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25 dezembro 2012

Estado de graça, de Ann Patchett

"Agora que Marina estava no Amazonas, parecia infindável a lista de coisas que poderiam matar uma pessoa sem que a culpa fosse atribuída a alguém (…)" (p. 86)

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Lá estava eu na livraria que costumo visitar praticamente todos os dias, cheia de gente neste fim de ano, quando vejo ao lado de uma montanha de edições de O Hobbit alguns exemplares do livro Estado de graça (State of wonder, 2011), escrito pela norte-americana Ann Patchett. Fui direto para a estante em que eles estavam, querendo pôr as mãos naquele livro e folheá-lo a qualquer custo. Não que eu já tivesse escutado algo a respeito da obra, nem mesmo a respeito da autora: eram ambos completamente inéditos para mim. O que me chamou a atenção imediatamente, e o que me fez querer investigar Estado de graça, foi a arte da capa. Sim, às vezes ninguém consegue fugir disso, nem mesmo os leitores mais conservadores: somos reféns de algumas capas maravilhosamente trabalhadas.

Através de uma rápida olhada na sinopse da orelha, descobri que o livro é uma espécie de romance de aventura que envolve pesquisa científica, excursões pela Amazônia indígena e uma espécie de "busca pela fonte da juventude" – metaforicamente falando. Descobri também que Patchett foi a vencedora do Prêmio Orange de Literatura pela obra Bel Canto, que estou esperando sair em português para conferir.

Quanto a Estado de graça, foi certamente uma das melhores leituras que fiz neste ano.


Sinopse: A Dra. Marina Singh trabalha para uma empresa norte-americana que financia o desenvolvimento de uma nova droga na Amazônia. À frente da pesquisa está a Dra. Annick Swenson, que descobriu uma tribo isolada na floresta Amazônica. As mulheres desta tribo permanecem férteis por toda a vida e dão à luz filhos saudáveis depois dos 60 anos, graças ao hábito de mascarem a casca de determinada árvore. Um medicamento feito a partir dessa substância significaria a solução para os problemas de fertilidade de mulheres em todo o mundo. Implacável e intransigente, a Dra. Swenson faz de tudo para proteger sua pesquisa dos olhos ambiciosos da indústria farmacêutica e manter em segredo as informações sobre o progresso com os estudos. Após a morte de um colega de laboratório, Marina é enviada ao Brasil com o objetivo de encontrar respostas.


Acredito que seja sempre um desafio, para o escritor, redigir uma história que se passa em um país diferente do seu: no caso dos escritores que se prezam, é preciso viajar a fim de coletar informações in loco, ouvir e estudar a língua nativa, investigar a cultura do povo e todas as suas particularidades. Me parece que Patchett cumpriu essas exigências ao se propor a escrever sobre o Brasil – mais especificamente, sobre Manaus e a Amazônia. Não existe em seu texto algo que revele leviandade ou ingenuidade: apenas os fatos, tais como são, crus. A população da zona portuária de Manaus, as características do clima da região, a população indígena. Se às vezes a autora parece cair em um lugar-comum, seja ao dizer que o menino vestia uma camisa da Copa do Mundo ou que os vendedores ambulantes brasileiros empurram suas bugigangas aos turistas sem piedade, basta olharmos em volta e perceber que isso não é mera ficção estereotipada. É a realidade que se apresenta no cotidiano brasileiro.

Uma das características mais chamativas de Estado de graça é a própria escrita de Ann Patchett, escrita esta que foi inclusive largamente elogiada pelo suplemento literário do The New York Times. Não sem razão: o texto da norte-americana possui fluidez, estofo, do tipo que não subestima a inteligência do leitor. Explora psicologicamente todos os lados da condição em que os personagens se encontram, explora seus sentimentos contraditórios e convida o leitor a tomar parte dessas contradições. Não é propriamente uma linguagem de best-seller à qual estamos acostumados hoje em dia, meramente descritiva e superficial quando trata de conteúdos abstratos. Portanto, embora a sinopse sugira algo bem próximo da aventura descompromissada, a autora que narra essa aventura mostra estar preocupada, também, com os aspectos mais profundos de sua trama – como a ética na pesquisa científica, o poder da empresa que a patrocina e o exotismo das populações indígenas.

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Diferentes edições em inglês de Bel Canto, a mais conceituada obra de Ann Patchett

A propósito, Estado de graça é uma mistura muito bem sucedida dos gêneros drama, aventura e investigação policial. No início da história, muitos personagens são apenas citados, de modo que o leitor não sabe o que é feito deles, onde estão e o que realmente fazem: paira uma atmosfera de chão movediço e mistério em que pululam muitas perguntas e não há quase nenhuma resposta plausível – e esse enigmático estado de coisas é uma das razões pelas quais a protagonista, Marina Singh, viaja para o Brasil e vai conferir as coisas pessoalmente. Desde a primeira página, quando os enigmas e as poucas explicações já começam a intrigar o leitor, somos levados a ir virando as folhas quase ininterruptamente, acompanhando os desdobramentos imprevisíveis da trama.

"Envolvente" e "inteligente" são as duas palavras que, creio, definem melhor o que se pode esperar de Estado de graça. Estamos vivendo em uma época na qual poucos livros conseguem unir de forma realmente satisfatória elementos aparentemente díspares como excursões ao estilo da aventura clássica e discussões sobre a condição e os relacionamentos humanos. A mais recente obra de Ann Patchett consegue trazer isso à tona. Uma boa dose de literatura inteligente: consegue colocar o leitor para refletir e, além disso, entretê-lo.

Leia o primeiro capítulo do livro aqui.


Marina, surpresa pela força da ordem e pelo olhar enlouquecido de frustração no rosto de Barbara Bovender, obedeceu e bebeu todo o líquido em um longo gole. Não era exatamente líquido, sendo mais denso no fundo, viscoso, e com pequenos pedaços de algo duro como gravetos arranhando sua garganta. A canoa onde estavam era um tronco e virava de lado, e ela era jogada para dentro d'água com o pai. A água entrava em seus olhos, no nariz e na boca. Ela afundou antes que pudesse nadar e tudo o que conseguia sentir era o gosto do rio. Ela havia se esquecido, até aquele momento, do gosto do rio. (p. 103)

14 dezembro 2012

Tia Julia e o escrevinhador, de Mario Vargas Llosa

"O futuro era um assunto tacitamente abolido de nossas conversas, sem dúvida porque, tanto ela como eu, estávamos convencidos de que nossa relação não tinha nenhum." (p. 122)

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Tia Julia e o escrevinhador (La tía Julia y el escribidor, 1977) era um livro que estava na estante do meu irmão há alguns anos e eu nunca tinha tido a oportunidade de pegá-lo para ler. Já havia devorado o romance Travessuras da menina má antes, que é de Mario Vargas Llosa também, e inclusive comecei a pensar em ler os outros títulos deste escritor peruano, mas nessa época uma série de leituras mais prementes estavam se colocando entre eu e Tia Julia.

A verdade é que, depois de muitos títulos do Murakami, alguns de Amitav Ghosh e outros tantos de Erico Verissimo, finalmente pulei por cima de alguma espécie de obstáculo invisível e puxei da prateleira do meu irmão este pitoresco romance de Llosa (vencedor do Nobel de Literatura em 2010, convém lembrar), me divertindo do início ao fim com as aventuras sentimentais de Marito e as extravagâncias artísticas do radionovelista Pedro Camacho.


