
Ontem, já se arrastando pelas altas horas da noite, completamente desperto por conta de um café andino que tomei à tardinha, finalizei a leitura do nacional Olhai os Lírios do Campo (1938), obra do nosso querido e orgulhoso Erico Verissimo (sem acento em nenhum dos dois nomes, mesmo, constatei).
Sinopse (site Siciliano): Eugênio Fontes, moço de origem humilde, a muito custo se forma médico e, graças a um casamento por interesse, ingressa na elite da sociedade. Nesse percurso, porém, é obrigado a virar as costas para a família, deixar de lado antigos ideais humanitários e abandonar a mulher que realmente ama. Sensível, comovente, este livro é um convite à reflexão sobre os valores autênticos da vida.
Antes de tudo: Olhai os Lírios do Campo foi um livro que me leu. Quando digo isso, quero na verdade dizer que é o tipo do livro que transforma em palavras aquilo que está presente dentro do espírito do leitor, e que o leitor nunca soube muito bem descrever. É um livro de fato sensível, comovente, que possui uma trama muito bem amarrada, ao contrário do que muitos falam. Como não tenho palavras suficientes para qualificá-lo, apenas posso dizer que há tempos não lia um romance tão interessante e que me deixasse andando de um lado para o outro dentro do quarto, pensando a respeito do que havia acabado de ler.
Curioso... Existiu sobre a terra um andarilho norte-americano chamado Christopher Johnson McCandless (sobre o qual inclusive já escrevi aqui no blog), que lia livros em demasia e que adorava a vida nos seus mais simples e belos detalhes, procurando sempre ser simpático e útil para com o próximo, criticando arduamente as crueldades que estavam presentes no mundo. Tenho a nítida impressão de que se Chris ainda estivesse vivo, ele adoraria ler Olhai os Lírios do Campo; primeiro porque o título já diz tudo, e segundo porque nele há muitas reflexões profundas e belas acerca da vida - e da morte -, coisa que despertava a atenção do tal andarilho.
"Reflexão", a propósito, é uma palavra que define bem a essência da obra. A cada duas ou três páginas Verissimo nos lança um monólogo proveniente do interior da personagem principal, Eu gênio Fontes. É o caso de, por exemplo:
"Se naquele instante - refletiu Eugênio - caísse na Terra um habitante de Marte, havia de ficar embasbacado ao verificar que num dia tão maravilhosamente belo e macio, de sol tão dourado, os homens em sua maioria estavam metidos em escritórios, oficinas, fábricas... E se perguntasse a qualquer um deles 'Homem, por que trabalhas com tanta fúria durante todas as horas de sol?' - ouviria esta resposta singular: 'Para ganhar a vida'. E no entanto a vida estava ali a se oferecer toda, numa gratuidade milagrosa".
Vista assim, essa passagem pode até ser comparada à filosofia infantil de O Pequeno Príncipe, do escritor francês Saint-Exupèry. No entanto, O Pequeno Príncipe foi projetado para crianças, enquanto o livro de Erico tem um caráter muito mais profundo e lírico. Não estou querendo dizer com isso que o livro de Exupèry seja ruim ou deveras bobo (longe disso, pelo amor de Deus). Que o leitor deste blog não entre no mérito da comparação: eu só estou querendo dizer que as palavras e idéias contidas em Olhai os Lírios do Campo não são tão simples quanto parecem, possuindo antes um brilho desses que só chega aos nossos olhos através de uma reflexão própria, do tipo fechar-o-livro-e-agora-pensar.
Quanto ao estilo de escrita de Erico... poxa, que coisa agradável! É daquela estirpe onde se usa palavras e expressões clássicas sem parecerem piegas ou enfadonhas. A conjugação da segunda pessoa é no "tu": tu fazes, tu vais, tu ficaste. A preposição "de", e afins, se mesclam ao complemento: "duma", "dum". O resultado é uma prosa quase poética, um texto lírico e saudável, original, gostoso de ler.
Enfim. Foi com este livro que eu percebi existir no mundo uma forte linha de raciocínio tácita unindo todos os escritores da humanidade. Percebi que é como se houvesse uma espécie de corrente filosófica própria dos escritores... Claro que ela sempre existiu, mas foi somente ontem que eu me dei conta disso precisamente. Sensibilidade humana, "egoísmo altruísta" e uma ingenuidade beatífica são traços que fazem parte dessa filosofia tácita dos escritores.
Por fim, transcreverei para cá uma passagem que me comoveu bastante (não no sentido de me levar às lagrimas, naturalmente, mas de remexer algo dentro de mim). Trata-se de uma das muitas cartas que Olívia escreveu a Eugênio enquanto esteve afastada da cidade, passando uma temporada na Nova Itália. O trecho é o seguinte:
Estive pensando muito na fúria cega com que os homens se atiram à caça do dinheiro. É essa a causa principal dos dramas, das injustiças, da incompreensão da nossa época. Eles esquecem o que têm de mais humano e sacrificam o que a vida lhes oferece de melhor: as relações de criatura para criatura. De que serve construir arranha-céus se não há mais almas humanas para morar neles?
"Filosofia salvacionista barata", como disse o próprio Erico Verissimo no prelúdio do livro? Não sei... Só sei que eu gostei. Chris McCandless também gostaria, aposto.