se pode esperar de Estado de graça. Estamos vivendo em uma época na qual poucos livros conseguem unir de forma realmente satisfatória elementos aparentemente díspares como excursões ao estilo da aventura clássica e discussões sobre a condição e os relacionamentos humanos. A mais recente obra de Ann Patchett consegue trazer isso à tona. Uma boa dose de literatura inteligente: consegue colocar o leitor para refletir e, além disso, entretê-lo.

Leia o primeiro capítulo do livro aqui.


Marina, surpresa pela força da ordem e pelo olhar enlouquecido de frustração no rosto de Barbara Bovender, obedeceu e bebeu todo o líquido em um longo gole. Não era exatamente líquido, sendo mais denso no fundo, viscoso, e com pequenos pedaços de algo duro como gravetos arranhando sua garganta. A canoa onde estavam era um tronco e virava de lado, e ela era jogada para dentro d'água com o pai. A água entrava em seus olhos, no nariz e na boca. Ela afundou antes que pudesse nadar e tudo o que conseguia sentir era o gosto do rio. Ela havia se esquecido, até aquele momento, do gosto do rio. (p. 103)

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