Sinopse: Tia Julia e o escrevinhador é um dos livros mais originais de Vargas Llosa. Mesclando humor e romance, o escritor narra a história de Varguitas, um jovem peruano com ambições literárias que se apaixona por uma tia com quase o dobro da sua idade. Em paralelo a esse romance proibido, na Lima dos anos 50, Varguitas conhece Pedro Camacho, autor excêntrico de radionovelas cujos enredos mirabolantes fascinam os peruanos. As novelas vão muito bem, até o dia em que Pedro Camacho, sobrecarregado, começa a confundir enredos e personagens. E, ao mesmo tempo, o romance entre Varguitas e tia Julia é descoberto pela família.


Mario Vargas Llosa é um daqueles escritores com os quais tenho uma estreita relação de afeição e repulsa. Me afeiçoei ao seu trabalho porque ele é, de fato, sem sombra de dúvidas, um exímio contador de histórias, um artista das letras verdadeiramente ímpar – basta lembrar da sua longa incursão na literatura engajada, em que transformava em romance grandes eventos da política latino-americana, como nos clássicos A festa do bode e Lituma nos Andes. Sua importância literária (e não só a importância como também a qualidade real de sua escrita) faz de Llosa um dos maiores escritores da América do Sul. Por outro lado, pessoalmente falando, acho-o bastante aborrecido e desagradável como sujeito. Mas isso é uma opinião pessoal demais, e não convém ao caso falar sobre ela.

Tia Julia e o escrevinhador foi redigido entre duas grandes obras: Conversa na catedral e A guerra do fim do mundo. Por essa razão, corria o sério risco de ser tratado como um trabalho menor do escritor, mero passatempo ou divertimento literário, por abordar um assunto engraçado e tecnicamente superficial: o amor autobiográfico entre um menino de 18 anos e sua tia distante. No entanto, bem feitas as contas, percebe-se que Tia Julia é um romance que, além de divertidíssimo e muito bem humorado, é também uma obra de arte não menos ambiciosa que as duas citadas acima. Vargas Llosa tem o dom de transformar cada pequeno acontecimento em uma situação envolvente, além de abordar os eventos da história sob uma ótica antropológica genial.

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Capa da Coleção Folha de Literatura Ibero-Americana e pôster do filme norte-americano baseado no romance, estrelado por Keanu Reeves

Não é à toa que o escritor é festejado bastante aqui na América Latina: cada livro seu faz uma referência completa a todo panorama do continente, traçando uma espécie de painel sócio-histórico que faz a América abaixo do hemisfério norte parecer de fato uma grande e coesa comunidade, com seus dramas pessoais, suas nuances políticas, suas mesquinharias e suas virtuosidades. Em Tia Julia isso fica muito claro: percebe-se como Llosa teve o cuidado de inserir praticamente todos os países latinos na história, nem que seja como uma simples menção.

O livro é dividido basicamente em dois eixos centrais: a história de amor entre o personagem Mario Vargas e Julia (sim, há muito de autobiográfico nesta história, porque na vida real o autor também se envolveu com a própria tia, anos mais velha que ele, chamada Julia) e as radionovelas escritas pelo pitoresco artista boliviano Pedro Camacho. Os capítulos são alternados – ou seja, depois de um capítulo sobre as peripécias de Mario, há um capítulo de radionovela escrito por Camacho. Aqui cabe um parêntese: embora seja um recurso literário muito interessante, esse movimento de troca de capítulos cansa um pouco o leitor, porque a quebra do fio da meada da história é uma constante. Nada que torne o livro menos bom, claro, mas o fato é que isso pode deixar a leitura um pouco enfadonha em alguns pontos.

Os vários personagens que orbitam ao redor de Mario, Tia Julia e Pedro Camacho são sujeitos riquíssimos e muito bem construídos, principalmente Javier – melhor amigo de Mario –, Grande Pablito e Pascual. Aliás, essa é uma das muitas qualidades de Llosa como novelista, saber criar personagens secundários interessantes e memoráveis (o auge desse tipo de criação foi em Travessuras da menina má, sem dúvida, porque até hoje me lembro com ternura do inesquecível Menino Sem Voz).

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Da esquerda para a direita: Vargas Llosa, Carlos Fuentes e García Márquez

Assim como Travessuras da menina má, Tia Julia e o escrevinhador é um dos romances mais leves de Mario Vargas Llosa: "leve" não no sentido de superficial, mas de mais facilmente identificável com o leitor, mais próximo da nossa realidade emocional cotidiana e, em suma, mais novelesco. O escritor peruano destila toda a sua capacidade de contar uma boa história, narrá-la de uma maneira que parece descompromissada mas que, na verdade, carrega toda uma bagagem social nas páginas; uma literatura compromissada, sim, compromissada a todo momento com seu povo, seus eventos e suas particularidades. Ler Tia Julia e entender seu contexto deixa qualquer um com uma pontinha de orgulho por ser latino-americano, no final das contas.

02 dezembro 2012

Globalização, democracia e terrorismo, de Eric Hobsbawm

"Teremos de encontrar outras maneiras de organizar o mundo globalizado do século XXI" (p. 85)

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Quem circula com frequência pelas grandes livrarias sabe que basta um autor relativamente conhecido vir a falecer para que boa parte da sua obra fique estampada nas prateleiras mais visíveis do estabelecimento. Lembro que, quando José Saramago deixou este mundo, em junho de 2010, as estantes da livraria que costumo visitar ficaram apinhadas de livros do escritor Nobel português; com Michael Crichton (em 2006) não foi diferente, e com John Updike (em 2009) aconteceu a mesma coisa. Geralmente esta avalanche de títulos alardeados após a morte do autor vem acompanhada de promoções chamativas: Caim com 10% de desconto, Jurassic Park em edição de bolso, boxes de luxo da série Rabbit.

Embora esta prática tenha tudo de mercantilista em suas vantagens publicitárias para a loja, deve-se admitir que ela também possui seu lado bom. Chega a ser bastante óbvio o fato de que podemos conhecer grandes obras quando um grande escritor (que não conhecíamos antes) vem parar diante dos nossos olhos. Eric Hobsbawm, por exemplo, faleceu em 1º de outubro de 2012; no dia seguinte, voltando da faculdade, passei na livraria e vi uma série de suas obras clássicas enfileiradas na primeira prateleira depois das portas de entrada. Intimado a prestar minhas condolências a todos aqueles livros órfãos, parei para folhear alguns ao acaso. Um dos que peguei nas mãos foi Globalização, democracia e terrorismo (Globalisation, democracy and terrorism, 2007); cativou-me logo pela sua simplicidade, clareza e relevância de conteúdo. E, como o livro não era tão grande assim – na verdade, possui apenas 182 páginas –, foi ele que escolhi para conhecer esse historiador tão elogiado ao redor do mundo.


Sinopse: Nos 10 textos que compõem este livro, o renomado historiador Eric Hobsbawm, autor do clássico "Era dos Extremos", analisa a situação mundial no início do novo milênio e trata dos problemas mais agudos que nos confrontam. Nesta esclarecedora aula de História Contemporânea, Hobsbawm traça um painel do cenário político internacional ao discorrer sobre temas como guerra e paz, imperialismo, nacionalismo e hegemonia, ordem pública e terrorismo, mercado e democracia, o poder da mídia e até futebol.


