Pesquisar neste Blog

29 dezembro 2009

O Prisioneiro, de Erico Verissimo

“No fundo, todos somos atores. Representamos vários papéis ao mesmo tempo. Uns mal, outros bem.” (p. 121)

O Prisioneiro Erico Verissimo

Hoje pela noite, depois de dar uma volta a pé pela cidade e voltar para casa com uma latinha de Pepsi na mão, eu finalizei a leitura da novela nacional O Prisioneiro (1967), escrita pelo romancista gaúcho Erico Verissimo durante a intervenção dos Estados Unidos da América na Guerra do Vietnã.

~~

Sinopse: Envolvido numa guerra fratricida em terra estrangeira, um tenente prestes a voltar a seu país presencia uma cena dramática: uma bomba destrói o bordel onde ele estava poucos momentos antes e mata a moça por quem se apaixonara. Um dos terroristas, capturado logo depois pelas forças aliadas, é um jovem de apenas dezenove anos cujas feições o remetem à amante morta. O coronel encarrega o oficial de interrogar o prisioneiro e descobrir o paradeiro de uma segunda bomba. Não há tempo a perder, e o tenente dispõe de duas horas para obter a verdade, por meios lícitos ou ilícitos de interrogatório.

~~

Como nos informa a sinopse da contracapa do livro, O Prisioneiro foi escrito para contestar e criticar a intervenção norte-americana na famosa guerra política (penso enquanto escrevo: Qual é a guerra que não é política?) do Vietnã, na qual o Vietnã do Norte (comunista) atacava violentamente o povo do Vietnã do Sul (capitalista), que se recusava a transformar-se em comunista após o conhecido plebiscito que obrigou o país a adotar a famosa Estrela Vermelha. Reconhecendo o perigo pelo qual seu sistema econômico passava, os EUA interviram na Guerra e tomaram partido do lado sulista.

O que está em jogo, percebe-se logo cedo, não é a vida dos milhares de civis e militares que estão entre o fogo cruzado, mas sim o destino do sistema político que seria adotado naquele país. Bombas de fabricação caseira são plantadas em hospitais, asilos, infantários e hotéis de luxo, e isso é interpretado pelos guerreiros apenas como uma espécie de sinal, como se o lado terrorista, autor desses atos macabros, simplesmente estivesse mostrando que possui mais poder.

Como ficção e entretenimento, O Prisioneiro é uma boa novela. Também elucida alguns detalhes e põe à mostra certas atrocidades que não podem ser esquecidas. Algumas passagens trazem à baila questões sobre o destino dos seres humanos em um mundo hostil, confuso e, em determinados momentos, acéfalo, burro.

No entanto, Erico Verissimo mexe em uma política delicada que, se analisada com certo levianismo, pode dar mal-entendidos. E foi isso o que aconteceu quando li O Prisioneiro; senti um certo desapontamento quando fechei o livro, lido em dois dias. Não é um desapontamento causado pela trama da história, nem pelo estilo de escrita do autor, e sim pelo ponto de vista que o escritor parece adotar e defender.

Fiquei com a desagradável sensação de que Erico Verissimo apoiou o lado comunista do Vietnã, que enfrentava os “brancos” norte-americanos com unhas e dentes para proteger o povo da sua terra contra os avanços do imperialismo estadunidense, mesmo que para isso se usasse meios nada decentes.

Só a título de ilustração: em certo momento da história, um guerrilheiro comunista é preso e interrogado por um sargento americano bruto e violento; o guerrilheiro é responsável pela implantação de uma bomba em um Bar/Café (que fez várias vítimas) e pela implantação de uma bomba cujo local ainda é ignorado. Ainda assim, mesmo com essa ficha criminal, Erico parece querer passar a mão sobre os cabelos do guerrilheiro e perdoá-lo, só porque ele “é um humano como todos nós.” Já o oficial norte-americano é narrado como um monstro. Não sei se isso encerra uma metáfora.

