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05 março 2014

Rio de fumaça, de Amitav Ghosh

"É um pecado entre nós faltar com a palavra para com aqueles cujo sal comemos". (p. 507)

115870647SZ Amitav Ghosh Credit Jerry Bauer

Antes de qualquer coisa, gostaria de pedir sinceras desculpas aos leitores deste blog pelo tempo exageradamente longo que passei sem publicar uma única resenha. Aconteceu o contratempo de sempre, do qual inclusive já me desculpei em outras ocasiões: faltou-me tempo e, não minto, alguma disposição para atualizar o Gato Branco. Além disso, no meu cotidiano, a boa literatura ficcional andou perdendo espaço para a leitura obrigatória de livros técnicos da faculdade. Suplico à Providência que jamais chegue o dia em que os ensaios acadêmicos e os artigos científicos obstruam totalmente minha dedicação à literatura.

O fato é que, hoje, estou aqui para comentar sobre um magnífico livro que li há mais de três meses e do qual guardo ainda saborosas impressões. Trata-se de Rio de fumaça (River of smoke, 2011), do escritor indiano Amitav Ghosh, um dos meus autores contemporâneos favoritos desde que li seu ótimo Maré voraz – que aborda o singular encontro entre uma jovem bióloga e um intérprete de negócios no coração de um arquipélago esquecido do Índico.

Rio de fumaça é a continuação direta de Mar de papoulas e o segundo volume da Trilogia Ibis, que Ghosh concebeu para contar a história do panorama político, econômico e social da Baixa Ásia durante o século XIX. Para isso, o autor criou personagens pitorescos que atravessam a trilogia e vivem os desdobramentos da movimentada vida urbana e marítima daquela época – como é o caso do marinheiro Zachary, do magnata Neel e da jovem Paulette, só para citar alguns exemplos.

As lacunas deixadas na trama e o destino incerto de todo mundo no final do primeiro romance dão margem a grandes aventuras a serem narradas em Rio de fumaça. Ciente da qualidade de Ghosh como escritor e refém da ânsia de reencontrar os antigos personagens, adquiri imediatamente o segundo livro da trilogia, assim que ele foi lançado.


Sinopse: Rio de fumaça é um livro grandioso, que capta um momento crucial na história da expansão do comércio marítimo – o tráfico do ópio na China no século XIX e seus desdobramentos mundiais. As relações entre as diferentes nações, que podem definir o futuro econômico do Império Britânico, as guerras pelo controle das rotas e o romances proibido entre um indiano e uma chinesa são os fios desta trama.


Entre 1839 e 1860, o sul da China foi palco de uma das guerras que melhor ilustram a força da ganância humana em assuntos de comércio internacional – e que revelam como essa ganância pode sobrepujar o bom-senso e levar nossa civilização à barbárie.

Servindo-se do argumento do Livre-Comércio (segundo o qual toda e qualquer relação comercial é válida, desde que a demanda pelo produto seja espontânea), os comerciantes britânicos tutelados pela Companhia das Índias Orientais insistiram em exportar ópio para a China, contrariando as leis proibitivas do então Império Chinês, que impediam a entrada da droga no continente no início do século XIX.

Na época, Cantão era o único porto da China aberto a comerciantes estrangeiros. Desde o fim das guerras napoleônicas, a Europa expandia sua política de exportação até o Extremo Oriente – e a China, já com uma das maiores populações do mundo, constituía um mercado consumidor bastante chamativo. Muito cedo descobriu-se que o ópio, essa pesada droga entorpecente derivada da papoula, era um produto adorado por grande parte da população local. Valendo-se de técnicas de contrabando que permitiam a entrada clandestina do ópio no país, os comerciantes europeus desafiaram as leis do imperador chinês e continuaram a realizar o comércio por baixo dos panos, ainda que isso significasse a degradação e a perdição dos que consumiam o produto.

Finalmente, chegou o momento em que essa realidade nociva não poderia mais ser ignorada pelas autoridades locais. A ira do imperador e dos comissários chineses contra os comerciantes estrangeiros foi tal que, em 1839, após vários alertas, o governo local apreendeu e queimou cerca de 20 mil caixas de ópio, propriedade dos britânicos. Aconteceu que a Inglaterra não tolerou o aparente abuso de poder chinês, que ia contra as leis "naturais" do Livre-Comércio, e declarou guerra à China.

Hoje, esse episódio é conhecido como as Guerras do Ópio.

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Rio de fumaça utiliza este complexo e tenso pano de fundo histórico para desenvolver a sua trama – ela própria complexa e cheia de tensão. Além de instruir o leitor e ensiná-lo sobre o passado, Ghosh consegue arrebatá-lo para a narrativa que está sendo desenrolada: consegue fazer com que nos importemos com o destino de comerciantes estrangeiros, de políticos locais e de impérios inteiros. De todos os romancistas históricos que povoam minha estante, Ghosh certamente consegue ser o mais fascinante e inventivo.