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Reflexões sobre os conflitos civis no Oriente Médio são mencionados durante boa parte da obra


Globalização, democracia e terrorismo é, na realidade, uma coletânea de 10 palestras que Eric Hobsbawm proferiu ao redor do mundo. Nelas, o historiador aborda uma série de questões políticas, sociais e econômicas que estão em evidência no nosso mundo contemporâneo. Com a grande autoridade de que dispõe, ele esmiúça conflitos militares no Leste Europeu e no Oriente Médio, fala sobre a emancipação social das mulheres com relação aos homens, discorre sobre a hegemonia político-ideológica que as grandes potências exercem sobre os demais países, conta um pouco de História Clássica, grupos separatistas (como o IRA e o ETA), violência nos grandes centros urbanos e as perspectivas da democracia nessa virada de século. Em suma: este livro é um verdadeiro apanhado geral sobre o que anda acontecendo no planeta nos últimos tempos – uma aula de história contemporânea.

Talvez pelo fato de serem palestras, os capítulos do livro apresentam uma clareza de ideias muito motivadora para o leitor. Sem circunvoluções enfadonhas, sem prolixidade, sem jargões científicos, Hobsbawm tece comentários muito lúcidos para seus ouvintes, e a transformação de sua fala para um texto escrito resultou em uma literatura muito inteligível e coerente. O capítulo 6, As perspectivas da democracia, por exemplo, é especialmente interessante porque trata de um assunto bastante relevante de forma profunda e clara ao mesmo tempo.

Muito interessantes também são as considerações que o autor faz a respeito do futebol enquanto movimento de massas nacionalista e geradora de violência urbana, no capítulo 5. Ou a discussão que ele levanta quando menciona os principais grupos separatistas europeus e a relação que estes estabelecem com a queda dos governos estáveis e auto-reguladores. Sob diversos aspectos, o que Hobsbawm faz é girar o prisma da realidade política e social do mundo e mostrar as suas outras facetas, que chocam e desestruturam nossas mais antigas convicções.


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No livro, Hobsbawm levanta discussões que envolvem grupos separatistas europeus, como o IRA e o ETA


Em vida, Eric Hobsbawm com frequência era acusado de sustentar um posicionamento ideológico irracional nos dias de hoje: o comunismo. Em uma reportagem publicada pela revista Veja (leia aqui), o historiador é literalmente chamado de "idiota moral" pelo jornalista, que, sem escrúpulos, afirma que este intelectual inglês manchou toda a sua obra ao levantar a bandeira stalinista e pregar o regime comunista como ideal. O que convém notar é que, se ele fosse o cego ideológico que a revista afirma que era, Hobsbawm não teria reconhecido que os governos comunistas haviam errado totalmente o caminho que Marx orientara.

(Não sou comunista, não sou marxista, mas gostaria de dizer que todas as críticas feitas a Eric Hobsbawm são aplicáveis a personalidades de direita, também. "Mesmo diante da execução sumária e tortura de milhões, continuou se furtando a condenar um regime atroz" é um exemplo de crítica aplicável a ambos os lados.)

Por fim: se o leitor quer uma dose rápida, mas riquíssima, de aulas sobre História Contemporânea, convido-o a ter nas mãos este pequeno livro que, longe de pregar qualquer movimento ideológico, mostra como o nosso mundo é complexo e admite várias vertentes – várias suposições e vários pontos de vista.


"Um prognóstico tentativo: no século XXI, as guerras provavelmente não serão tão mortíferas quanto foram no século XX. Mas a violência armada, gerando sofrimentos e perdas desproporcionais, persistirá, onipresente e endêmica – ocasionalmente epidêmica – em grande parte do mundo. A perspectiva de um século de paz é remota." (p. 35)

25 novembro 2012

Receita para as férias [2012.2]

O que podemos esperar aqui no Blog para as férias do final do ano, em termos de literatura.

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A torrente de obrigações acadêmicas que tem surgido nos últimos meses – na verdade, ao longo de todo este ano – me obrigou a deixar um pouco de lado tudo o que publico aqui. Contrariando minhas expectativas, não diminuí meu ritmo de leitura, que aliás pareceu mesmo ter subido neste segundo semestre, mas o tempo disponível para dedicar às resenhas semanais andou apertado o suficiente para que eu passasse às vezes um mês sem publicar coisas inéditas. Que triste!

Como todo amante de leituras, vejo a minha pilha de livros por ler aumentar gradualmente a cada semana que passa. Nunca fui de acumular livros assim, aos poucos, de deixá-los esperando em um canto da minha estante, mas hoje vejo que este é um exercício inevitável, até saudável, na medida em que vamos criando expectativas e desejos com relação às obras que ficam ali, nos aguardando. E isso pode ser muito bom na hora de finalmente ter o livro nas mãos.

Mas as férias existem para que, dentre outras coisas, possamos atualizar nossa caminhada literária e pôr tudo em dia. Pensando nisso, resolvi organizar neste post todas as obras que me esperam no início de dezembro – se tudo correr como esperado no laboratório de pesquisa do qual faço parte, claro; do contrário, terei que esperar mais alguns dias. Tenho um grande carinho por todos os livros listados abaixo, e mal posso esperar para começá-los!


A visita cruel do tempo | Jennifer Egan

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Presente de aniversário dado pelo meu irmão. Não nego: o livro dá medo. Pela rápida folheada que dei nele, a narrativa me pareceu uma curiosa mixórdia de tempos verbais, eventos paralelos e personagens voláteis. Ainda estou pensando como vou abraçar este livro, mas, desde agora, posso dizer que impera a expectativa de um livro memorável – levando em conta as dezenas de críticas positivas que Egan recebeu dos jornais de língua inglesa. Ainda estou amadurecendo a ideia de como abordá-lo…


Nos bastidores do Pink Floyd | Mark Blake

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Ah, Pink Floyd… Melodias incríveis, letras de qualidade, arranjos impressionantes. Uma banda que conseguiu a façanha de produzir, depois de Dark Side of The Moon, uma obra-prima atrás da outra. O que esperar desse livro, então? A biografia (definitiva, pelo que pude constatar) de um dos melhores conjuntos de rock da História. O livro conta a trajetória completa destes mestres da música, desde a Era Syd até a Era Gilmour, e possui um bonitinho caderno de fotos em papel Couche. (A cada folheada que dou, encontro uma página nova desse caderno de fotos, uma página que eu não tinha visto antes… Incrível.)


Pela bandeira do paraíso | Jon Krakauer

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Admito, penso em trocar este aqui por Os sobreviventes dos Andes, de Clay Blair Jr. Não que o livro de Krakauer seja ruim: nada disso. Foi apenas a mistura de dois elementos que fez com que eu tomasse a decisão de trocá-lo: meu fascínio por qualquer publicação sobre a tragédia dos jogadores de rúgbi nos Andes e a sensação de que a história dos mórmons, retratada no livro de Jon, ainda não me apetece o bastante. Mas a qualidade jornalística dos livros do autor é inquestionável, vide Na natureza selvagem e Onde os homens conquistam a glória, excelentes registros documentais sobre Christopher McCandless e Patrick Tillman, respectivamente. Veremos o que acontece com este item da lista.


Confissões | Jean-Jacques Rousseau

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Depois de Os devaneios do caminhante solitário, Rousseau se tornou meu filósofo favorito – não só pelas suas ideias, belas e justas, mas também pela clareza na forma como ele expõe esses pensamentos. Consigo me identificar com quase tudo o que ele escreve, o que chega a ser impressionante se estivermos levando em conta um pensador suíço do século XVIII e um brasileiro de 20 anos que lê Michael Crichton e Dan Brown. Aqui nesta obra, temos uma espécie de autobiografia moderna em que Rousseau se compromete a revelar, para o mundo, tudo o que sentiu e viveu; assim, ele se despe perante todos, críticos e admiradores – o que não deixa de ser um ato incrivelmente ousado. Parece ser um livro bem prolixo: estou curioso para ver os pensamentos que ele carrega.