Mesmo assim, talvez Erico tenha querido transmitir a idéia de que somos todos humanos, sim, mas estamos inseridos nessa Engrenagem sistemática que nos disforma e suja. Mesmo assim: nenhum ato terrorista merece perdão, nem o de plantar bombas em bares nem o de ser violento para com um prisioneiro de guerra.

Por bem ou por mal… depois de ler este livro, cheguei à conclusão de que Erico Verissimo escreve melhor quando não toca em assuntos políticos delicados. A mensagem de O Prisioneiro para o leitor, por exemplo, é confusa.

~~

Talvez esta passagem da página 67 possa resolver tal questão que levantei acerca do lado que o autor apóia. (ou seja, nenhum)

É uma fala da professora, amiga do tenente:

“A idéia da existência de Deus não tem impedido que os homens, através de milênios, se tenham matado em guerras brutais. O importante, me parece, não é temer a Deus, mas amarem-se os homens uns aos outros… ou pelo menos não se odiarem tanto, a ponto de recorrerem à violência para resolverem problemas de coexistência.”

21 dezembro 2009

Incidente em Antares, de Erico Verissimo

"Há navios que andam por todos os mares da Terra, mas um dia encalham, enferrujam e se resignam a não continuar a viagem." (p. 164-5)

 Incidente em Antares Erico Verissimo

Ontem pela tarde, antes de trocar a água do aquário da Mila (meu peixe-espada), eu finalizei a leitura do romance nacional Incidente em Antares (1971), a última ficção escrita pelo gaúcho Erico Verissimo. Depois disso, o escritor apenas redigiu uma biografia (Um Certo Henrique Betarso) e as suas próprias memórias (Solo de Clarineta, Vol. 1 e 2), inacabadas.

~~

Sinopse: É 11 de dezembro de 1963. Há uma greve geral em Antares. O fornecimento de luz é interrompido, os telefones não funcionam mais, os coveiros encostam as pás. Dois dias depois, uma sexta-feira 13, sete pessoas morrem – entre elas, d. Quitéria, matriarca da cidadezinha.

Insepultos e indignados, os defuntos ganham vida e resolvem agir: querem ser enterrados. Reunidos no coreto principal da cidade, decidem empestear com sua podridão o ar da cidade. Enquanto ninguém os enterra, porém, resolvem acertar as contas com os vivos e passam a bisbilhotar e infernizar a vida dos familiares.

Como os personagens são cadáveres – livres, portanto, das pressões sociais – podem assim criticar violentamente a sociedade em que vivem e esfregar no rosto dos vivos todas as misérias humanas que os homens corruptos praticam.

~~

Confesso que, embora a sinopse supracitada sempre me parecesse interessante, não era a minha intenção ler este livro. Depois de me deliciar com todas aquelas aventuras humanas narradas no ciclo dos romances urbanos de Erico, Incidente em Antares – um romance político que critica a ditadura – me pareceu enfadonho e fora do círculo de coisas que eu chamo de empolgantes. Política nunca foi uma coisa que me chamou a atenção. A ditadura… muito menos.

Foi então que ganhei um cartão-presente da livraria que mais visito nos finais-de-semana. O valor do cartão era compatível com o valor do livro (edição de bolso, note-se bem). Pensei na possibilidade de adquiri-lo e finalmente decidi: Se eu não gostar do livro, pelo menos ele me saiu de graça.

Incidente em Antares é dividido em duas grandes partes. A primeira, “Antares”, narra os primordiais acontecimentos e circunstâncias que tornaram possível o surgimento da comunidade que dá nome à história. Nessa primeira parte é narrada toda a rivalidade que recai sobre as famílias Vacariano e Campolargo – a primeira, já fixada na região há muitas décadas, teve de enfrentar a segunda, que imigrou com pompa para Antares e pôs em risco a hegemonia vacariana. As duas famílias simplesmente se odeiam através de um ódio de morte, e isso gera pano de fundo para muitas situações engraçadas e, claro, terríveis assassinatos.