A Trilogia Ibis representa não somente um vasto painel sócio-histórico de praticamente todo o Oceano Índico durante o século XIX, mas, também, representa uma mudança de estilo na obra do próprio autor: menos conservador na estética, Ghosh agora abre mão de travessões e, quando não utiliza aspas, simplesmente joga os diálogos em meio ao texto – tal como Cormac McCarthy, por exemplo. Isso confere à sua escrita uma dinâmica e uma criatividade que convêm às sutilezas da trama de seus romances recentes, como é o caso de Rio de fumaça.

(Gosto de falar sobre a escrita de Ghosh porque, para mim, ela é um destaque do autor. Sempre clara, fluida e muito agradável, a sua prosa conduz o leitor a eventos e personagens que, nas mãos de outro, poderiam soar terrivelmente enfadonhos. Em Rio de fumaça temos uma escrita primorosa, leve e capaz de entreter um vasto público: e nas mãos de Ghosh as Guerras do Ópio e todo o seu subtexto político e econômico parecem uma grande aventura, e não uma aula maçante de História.)

Neste segundo livro da trilogia, o leitor é informado de alguns detalhes que ficaram em aberto no final de Mar de papoulas, quando o navio Ibis se encontrava em meio a uma tempestade e uma espécie de rebelião interna. Após uma surpreendente e fascinante abertura nas Ilhas Maurício, a narrativa passa para a jornada dos navios mercantes carregados de ópio rumo a Cantão, cidade onde, depois, se desenrola basicamente toda a trama principal.

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Prolixo sem ser cansativo, Ghosh descreve em detalhes a vida nesta cidade portuária de meados do século XIX, quando os estrangeiros eram proibidos de entrar no continente propriamente dito e ocupavam o chamado Enclave Estrangeiro – ou Fanqui-town, um pedaço de terra litorâneo de onde não poderiam sair. A descrição desse lugar se dá principalmente através das palavras do personagem Robin, que envia cartas extensas à sua amiga de longa data, Miss Paulette (a mesma jovem de Mar de papoulas pela qual me apaixonei). Robin é uma espécie de contraponto cômico e original na história, e sua juventude transborda em empolgação e sede de viver o curioso mundo no qual se encontra.

Todos os personagens apresentados ao longo do livro estão ligados entre si através de várias conexões novelescas (algumas delas um pouco forçadas, vamos admitir) que unem as histórias passadas e os destinos dessas pessoas. Dentre tais personagens está Ah Fatt, que no primeiro livro da trilogia ocupou um lugar à margem e, agora, é explorado às fartas, revelando toda uma interessante história de amor, fidelidade e abandono. A propósito, é curioso notar que o personagem principal de Rio de fumaça é o pai de Ah Fatt, alguém que jamais imaginamos que poderia ocupar tal lugar central no segundo livro.

Com um universo exótico tão repleto de personagens dos mais variados tipos, Ghosh exercita este que é um de seus maiores apetites: a polifonia. Romance narrado em terceira pessoa, mas cheio de vozes que emergem do texto com suas próprias particularidades, Rio de fumaça constitui uma espécie de colagem que se assemelha a um quebra-cabeça fácil de montar: não é difícil estabelecer as conexões entre os personagens e os eventos da trama, mas essas conexões só poderão ser feitas a partir dos diferentes narradores que compõem o estofo da obra – e com o necessário mergulho do leitor. O mais notável desses narradores certamente é o jovem Robin, que mencionei mais acima: a fim de apresentar a cidade de Cantão para Paulette, este alegre pintor (com seu estilo afetado e cômico) escreve à moça cartas nas quais mostra o seu entusiasmo com a cidade e atualiza algumas fofocas políticas.

Dinâmico, ambicioso, denso e surpreendente, Rio de fumaça reflete o esforço de um autor que faz uma meticulosa pesquisa bibliográfica e mescla fatos verídicos com uma trama envolvente. Premiadíssimo ao longo de sua carreira, Amitav Ghosh consolidou um reconhecimento internacional e firmou-se como uma das autoridades mais respeitadas em ficção histórica na literatura contemporânea.

Um comentário:

  1. ganhei de presente Rio de Fumaça. Comecei a ler, sem saber que era uma trilogia. Não gosto de ler orelhas de livro e resenhas, não consegui entender nada .... rsrsrs .... lógico .... Comprei o primeiro livro da trilogia Mar de Papoulas.... Mto bom .... Voltei ao Rio Fumaça ... Delícia de leitura!!!

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