03 novembro 2012

A arte de viajar, de Alain de Botton

"O que consideramos exótico no exterior pode ser aquilo a que aspiramos em vão em casa." (p. 80)

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Meus amigos mais próximos sabem que, quanto mais sinto prazer em ler um livro, mais demoro para terminar de lê-lo; mais vagarosamente saio de um capítulo para o outro, mais tempo costumo gastar para ler um parágrafo, com mais lentidão me detenho numa página específica. Alguns colegas até se exasperam com isso, não compreendem o porquê, como foi o caso de uma amiga minha que me via diariamente com A arte de viajar (The art of travel, 2002) nas mãos e sempre dizia: "Você ainda não terminou de ler este livro? Não acredito!" E, três dias depois, ela me encontrava com o mesmo livro aberto sobre o colo, praticamente na mesma página de antes.

Se no passado eu já tinha ouvido falar em Alain de Botton, foi somente como uma menção vaga que não marcou nenhuma impressão na minha mente. Essa leve sensação de familiaridade com o nome desse escritor suíço foi despertada quando, num belo dia, passeando os olhos por uma revista publicitária, vi um de seus livros mais elogiados em preço de promoção: era A arte de viajar, que, pela capa e pelo título, conseguiu atrair minha atenção e me fazer querer lê-lo imediatamente. Não titubeei: fui à livraria, comprei o volume (que foi baratíssimo, diga-se de passagem) e me deliciei com uma das leituras mais prazerosas que lembro ter feito.


Sinopse: Em A arte de viajar, Alain de Botton, autor de As consolações da filosofia, nos propõe uma excursão pelas satisfações e decepções do ato de viajar. Aeroportos, tapetes exóticos, emoção das férias e frigobares de hotel; esse livro bem-humorado, esclarecedor e instigante revela as motivações filosóficas, expectativas e complicações ocultas em nossas viagens pelo mundo afora.


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Cafeteria automática (1927), de Edward Hopper: uma das muitas pinturas analisadas em A arte de viajar


Fartamente ilustrado com imagens de pinturas famosas, fotografias tiradas pelo próprio autor e desenhos clássicos, A arte de viajar é um verdadeiro deleite para quem gosta da vertente da Literatura que se propõe a transmitir para os leitores as vivências, experiências significativas e memórias pessoais do escritor. Eu diria, inclusive, que A arte de viajar é o livro de memórias por excelência, não somente porque o autor narra suas reflexões sobre o mundo e tem toda uma concepção de vida, mas porque ele ilustra essas reflexões de forma incrivelmente pessoal. Imaginem aquelas fotografias que nós batemos no meio da rua, capturando o telhado torto de uma casa, uma nuvem solta ou um transeunte qualquer: essas imagens amadoras De Botton também faz, e, mais ainda, ele as usa para ilustrar, de forma muito própria, aquilo que quer passar para os seus leitores.

O resultado disso é um livro muito bonito, modesto e ao mesmo tempo elegante, porque Alain de Botton – embora sempre escrevendo de forma muito pessoal – se apoia nas ideias de uma miríade de outras personalidades: filósofos como Nietzsche, pintores como Van Gogh, poetas como Baudelaire, ensaístas como John Ruskin. Provando que possui uma extensa sabedoria sobre a obra de todas essas pessoas, De Botton as utiliza para ilustrar e explicar vários aspectos inerentes ao exercício de viajar. Em outras palavras, ele transforma a filosofia que nós consideramos erudita e distante do cotidiano em algo totalmente próximo e útil.


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Gasolina (1940), outra tela de Hopper sobre a qual De Botton comenta de forma brilhante


Uma coisa é certa: você vai ficar com vontade de pegar o primeiro avião (ou o primeiro trem, ou o primeiro navio, ou o que quer que seja) e ir em direção a qualquer lugar. Lendo A arte de viajar você sente aquela vontade intensa de viver novas experiências em um lugar bem diferente daquele que você costuma ver todos os dias, no qual você costuma estar sempre. E esse desejo tem origem nas reflexões que De Botton traz para nós em seu livro, ideias que encontram suporte na Arte de um modo geral, na poesia, na arquitetura, e em todas as coisas que a Filosofia pode nos oferecer. Um verdadeiro banho de inteligência bem-humorada, útil e reflexiva.

O mais interessante desta obra é que o autor discorre sobre vários aspectos relacionados à atividade de viajar, e esses aspectos podem se estender à vida cotidiana de um modo mais amplo. Por exemplo, ele escreve sobre a expectativa antes de partir, sobre a curiosidade, sobre o exotismo, sobre o sublime, a posse da beleza e o hábito – neste último capítulo, o autor nos brinda com uma hilária mas construtiva análise da obra de Xavier de Maistre, Viagem ao redor do meu quarto. Todas as considerações sobre esses temas são extremamente bem-vindas, e a linguagem de De Botton, elegante e harmoniosa, envolvente, faz com que adoremos cada passagem, cada trecho.


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"No contato com esses elementos, leitores que em outras áreas de suas vidas seriam capazes de ceticismo e prudência regrediam ao otimismo e à inocência primordiais." (p. 16)


Se há uma coisa que eu repito com constância aqui no Blog, é esta: nunca consigo escrever uma boa resenha sobre os livros de que mais gosto. Sempre sai uma coisa canhestra, comentários volúveis, e nas releituras eu invariavelmente penso: "não era bem isso o que eu queria dizer sobre a obra". Já com isso em mente, selecionei um trecho do próprio A arte de viajar que, na minha opinião, resume bem as reflexões que o livro se propõe a fazer. Nas palavras do próprio Alain de Botton, eis:

"Se nossas vidas são dominadas pela busca da felicidade, talvez poucas atividades revelem tanto a respeito da dinâmica desse anseio – com toda a sua empolgação e seus paradoxos – quanto o ato de viajar. Ainda que de maneira desarticulada, ele expressa um entendimento de como a vida poderia ser fora das limitações do trabalho e da luta pela sobrevivência. Mas raramente se considera que as viagens apresentem problemas filosóficos – ou seja, questões convidando à reflexão além do nível prático. Somos inundados por recomendações sobre os lugares para onde viajar, mas pouco ouvimos sobre como e por que deveríamos ir." (p. 17)

A arte de viajar nada tem de manual ou de guia; sua proposta não é dar ao leitor conselhos do tipo "Faça isso, experimente aquilo". É muito importante frisar isso, ainda mais em se tratando de Alain de Botton, que ganhou a fama errada de autor de auto-ajuda filosófica. O que ele realmente propõe é uma conversa, uma abertura de olhar, estar atento às experiências do mundo cotidiano, o que pode facilitar e muito a nossa existência, transformando em arte e em beleza uma coisa que às vezes soa aparentemente mesquinha e desinteressante.

Boa viagem!