Até então, o livro é ótimo. Percebe-se que Erico não perdeu nunca a técnica do estilo que o consagrou na década de 30, e, embora entre o ciclo de romances e Incidente em Antares haja quase quarenta anos, as semelhanças entre as duas fases de sua obra são nítidas.

Entretanto, o momento enfadonho do livro começa cedo. Para ser mais preciso, eu diria que começa na página 46, capítulo 22. É aí que Erico Verissimo começa a traçar todo um panorama da vida política brasileira, desde a ascensão de Getúlio Vargas, passando pelos feitos de Juscelino até a tomada do poder por João Goulart. Embora haja uma trama ficcional por trás disso tudo – protagonizada por Tibério Vacariano –, a narrativa não me empolgou devidamente.

Pensei: Erico é Erico. Vou fazer um esforço.

Valeu a pena. Depois de algum tempo e várias páginas, a empolgação de novo bate à porta e o livro toma um rumo incrível, fantástico, em todos os sentidos desta última palavra. Naturalmente, como não é do feitio do Artigos Efêmeros (nem do meu feitio), não vou contar nenhuma revelação de enredo. Mas uma coisa é certa: o leitor volta a se empolgar com a narrativa antes mesmo da metade do livro. A segunda parte, “O Incidente”, é maravilhosamente ácida e cômica, sem nunca perder o bom-senso.

Quanto à crítica à ditadura… acho que não posso falar muita coisa a respeito. Não vivi naquela época. Não sei muito bem que tipo de coisas ocorriam naqueles tempos. Não posso saber se realmente eram tempos tão terríveis como dizem os mais velhos. Mas uma coisa é certa: é uma boa crítica, essa feita em Incidente em Antares.

~~

Abaixo, um dos muitos trechos interessantes de Incidente em Antares, que trata de forma metafórica o surgimento de uma mentira.

“Nasciam em Antares os boatos mais desencontrados. Ora, um boato é uma espécie de enjeitadinho que aparece à soleira duma porta, num canto de muro ou mesmo no meio duma rua ou duma calçada, ali abandonado não se sabe por quem; em suma, um recém-nascido de genitores ignorados. Um popular acha-o engraçadinho ou monstruoso, toma-o nos braços, nina-o, passa-o depois ao primeiro conhecido que encontra, o qual por sua vez entrega o inocente ao cuidado de outro ou outros, e assim o bastardinho vai sendo amamentado de seio em seio ou, melhor, de imaginação em imaginação, e em poucos minutos cresce, fica adulto – tão substancial e dramático é o leite da fantasia popular –, começa a caminhar com as próprias pernas, a falar com a própria voz e, perdida a inocência, a pensar com a própria cabeça desvairada, e há um momento em que se transforma num gigante, maior que os mais altos edifícios da cidade, causando temores e até pânico entre a população, apavorando até mesmo aquele que inadvertidamente o gerou.” (p. 127-8)

~~

edição:

VERISSIMO, Erico. Incidente em Antares. São Paulo: Cia. das Letras. (2006)

16 dezembro 2009

A Última Estação, de Jay Parini

“Tentou localizar o seu costumeiro medo da morte e não conseguiu. Onde estava a morte? (…) Não sentiu medo algum, porque a morte não existia.” (p. 397)

A Última Estação Jay Parini

Hoje, pelo final da tarde, finalizei a leitura do segundo livro da minha lista de férias: A Última Estação (The Last Station, 1991), escrito pelo norte-americano Jay Parini. Recorrendo aos diários de Tolstói, de sua família e de seus amigos, Parini remonta, na forma de romance, os últimos e conturbados acontecimentos na vida do célebre escritor russo.