Abaixo, um trecho do livro que achei muito significativo:

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"A fotografia não pode, por si só, garantir o alimento necessário para a alma quando esta se encontra em contato com paisagens belas. A verdadeira posse de uma paisagem depende de um esforço consciente no sentido de observar elementos e entender a sua construção. Podemos muito bem ver a beleza apenas abrindo os olhos, mas sua sobrevivência na memória depende de quão intencionalmente a apreendemos. A câmera fotográfica embaça a distinção entre olhar e notar, entre ver e possuir; pode oferecer-nos a alternativa de um autêntico conhecimento, mas também pode, inadvertidamente, fazer parecer supérfluo o esforço dessa aquisição – porque sugere que já fizemos todo o trabalho ao meramente tirar a fotografia." (p. 219)

14 outubro 2012

Disco: Privateering, de Mark Knopfler

O mais recente álbum do músico inglês que nunca decepciona

Mark Knopfler – Privateering (2012)

Depois de mais ou menos três anos de espera, desde o lançamento de Get Lucky (2009), finalmente pude colocar as mãos no mais recente álbum solo do músico britânico Mark Knopfler: Privateering (2012), um disco duplo que totaliza 20 canções embaladas pelo gênero folk blues, tão apreciado por Knopfler. Fã incondicional do ex-líder da extinta banda Dire Straits, eu sempre acompanhei com entusiasmo as produções individuais de Mark – e posso dizer, com segurança, que nunca tive uma decepção real com aquilo que ele já compôs em todos esses longos anos.

Mistura equilibrada de country e folk blues, com uma leve e persistente presença do rock clássico, utilizando-se de instrumentos como sanfona, banjo e violino, Privateering é – assim como o disco anterior, Get Lucky – uma prova consistente e indiscutível da maturidade artística de Knopfler. Maturidade esta que, na verdade, ele sempre pareceu possuir, desde o distante trabalho em Golden Heart (1996), seu primeiro disco solo, em que já estavam presentes o bom ritmo, as letras com qualidade, a "ousadia comportada" característica do músico e a voz com timbre grave e sorumbático.

Mark já lançou sete discos solo até o momento. Com Privateering, ele dá algumas mostras de como anda sua tendência atual: uma simpatia pelo som norte-americano aliada à paixão pelas origens celtas. Essa união singular produz músicas belíssimas, como a balada "Kingdom of Gold" e a nostálgica "Haul Away". A faixa-título, "Privateering", é sem dúvida uma das melhores do álbum, e posso dizer que ela já era a minha preferida mesmo nas versões ao vivo que Mark Knopfler reproduziu nas suas últimas turnês.


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Get Lucky (2009) e Golden Heart (1996): álbuns com a maturidade sempre notável de Mark Knopfler


Ouvintes de Dire Straits podem estranhar o som de um álbum como Get Lucky, por exemplo, ou de Privateering, dada a enorme diferença entre o ritmo pop da antiga banda inglesa e a profundidade mais arqueológica do trabalho solo de seu ex-líder. Ao lado de grandes hits como "Sultans of Swing" e "Money for Nothing", faixas tais como "Redbud Tree" ou "Dream of the Drowned Submariner" podem soar monótonas, enfadonhas ou incompreensíveis. No entanto, bem feitas as contas, já na condição de guitarrista dos Straits, Mark Knopfler plantou sementes que mais tarde, em sua carreira solo, floresceriam. Essas sementes, vejo agora, eram músicas como as saudosas "Why Worry", "Ride Across the River" e "Lions", dentre outras.

Aos fãs de Knopfler, resta então se deleitar com este novo álbum, original, eclético, profundo e agradável aos ouvidos… e esperar pelo próximo trabalho deste músico que, apesar dos passeios que já fez pelos mais diferentes ritmos e solos, nunca decepcionou aqueles que cativou desde os anos 1980.

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Privateering (2012)

CD I

  1. Redbud Tree
  2. Haul Away
  3. Don’t Forget Your Hat
  4. Privateering
  5. Miss You Blues
  6. Corned Beef City
  7. Go, Love
  8. Hot or What
  9. Yon Two Crows
  10. Seattle

CD II

  1. Kingdom of Gold
  2. Got to Have Something
  3. Radio City Serenade
  4. I Used to Could
  5. Gator Blood
  6. Bluebird
  7. Dream of the Drowned Submariner
  8. Blood and Water
  9. Today is Okay
  10. After the Beanstalk

24 setembro 2012

Tremor, de Jonathan Franzen

"(…) você pode acabar se perguntando por que organizou a sua vida como se você não passasse de uma máquina voltada para a desprazerosa produção e o prazeroso consumo de mercadorias." (p. 332)

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Não é sempre que tenho a coragem necessária – e a disposição, e a iniciativa, e tudo o mais – para iniciar a leitura de um romance extenso em plena época de aulas, provas e estágios em laboratórios de pesquisa. Tremor (Strong motion, 2001), do super-aclamado escritor contemporâneo Jonathan Franzen, entrou para a lista dessas exceções às quais me dou o direito de conceder de vez em quando. E o resultado disso foi que, em meio a tantos assuntos acadêmicos que não permitem um mergulho maior na Literatura, me diverti (e refleti) bastante com a ajuda deste livro sensacional.

Franzen atualmente é muito citado nos suplementos literários como "o grande romancista norte-americano do início do século XXI", título que o deixa próximo da importância literária de um consagrado Philip Roth. Com a obra Liberdade (que penso em ler no futuro), este norte-americano de Illinois ganhou uma enorme projeção internacional que teve a força de trazer novamente ao mercado as edições de seus romances anteriores – dentre eles, Tremor, seu segundo trabalho.


Sinopse: Louis Holland chega a Boston numa primavera de acontecimentos estranhos – uma série de terremotos de origem suspeita atinge a cidade, e o primeiro deles mata a sua avó postiça, uma guru new age milionária. Durante a disputa pela herança, Louis se apaixona por Renée Seitchek, sismóloga brilhante que o ajudará a descobrir a verdade por trás dos abalos, mas os dois pagarão um preço alto por sua curiosidade ao desvelar os segredos de uma indústria química poderosa.


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Tremor é um exemplar perfeito daquilo que eu costumo chamar de obras "trans-gênero", que não pertencem na essência a nenhuma classificação exclusiva – sendo, antes, a mistura de dois ou mais gêneros tradicionais. Na realidade, grande parte da produção cultural de hoje (principalmente no cinema) está aderindo a essa corrente da quebra de gêneros. Neste livro, por exemplo, Franzen faz uma mistura totalmente equilibrada e lúcida de drama com thriller, o que no final das contas acaba agradando tanto os leitores que gostam de profundidade psicológica quanto os que gostam de enredos agitados por tramas corporativas, cheias de ação e espionagem. E ele faz isso costurando todo o eixo central com uma tocante e sensível história de amores incertos, paixões e laços familiares.

Lendo Tremor o leitor chega à conclusão de que Franzen faz parte daqueles escritores que adoram escrever, adoram contar histórias dentro de histórias e adoram explorar por todos os lados os dramas existenciais de seus personagens, o que inclui também fazer uma ou outra digressão extensa sobre o modo de vida na América. Franzen é um daqueles escritores que, em cada romance que escreve, procura retratar tudo o que existe no mundo, todas as situações prováveis e improváveis, todas as emoções e sentimentos, todas as reflexões sobre os mais variados assuntos. Neste livro que terminei de ler hoje, encontramos uma história que é perpassada por uma miríade de temas tão díspares quanto pode parecer à primeira vista a questão do aborto e a produção de conhecimento científico.


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Franzen: romances de temas amplos com foco nas relações humanas


Uma das coisas que mais agradam na escrita de Jonathan Franzen é que ele não subestima a inteligência do leitor. Com frases às vezes bastante floreadas, incertas, metafóricas demais (mas nunca incompreensíveis), o seu texto dá ao leitor a prazerosa sensação de estar sendo posto para refletir. Repleto de diálogos extremamente memoráveis (a começar pela visita que Louis faz à irmã, Eileen, logo no começo do livro), Tremor se consolidou na minha mente como um romance do qual sempre vou lembrar quando me encontrar em situações parecidas com as que os personagens viveram.

Embora um dos eixos principais do livro seja a investigação que Renée e Louis levam a cabo ao longo de boa parte da trama, o que sustenta o romance está longe de ser apenas esse detalhe. Em Tremor, o verdadeiro sumo da obra está nas relações entre os personagens, relações de amor, paixão, amizade, de família e de tudo. No fundo, Tremor não passa de um novelão, um novelão com qualidade e com uma série de eixos secundários interessantes. (Não posso deixar de mencionar aqui como as páginas 237, 238, 239, 240 e 241 fizeram um retrato assustadoramente preciso de uma situação de vida pela qual eu passava no momento da leitura.)

Resumidamente, é difícil escrever uma resenha coerente sobre um livro tão amplo e diversificado como Tremor, que abarca temas e assuntos tão diferentes e tão sensíveis, coisa que só quem lê na hora é capaz de entendê-los e aproveitá-los. Mesmo assim, fica a minha recomendação para quem pretender ler um livro memorável e muito significativo nos próximos tempos. No mínimo, o que você recebe em troca é a garantia de uma leitura riquíssima em entretenimento; no máximo, um romance que fica para sempre na memória.

11 setembro 2012

Aquecimento: "A arte de viajar", de Botton

"Uma obra elegante e sutil, sem igual. Encantadora."

The Times

Para que o Gato Branco não fique de novo sem uma atualização por mais de 20 dias (coisa que, detesto admitir, vem ocorrendo com certa frequência), venho aqui compartilhar as primeiras impressões de uma das futuras leituras que pretendo realizar nos próximos meses; uma leitura que, sobretudo, promete uma deliciosa viagem literária que envolve reflexões sobre arte, filosofia, cultura e, claro, mochilão nas costas.

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Contrariando minhas expectativas de começar a estudar a sério nos próximos meses, acaba de chegar pelo correio este belíssimo livro do escritor suíço (mas crescido na Inglaterra) Alain de Botton: A arte de viajar. Presente de minha mãe! Pela lida que dei na sinopse da orelha e pela folheada sagrada que costumo dar nos livros antes de começá-los de fato, pude ver que Botton mistura aqui relatos pessoais de viagem com reflexões extremamente agradáveis sobre música, pintura e filosofia – criando, assim, um caderno riquíssimo de experiências de vida que ele apresenta ao leitor. O livro já havia sido lançado pela Rocco em 2003, mas agora ganha novo tratamento pela Editora Intrínseca.

A edição é linda, com dezenas e dezenas de fotografias em preto e branco, gravuras antigas e ilustrações clássicas, além de quadros de autores como Van Gogh e Loutherbourg – só para citar dois. No meio desse caleidoscópio de imagens de extremo bom-gosto e muito bem selecionadas, há a prosa elegante e requintada de Botton, reflexiva, ampliadora, que faz um passeio incrível de corpo e alma com o leitor. Fica a recomendação para quem está procurando um livro bom. Aliás, fica aqui a prova da sua qualidade: em magros cinco minutos, li a esmo uns poucos parágrafos que me deixaram uma impressão indelével, além de uma forte ideia para meditações. Eis um desses fragmentos que pesquei em pouco tempo, com apenas algumas rápidas passadas de página:

(...) vi pela primeira vez o Homem por meio de objetos grandes ou belos; pela primeira vez comunguei com ele com a ajuda deles. E assim fundou-se uma proteção e defesa seguras contra o peso da perversidade, as preocupações egoístas, modos rudes, paixões vulgares que nos agridem por todos os lados do mundo ordinário em que transitamos diariamente.

- William Wordsworth


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Alguém consegue adivinhar de quem é esse quadro reproduzido aí, na parte inferior da página direita? Boa leitura para todos! :)

27 agosto 2012

Filme: A Vila

Excelente para refletir, profundo em sua ambição e – como às vezes acontece na história do cinema – injustiçado.

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Depois de quase oito anos tentando convencer meus amigos de que o filme A Vila (The Village, 2004) estava longe de ser o monótono e decepcionante suspense classe B que eles acharam que era, agora chego aqui no Blog para formalizar todas as minhas opiniões sobre o longa-metragem de M. Night Shyamalan – sobre o genial longa-metragem deste talentosíssimo cineasta, que hoje em dia, infelizmente, anda abrindo mão do estilo que o consagrou no início da carreira.

Como a crítica especializada teima em reconhecer, os primeiros filmes de Shyamalan produziram uma espécie de ruptura na tradição norte-americana do gênero de suspense, ao introduzir fortes elementos dramáticos nos enredos que conduziam as ações de seus personagens. O intuito principal de Sinais, por exemplo, além de ser o de provocar sustos e calafrios no público, era o de deixar o espectador refletir um pouco sobre vários conceitos da vida e da religião, de um modo geral, como fé, esperança e amor. Esses ingredientes diferenciados davam aos primeiros filmes do diretor indiano uma boa dose de originalidade e, sobretudo, qualidade, numa época em que os longas do gênero seguiam basicamente as mesmas fórmulas e composições consagradas.

A Vila, quarto filme de Shyamalan, é um dos melhores a que já assisti em todos os tempos, de todos os cineastas que admiro. Duramente criticado pelo público e pela mídia, este pode ser considerado formalmente como o primeiro fracasso do diretor – o que o levou a hesitar e a errar a mão em filmes posteriores, como foi o caso do fraco Dama na água e do ambíguo Fim dos tempos. Apesar de uma parcela enorme dos cinéfilos detestar A Vila, há pessoas que, como eu, lutam pelo reconhecimento da qualidade indiscutível das ideias que orbitam ao redor da trama deste filme.


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Um dos cartazes do filme que privilegiam o silêncio e o mistério


A primeira coisa que me faz admirar imensamente A Vila é de ordem técnica. Duas coisas, na verdade: a fotografia conduzida por Roger Deakins e a direção geral de Shyamalan (a movimentação da câmera, o cenário, a inserção de novos elementos no momento correto etc.). O resultado dessa combinação intrínseca é o visual fantástico que faz o filme funcionar e arremessa o espectador para a atmosfera desejada. Aliás, todos os filmes do cineasta indiano têm essa qualidade tão patente: o visual dinâmico, o movimento original. A cena em que o personagem Noah crava uma faca na barriga de Lucius é soberba, não pelo seu conteúdo em si – já bastante notável –, mas pela composição original dos quadros.

A segunda coisa que me encanta em A Vila é, naturalmente, o enredo e, principalmente, a ideia geral do filme. A propósito, costumo dizer que metáforas e alegorias são aquilo que A Vila possui escondido na manga, cuja cartada é dada nos momentos finais, quando o espectador finalmente compreende a dimensão das propostas do filme: a coerção de autoridades, o poder político, a perpetração de um estado de medo como controle social, a influência da superstição no comportamento humano, a alienação, a exclusão comunitária, a violência nos grandes centros urbanos, dentre outros temas suscitados muito nitidamente ao longo da obra.


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M. Night Shyamalan: filmes de suspense que vão além dos sustos


Boa parte das pessoas não gostou do filme porque, segundo o que elas mesmas me relataram (e pelo que pude ler em diversos sites), o final foi decepcionante e os momentos em que os bichos de fato aparecem são poucos e bobos. Admito que elas têm o direito de encontrar nisso um argumento plausível, mas, para mim, é justamente a surpresa do final "decepcionante" que faz de A Vila um grande filme, capaz de desconstruir o gênero no qual se insere e colocar o espectador para pensar por conta própria. Aliás, esta é uma das características fundamentais dos primeiros filmes do diretor: respeitavam a inteligência do público, forçavam uma reflexão, estabeleciam conexões com temas cotidianos que envolvem a todos nós, indo muito além dos simples barulhos-altos-que-provocam-sustos.