~~

Sinopse: O ano é 1910. Liev Tolstói é o escritor mais famoso de toda a Rússia e um dos mais lidos em todo o mundo. Mas, quase a chegar aos 82 anos, o autor de “Guerra e Paz” almeja apenas um pouco de sossego, longe dos repórteres e fotógrafos e dos conflitos no lar. Baseado nos diários daqueles que integraram o seu círculo mais próximo e também no legado do próprio Tolstói, este livro recria o último ano da vida do grande vulto das letras russas até aos derradeiros momentos que se seguem à sua dramática e desesperada fuga de casa, em outubro de 1910.

~~

Aclamado pela crítica e pelo público (elogiado inclusive por Gore Vidal como “um dos melhores romances históricos escritos nos últimos vinte anos”), A Última Estação ganhou recentemente uma adaptação aos cinemas, estrelada por Paul Giamatti (A Dama na Água) e Helen Mirren (A Rainha). Além disso, venceu o prêmio George Washington Kidd Award e foi editado em mais de 20 países.

Deve-se admitir: o livro merece essa pompa toda. Jay Parini reconta, com uma grande fidelidade aos fatos e com uma notável força narrativa, um dos mais intrigantes e surpreendentes episódios da vida literária: Liev Tolstói, de Janeiro de 1910 a Dezembro do mesmo ano, sofreu uma pressão psicológica fortíssima, proveniente de todos os lados – de sua irascível e implacável esposa, Sofia; de seu discípulo mais devoto e exigente, Tchertkov; de seu frágil estado de saúde; dos controversos filhos, Tânia, Sacha e Andrei, e de todas as outras pessoas que esperavam dele mais do que um homem aos 82 anos pode fornecer.

O livro prende tanto a atenção do leitor que, por incrível que pareça, consegui ler em um único dia nada menos que 185 páginas, o que é o meu recorde atual. Normalmente sou uma pessoa que lê 60, 70 páginas (no máximo) em um mesmo dia.

A intriga fundamental de A Última Estação é a seguinte: com a notável chegada de Tolstói aos seus últimos dias de vida, Sofia Andreiêvna, esposa do escritor, quer assegurar-se de que terá, para ela e para os filhos, todos os direitos autorais do marido, o que garantirá a vida econômica da família para sempre (para se ter uma idéia do que está em jogo: uma poderosa editora da época ofereceu a quantia de um milhão de rublos pelos direitos literários de Tolstói. Um milhão de rublos é mais do que podemos imaginar.) Sofia sente que merece tal recompensa do marido porque, nos seus primeiros anos de casados, era ela a pessoa que dedicadamente ajudava Tolstói a transcrever e a alterar seus manuscritos de, por exemplo, Guerra e Paz.

Mas Sofia Andreiêvna não está lutando à toa. Também com a intenção de pôr a mão no testamento de Tolstói está o dedicado e controverso discípulo Tchertkov, que alega que o maior gesto que o escritor poderá fazer para a humanidade é o de colocar todos os seus livros ao alcance do povo, transformando-os em total domínio público; e, conseqüentemente, não deixando um vintém para a esposa e para os filhos. Naturalmente, com este rumo de acontecimentos, Tchertkov sairá ganhando: terá a oportunidade de reeditar as obras do famoso escritor russo a seu bel-prazer.

Uma das características marcantes do livro é a narrativa polifônica, em que as várias personagens narram as suas impressões em capítulos diferentes, numa espécie de diário, fazendo o leitor oscilar entre aceitar os seus motivos particulares ou não. Essa é, mais ou menos, a mesma técnica utilizada em clássicos como Drácula, de Bram Stoker, e Frankstein, de Mary Shelley.

Em suma, A Última Estação fornece um entretenimento garantido e empolgante, além de encerrar uma série de informações valiosas sobre os derradeiros momentos de Liev Tolstói.

Especialmente recomendado aos fãs de romances históricos.

~~

Abaixo, dois dos trechos que achei mais interessantes.

“A maioria dos dias lembra outros dias. Vão-se enfileirando, ceifados pelo tempo. Não se lamenta muito sua perda. Mas alguns dias gloriosos se destacam na memória, dias em que cada momento brilha isoladamente, como seixos numa praia. Anseia-se para tornar a possuí-los e se lamenta a sua distância.” (p. 63)

“Em minha adolescência fui atraído para imagens e pensamentos indecentes. Percebo, agora, que a questão da decência é fictícia. É decente o tsar forçar jovens russos a matar jovens de outros países, das maneiras mais brutais? É decente a sociedade permitir que as pessoas morram de fome nas ruas, morram sozinhas, em miseráveis isbás, que vivam como ratos (…)? Mas a atividade sexual, a forma como homens e mulheres decidem combinar suas partes físicas, é completamente neutra. É, simplesmente, a energia empregada nisso – o tempo roubado do trabalho mental e espiritual adequado – que a torna vil.” (p. 121)

~~

PARINI, Jay. A Última Estação. Rio de Janeiro / São Paulo: Record. (1991)

Postado ao som de: Heat of the Moment, by Asia

09 dezembro 2009

Ganhando Meu Pão, de Maksim Górki

"(…) expliquei a ela que viver era muito difícil e aborrecido e que, lendo, se esquecia isso." (p. 213)

Ganhando Meu Pão Górki

Dando oficialmente início ao Projeto Leitura de Férias (PLF) deste fim de ano de 2009, li o livro russo Ganhando Meu Pão (V Liúdiakh, 1916), em que o escritor Maksim Górki narra as memórias de sua pitoresca adolescência no final do século retrasado.

Este livro já estava em minhas mãos há muito tempo (muito tempo mesmo! Comprei-o há quase seis meses), mas só agora, com o advento das férias e o conseqüente esmoreciemento das atividades acadêmicas, tive uma oportunidade de lê-lo em paz.

~~

Sinopse (Cosac Naify): Neste segundo volume de sua trilogia autobiográfica, Górki narra os seus anos de formação, os primeiros trabalhos, leituras e experiências sexuais, a vida em meio à brutalidade e à penúria de uma Rússia ainda patriarcal. Entre as lendas e histórias do folclore, contadas com talento literário pela avó analfabeta, e a prosa dos grandes autores do país, que o menino descobre com fascínio, Górki forjou um estilo único.

~~

Ganhando Meu Pão é um livro que, antes de tudo, deve ser lido com atenção. Não é como ler um Haruki Murakami, por exemplo, ou um Júlio Verne, ou ainda um Michael Crichton, em que a narrativa é tecnicamente fácil de ser digerida e não é necessário recorrer a inúmeras notas de rodapé. Neste romance de Górki, desfila por nós (brasileiros do século XXI) um mundo totalmente diferente do que estamos acostumados: vê-se uma Rússia do século XIX onde homens espancam esposas com naturalidade, batem em criados e apostam brigas no meio da rua, além de terem também outras atitudes que não condizem exatamente com aquilo que chamamos de congruente.

É difícil imaginar, por exemplo, alguém dormindo em cima de um fogão. Digo isso porque há umas passagens em que Górki diz que determinada patroa sua dormia sobre o fogão da cozinha – e eu não cansava de tentar imaginar algo viável, possível, como alguém dormindo sobre um forno ou algo parecido. Às vezes é difícil encarar certas passagens de textos com uma idade já bem avançada por causa disso: não temos uma idéia muito precisa dos costumes da época em que o livro se passa, e é comum ficarmos perdidos no meio da narrativa, sem saber o que imaginar de um mundo para o qual não fomos apresentados.