De todo modo, resumo esta situação em algo mais simples, que não entra no mérito da inteligência de quem assiste ao filme. Em determinados momentos da nossa vida de cinéfilo, somos levados a querer dos filmes de suspense algo mais que sustos, arrepios e calafrios: uma história bem montada, uma história mais profunda, atuações boas, eventos surpreendentes, como em Hitchcock. Isso acontece também com os filmes de comédia, em especial: de vez em quando cansamos de olhar para as caretas de Eddie Murphy e vamos à procura de uma comédia inteligente que atice nossos neurônios. E A Vila se encaixa justamente nessa categoria, nessa ordem de filmes a que assistimos porque estamos à procura de algo mais. A Vila é diferente, um longa-metragem de suspense ambicioso, que, para as pessoas que se interessam em traçar alegorias e reflexões depois de sair do cinema, é extremamente bem-vindo.

06 agosto 2012

O Elogio ao Ócio, de Bertrand Russell

"As desgraças públicas e privadas só podem ser dominadas por meio da interação entre a vontade e a inteligência." (p. 46)

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Se debruçar sobre os artigos e ensaios que envolvem a Teoria do Ócio sempre é uma atividade muito enriquecedora e empolgante, na minha opinião. Primeiramente porque o ócio, tal como a maioria dos estudiosos no assunto o formulam, é uma das necessidades mais intrínsecas ao ser humano – não para mantê-lo vivo biologicamente falando, mas para preservar sua saúde mental e mesmo corporal. Em segundo lugar, estudá-los é empolgante porque uma enorme parte dos teóricos do ócio escreve de forma tão agradável, tão limpa e direta, que entrar em contato com eles é sempre muito bem-vindo.

Minhas atividades de pesquisa na Universidade de Fortaleza fazem referência ao estudo da Teoria do Ócio no mundo contemporâneo, dentro de um contexto que envolve Lazer, Trabalho e Tempo Livre. Como dá para imaginar, é um campo de estudo muito próximo da realidade fora dos muros do campus, justamente porque tende a analisar tudo aquilo que fazemos quando estamos inseridos no cotidiano comum, trabalhando ou curtindo nosso tempo livre.

Com o intuito de aprimorar um pouco mais o conhecimento que tenho a respeito do Ócio, aluguei da biblioteca da Universidade o livro O Elogio ao Ócio (In Praise of Idleness, 1935), do escritor Nobel de Literatura Bertrand Russell, um inglês muito culto que, em sua época, tinha autoridade para falar de quase todos os campos que envolviam as atividades humanas.


Sinopse: O filósofo Bertrand Russell analisa os problemas sociais do século XX nos ensaios que compõem este livro, cujo propósito é o de lutar por um mundo em que todos possam se dedicar a atividades agradáveis e compensadoras, usando seu tempo livre não só para se divertir como também para ampliar seu conhecimento e capacidade de reflexão.


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O Elogio ao Ócio é um livro que pretende levantar discussões sobre vários pontos sociais e científicos presentes na sociedade da época em que ele foi escrito. Na verdade, é um conjunto de 15 ensaios, e seus temas variam desde a discussão sobre a origem do fascismo até a leve reflexão sobre a ameaça dos insetos para os seres humanos. Há textos longos e textos muito pequenos, todos escritos de forma limpa, sem excessos teóricos e sem intenções científicas muito profundas. Acima de tudo, trata-se da visão de mundo que Bertrand Russell adquiriu ao longo de sua vida e que resolveu compartilhar com os seus leitores – acreditando, não sem razão, que estava contribuindo para a construção de um mundo melhor.

Se eu tivesse que resumir a ideia central do livro de Russell em poucas palavras, diria que ele tem como objetivo mostrar a importância da reflexão antes do movimento: a importância que existe no ato de ponderar antecipadamente sobre as nossas atitudes e, assim, pensar a longo prazo, atendendo melhor às necessidades coletivas. Ele procura mostrar basicamente como conseguimos chegar a um ponto em que aparentemente não raciocinamos mais sobre o que fazemos, especialmente no nível econômico e político: estamos apenas seguindo a linha de algo que foi começado há muito tempo e que não funciona mais hoje em dia.


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Mas o que acontecerá quando se chegar à situação em que o conforto seja acessível a todos sem a necessidade de tantas horas de trabalho? (…) Essa ideia choca as pessoas abastadas, que estão convencidas de que os pobres não saberiam o que fazer com tanto lazer (p. 30)


Os dois primeiros ensaios da obra foram os que mais me chamaram a atenção, talvez porque sejam os que mais têm a ver com o que pesquiso atualmente. São eles O Elogio ao Ócio (que dá título ao livro) e O Conhecimento "Inútil". No primeiro, Russell elabora uma conexão prática entre o tempo de trabalho e o tempo livre, no qual, em uma sociedade ideal, as pessoas tratariam de fazer florescer suas inclinações para a arte e a cultura de um modo mais genuíno. Segundo o autor, numa sociedade que reduz a jornada de trabalho para quatro horas diárias (e ele diz que hoje é possível reduzi-la para tal), as pessoas não chegariam em casa exaustas do labor cotidiano, e, assim, estariam mais propensas a realizar atividades nas quais sentissem pleno prazer, em vez de serem meras telespectadoras passivas da televisão. Essas (e muitas outras) reflexões são apresentadas no texto-título do livro.

Em O Conhecimento "Inútil", por sua vez, Russell critica o senso de educação utilitária que hoje permeia uma parcela gigantesca das escolas e até mesmo das universidades do mundo. Segundo ele, as crianças geralmente são condicionadas a aprender e a valorizar somente aquele conhecimento técnico que, no futuro, será útil em sua escalada social, garantindo-lhes um emprego que, de tão especializado, destaca-as das demais. Sem espaço para descobrir outras maravilhas do mundo que não somente as "úteis", as crianças não estão sendo encorajadas a cultivar um senso exploratório de pesquisa, e isso as leva na maioria dos casos a aceitar o que os professores lhe impõem como a única verdade que interessa.


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Eu acho que se trabalha demais no mundo de hoje, que a crença nas virtudes do trabalho produz males sem conta e que nos modernos países industriais é preciso lutar por algo totalmente diferente do que sempre se apregoou. (p. 23)


E assim os demais ensaios vão sendo apresentados: sempre muito críticos, sempre apontando falhas na estrutura social e econômica sem rodeios, sempre muito bem escritos e articulados – o que rendeu ao autor popularidade não somente na Inglaterra e na Europa, mas em várias partes do globo, como Ásia e África. Embora Russell apresente aspectos de apologia a uma sociedade que beira a utopia em sua perfeição funcional, suas ponderações e sugestões devem ser encaradas como práticas, como possibilidades concretas, que não se encontram no plano do impossível.

O Elogio ao Ócio é, portanto, um livro multi-temático, que discorre não somente sobre as experiências de ócio e saúde mental, mas também sobre quase todas as vertentes da produção humana. Escrevendo com leveza e grande autoridade sobre tudo o que critica, Bertrand Russell firma-se como um dos grandes intelectuais políticos que existiram no século XX, atento às demandas de uma sociedade que, naquela época, seguia com rigor os preceitos do imperialismo capitalista moderno. Leitura recomendada para quem deseja lançar um olhar eclético sobre os problemas do que mais tarde viria a ser a base da chamada pós-modernidade.

Bertrand Russell foi agraciado com o Prêmio Nobel de Literatura em 1950, em reconhecimento à excelente desenvoltura com que lidava com diferentes campos do conhecimento humano.

30 julho 2012

Claraboia, de José Saramago

"A vida deve ser interessada, interessada a toda a hora, projetando-se para lá e para além." (p. 252)

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José Saramago tinha pouco mais de 30 anos de idade quando finalizou a redação de um romance intitulado Claraboia (1953). Pode-se dizer que ele já gozava de certo reconhecimento como escritor nessa época, ainda que mínimo, uma vez que publicara um romance (Terra do pecado, de 1947) e alguns contos curtos em revistas e jornais portugueses – nos quais às vezes utilizava um pseudônimo, "Honorato".

Auxiliado por um amigo jornalista, Saramago conseguiu que seu romance recém acabado fosse parar nas mãos de uma editora de Lisboa. Ansioso por vê-lo logo publicado e ganhar as livrarias, deixou o original lá e aguardou uma resposta – que nunca veio. Os editores não entraram mais em contato com o futuro prêmio Nobel de Literatura, nem para lhe dizer que o livro não seria publicado por eles. E o datiloscrito original de Claraboia permaneceu, dessa maneira, esquecido dentro de um arquivo durante quase três décadas.

Em meados dos anos 1980, José Saramago – agora um dos nomes mais importantes da literatura mundial – recebeu um comunicado da mesma editora que o havia deixado sem resposta no passado. Haviam encontrado o livro de 1953 perdido nas gavetas dos editores e queriam a permissão do autor para publicá-lo. Ouviram um convicto "Não" de Saramago – seja porque o romance não mais correspondia à sua visão de mundo, seja porque ele ficou ressentido, mesmo, como qualquer escritor ficaria ao ver um de seus primeiros filhos ser tratado com tanta vulgaridade.

O fato é que terminei de ler este livro hoje, e agora venho aqui compartilhar com vocês minhas impressões sobre ele.


Sinopse: Um prédio de seis apartamentos numa rua modesta de Lisboa é o cenário principal das histórias simultâneas que compõem este romance da juventude de José Saramago. Os dramas cotidianos dos moradores – donas de casa, funcionários remediados, trabalhadores manuais – tecem uma trama multifacetada, repleta de elementos do consagrado estilo da maturidade do escritor, em especial a maestria dos diálogos e o poder de observação psicológica.


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Claraboia, segundo romance de José Saramago, foi publicado aqui no Brasil em 2011 pela Companhia das Letras, com a autorização dos herdeiros do autor – para os quais ele concedera o direito sobre a obra. A verdade é que a decisão de trazê-lo a público foi mais que sensata e, sobretudo, um verdadeiro presente aos leitores que conhecem a qualidade da bibliografia deste português tão notável. Em Claraboia temos uma grande amostra do que Saramago foi em sua iniciação à literatura, em seus primeiros passos como escritor. A obra é simplesmente recomendadíssima: obrigatória para os fãs do autor português e uma sugestão apetitosa para quem gosta dos romances urbanos escritos na primeira metade do século XX.

Servindo-se da famosa técnica do contrapontoiniciada por Aldous Huxley no romance que deu nome a este estilo literário –, Claraboia não possui personagem principal e nem enredo único: é um livro que conta a história de seis núcleos familiares situados em um prédio pequeno e modesto de Lisboa. Cada capítulo narra, de modo progressivo, os pequenos dramas de cada conjunto de personagens: cada capítulo se detém no que acontece aos moradores de um apartamento específico.

Às vezes as histórias se tocam, mas esse toque é muito leve, por assim dizer, e o romance todo se mostra fiel ao que acontece na vida real: embora haja seis apartamentos um ao lado do outro no mesmo edifício, as pessoas que neles habitam raramente entram em contato entre si – permanecendo, na maior parte do tempo, isoladas em seus próprios territórios. E quando esses dramas se cruzam, não se pode esperar outra coisa que não falsidade e jogo de aparências.


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"Quando fores crescido, hás de querer ser feliz. Por enquanto não pensas nisso e é por isso mesmo que o és". (p. 104)


Claraboia segue o ritmo e a ideia geral dos romances urbanos escritos entre 1920 e 1950: retratos vivos do cotidiano citadino, mosaicos nos quais são destacadas certas personagens que compõem alguns dos tipos mais comuns naquela época: o trabalhador artesanal que vive sua vida simples e feliz com a esposa (Silvestre), o empresário inescrupuloso e pervertido para o qual os fins justificam os meios (Paulino Morais), o senhor de família honrado e correto (Anselmo), a adolescente sonhadora que está tirando o pé da inocência da infância (Maria Cláudia) e a prostituta bela que guarda noções de respeito e bom-senso (Lídia), além de tantas outras figuras que aparecem na obra. A propósito, qualquer semelhança com as personagens de Caminhos cruzados, de Erico Verissimo, não é mera coincidência: ambos os romances floresceram na mesma época e são, portanto, reflexos da mesma sociedade.

Minha avaliação em uma palavra: o livro é excelente. Foi uma das melhores leituras que fiz neste ano. Embora o conteúdo de Claraboia seja aparentemente simples e suas personagens sejam todas moldadas em estereótipos já vistos na literatura da época, o romance consegue cativar e fazer refletir bastante – principalmente nos capítulos em que o sapateiro Silvestre e o andarilho Abel discutem alguns princípios humanos de conduta. De um modo geral, o livro é extremamente prazeroso de se ler, muito bem escrito. E como é surpreendente ver Saramago usando travessões nos diálogos! Sim: estamos falando de Saramago, o sujeito que escreve parágrafos de páginas e páginas, diálogos emendados uns nos outros… Aqui utilizando a mais convencional das escritas, com todas as pontuações adequadas!


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Um edifício simples na Lisboa da década de 1950: cenário do romance Claraboia


Considero sempre saudável entrar em contato com essas obras literárias que escancaram a vida diante dos olhos do leitor – a vida crua e mazelada do cotidiano real, cheia de incertezas, injustiças, desavenças e esperanças. E tentativas de se alcançar a tão almejada liberdade. Porque todos os personagens de Claraboia lutam, cada qual à sua maneira, para conseguir pôr as mãos nessa ideia que chamamos de liberdade. E ela aqui é retratada sob diversas facetas – isolamento, independência, poder, autoridade, significado. Afinal de contas, cada um dos personagens parece ter uma noção diferente do que seria a liberdade – mas todos a procuram com o maior dos esforços. Este foi um dos grandes pontos que o livro mostrou para mim: que, acima de tudo, acima mesmo da sugestão de felicidade, há a tentativa desesperada de ser livre. Mas livre de quê? De quem? São esses alguns dos questionamentos do romance.

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"A manhã estava clara, o céu limpo, o sol quente. Os prédios eram feios e feias as pessoas que passavam. Os prédios estavam amarrados ao chão e as pessoas tinham um ar de condenadas. Emílio riu outra vez. Era livre. Com dinheiro ou sem dinheiro, era livre. Ainda que nada mais pudesse fazer que repetir os passos já dados e ver o que vira, era livre." (p. 350)

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Nota: Quem sugeriu a leitura deste romance foi minha namorada, Gleici Centinari. Lemos juntos. A propósito, ler um bom livro em conjunto com uma pessoa que se ama é um exercício que devemos praticar regularmente! :)