Sem contar com os nomes em russo, com os quais não estamos acostumados e que nos fazem confundir personagens ou até mesmo esquecê-los, o que é ruim. De qualquer modo, apesar de todos esses empecilhos (que não são culpa do livro, naturalmente) a linguagem ágil e fácil de Górki nos chama a atenção e não deixa que nos percamos. Isto é, vale a pela ler o livro. Quem tiver cogitando a idéia de comprá-lo, compre.

Maksim Górki teve uma adolescência bem intensa, podemos dizer; ele passou uma boa parte da sua vida alternando entre estar na casa dos avós, estar na casa dos patrões (servindo como empregado doméstico) e estar prestando serviços em navios que cruzavam o rio Volga. E é nesses três ambientes que a narrativa do livro se espalha.

Na sua primeira viagem de navio (que ocorreu depois de ter abandonado a faina na casa dos patrões), Górki conhece um tipo interessante chamado Smúri, que lhe ensina algumas lições sobre a vida e lhe incute o hábito da leitura, muito importante para o futuro do jovem Maksim. De volta à terra firme, ele vai outra vez trabalhar na casa dos patrões, que lhe reprimem o ato de ler e lhe dão cada vez mais trabalhos domésticos, na tentativa de tomar o seu tempo. No entanto, nessa época, Maksim Górki conhece duas mulheres interessantes (Rainha Margot e a esposa do contramestre), que emprestam a ele livros de toda sorte e, conseqüentemente, despertam nele ainda mais o gosto pela leitura. Mais tarde, Górki viria novamente a ingressar em um navio – e, novamente, voltar para a casa dos patrões. (Detalhe: isso não é spoiler.)

Bem feitas as contas, eu diria que Ganhando Meu Pão é um livro interessantíssimo, além de muito bem desenvolvido. As passagens poéticas também são dignas de nota. Não é à toa que transformou-se em um clássico do gênero. Aliás, é impressionante também a memória de Górki, fotográfica: ele conseguiu narrar com uma total precisão de detalhes algo que já estava em um passado bem distante!

Pude me identificar enormemente com algumas partes da vida do autor. Gostei de quando ele partia em suas viagens de navio, as conversas que tratava com as pessoas mais velhas e o discreto desprezo que tinha para com os adolescentes acéfalos da sua idade (tal como eu). Sem contar com a cena final, que achei muito bonita e interessante.

É provável que um dia eu ainda leia o primeiro livro da série, Infância. Dizem que é o melhor dos três. Quanto ao Minhas Universidades, não tenho tanto a intenção de lê-lo.

~~

Abaixo, alguns trechos que achei bem interessantes. Valeu a pena transcrevê-los.

“Duas pessoas viviam dentro de mim: uma delas, tendo conhecido demasiada imundície e ignomínia, assustara-se um tanto com isso e, acabrunhada com o conhecimento terrível das coisas de cada dia, passava a tratar com desconfiança, com suspeita, a vida, os homens, com uma piedade impotente em relação a tudo, inclusive a si mesma. (…) Esse homem sonhava uma vida quieta, solitária, com livros, sem gente perto (…).

O outro, batizado com o espírito santo dos livros honestos e sábios, observando a força triunfal do terrível cotidiano, sentia com que facilidade essa força podia arrancar a cabeça dele, esmagar o seu coração com o pé imundo, e defendia-se com esforço, cerrando os dentes, apertando os punhos, sempre pronto a qualquer discussão ou combate.” (p. 425)

Lindo trecho. Este também é ótimo:

“E tem-se tanta vontade de dar um bom pontapé em toda a terra e em si mesmo, para que tudo, inclusive eu, passe a girar num alegre turbilhão, na dança festiva de pessoas apaixonadas uma pela outra, por essa vida, iniciada em prol de uma outra, bonita, animosa, honesta…

Pensava: Tenho que fazer alguma coisa comigo mesmo, senão estou perdido…” (p. 436)

~~

GÓRKI, Maksim. Ganhando Meu Pão. São Paulo: Cosac Naify. (1916)

Postado ao som de: Sailing to Philadelphia, by Mark Knopfler

02 dezembro 2009

Os Aparados, de Leticia Wierzchowski

“Deus salvou o homem uma vez, mas a descendência de Noé não fez valer tal honra. Agora Deus perdeu a paciência.”

Os Aparados  Leticia W.

Hoje pela manhã, antes de começar a estudar alguns pontos de Análise do Comportamento que ficaram faltando, finalizei a leitura do romance nacional Os Aparados (2009), escrito pela gaúcha Leticia Wierzchowski, autora também do tão famigerado A Casa das Sete Mulheres.

~~

Sinopse (Record): Em um tempo não identificado, num mundo em agonia e totalmente alagado, personagens inesquecíveis vivem uma trama inquietante – e cheia de surpresas. Para proteger a neta adolescente – grávida de 7 meses – das catástrofes naturais que assolam a cidade grande, Marcus decide levá-la para um lugar afastado, no alto das serras gaúchas. Lá, o frágil relacionamento de avô e neta será testado, e os dois terão que aprender a ceder para sobreviver em um mundo à beira do caos.

~~

O livro possui 240 páginas e eu as li em três dias, o que é um grande feito. E poderia tê-las lido em menos tempo ainda, dois dias talvez, mas acabei estendendo em três mesmo por causa de uma esquisita e inesperada visita que recebi aqui em casa. De qualquer modo, quero dizer que, quando é lido em um fôlego só, Os Aparados fornece um excelente e empolgante entretenimento, tão empolgante que faz você virar página depois de página em um ritmo que nem percebe.

Os Aparados é tratado, desde o início, como uma história de fim de mundo. Mesmo assim, o leitor não pode se precipitar e esperar encontrar um livro em que catástrofes naturais medonhas são narradas, como ondas imensas inundando cidades inteiras, carros sendo arrastados pelas ruas e gente morrendo sem parar, à la 2012. Não. Se fosse para relacioná-lo com algum tipo de filme, eu diria que Os Aparados se parece bastante com Sinais, de M. Night Shyamalan. Os personagens são pouquíssimos, a trama é linear e – o que torna o livro original – o teor dramático, humano, é bem acentuado e restringido, ocupando o lugar da tragédia coletiva, tão comum nas histórias do gênero. Além de tudo, tal como em Sinais, em Os Aparados os personagens só têm contato com as catástrofes que acontecem lá fora através de noticiários dados na televisão.

No mundo lá em cima, nas serras gaúchas, enquanto Porto Alegre submerge lentamente nas águas do Guaíba, Marcus e Débora (os dois protagonistas) vivem seu drama dentro das quatro paredes do sítio isolado. Lá, embora o efeito das catástrofes quase não se faça notar, o que está em jogo é a relação avô/neta, uma relação frágil que revela um abismo entre os dois.

Uma das coisas que chamam a atenção em Os Aparados é a quantidade de elementos tecnológicos/modernos na história. Aliás, a tecnologia lá assume um papel crucial, principalmente para o personagem Arthur Medelli. Não se vê muito isso nos livros, essa coisa de colocar as pessoas usando laptops toda hora, iPods, sites de busca e até mesmo Orkut (ele é rapidamente mencionado em uma das páginas). Antes eu era um pouco avesso a essa idéia, mas agora vi que essa inserção de tecnologia popular na literatura pode ser bem aproveitada.

Bem, posso dizer que gostei muito do livro. Muito, mesmo. É um romance de história fácil, frugal, mas que faz o leitor pensar nas conseqüências do enredo. Os personagens ficam na mente por alguns dias, o que é agradável. E o suspense é sempre levado com habilidade através das páginas.

Os Aparados não é um livro pretensioso, mas eu já soube que em breve vai virar filme (aliás, ele já foi escrito com base no pedido de uma produtora de marketing). Tudo bem. A história tem um excelente potencial para o cinema. Se cair nas mãos de um diretor e de um roteirista competentes, pode se transformar em um muito agradável longa-metragem.

P.S.: A primeira coisa que eu me perguntei quando vi a capa do livro, ainda empoleirado na estante da livraria, foi: O que essa chave tem a ver com a história? Terminei a leitura e até agora não sei. A única explicação que tenho, e que acho mais coerente, é a de que a silhueta do corte da chave remete à silhueta das montanhas gaúchas. E, ainda, que o nome aparados, que remete ao nome das serras, lembra o modo como as chaves são feitas.

Aceito mais sugestões.

~~

Abaixo, um trecho interessante que destaquei.

“Ele se afasta pensando que tem que fazer alguma coisa. Sem saber para onde ir, segue no rumo do pomar. (…) Ele caminha pelo terreno íngreme, afundando os pés na terra fofa e úmida. Está nervoso. Não pode simplesmente ficar ali parado à espera de que os acontecimentos sigam seu rumo. Vai chover outra vez. Mais terra vai cair, isolando o alto da montanha: ele e a neta ficarão separados do mundo. É engraçado, foi isso o que sempre quis, sair do mundo. (…) Aquele mundo lá de baixo não serve mais, está podre, doente, exaurido. E, agora que aconteceu, sente medo. Este pequeno universo que criou é tão frágil quanto todo o resto.” (p.159)

~~

WIERZCHOWSKI, Leticia. Os Aparados. Rio de Janeiro/São Paulo: Record. (2009)

26 novembro 2009

Terra dos Homens, de Antoine de Saint-Exupèry

“Trabalhando só pelos bens materiais construímos nós mesmos nossa prisão. Encerramo-nos lá dentro, solitários, com nossa moeda de cinza que não pode ser trocada por coisa alguma que valha a pena viver.” (p. 25)

Terra dos Homens A. de Saint-Exupèry

Hoje pela manhã finalizei a leitura do livro Terra dos Homens (Terre des Hommes, 1939), escrito pelo francês Antoine de Saint-Exupèry. Sim, este mesmo: Saint-Exupèry, o autor do mundialmente venerado O Pequeno Príncipe. (Acho que eu sou a única pessoa na cidade que leu algo desse sujeito que não seja o seu tão famoso livro infantil.)

~~

Sinopse (Armando Nogueira): Saint-Exupèry tornou-se piloto civil aos 21 anos. Aos 26 integrou a equipe que foi sobrevoar o Saara e os Andes levando o correio aéreo da Europa para a África e a América do Sul. (...) Como devia ser a emoção de voar em aparelhos tão pequenos, contando apenas com a hélice e sem nenhuma presurização? É dessa emoção a matéria deste livro.

~~

A prateleira do meu quarto é composta por seis nichos diferentes; nos dois primeiros nichos de baixo, ponho os livros que venho comprando ao longo dos últimos anos. Nos últimos dois de cima, estão aqueles livros da família que são transmitidos de geração para geração, passados de mãos em mãos (das mãos do avô para as do neto, e assim sucessivamente). Certa noite, deitado na cama, olhei para esses dois nichos da minha prateleira, e vi, no meio de tantos volumes envelhecidos, um título: Terra dos Homens.

Um verdadeiro achado. Ele está na nossa família há anos, décadas mesmo, e, segundo me disseram, fora presente para o meu pai, dado por uma ex-namorada dele - em um tempo onde, note-se bem, as namoradas ainda davam livros de presente para os seus namorados. Isso confere ao livro um caráter mais pictórico ainda, creio. Peguei o volume lá de cima, quase caindo no ato, e deitei-me na cama para começar a lê-lo. No momento em que o abri, a capa se despregou e caiu das minhas mãos.

Terra dos Homens é um livro de memórias. Saint-Exupèry nos conta sobre o ofício de pilotar pequenos aviões-correio, cruzando os desertos da Arábia e os oceanos do sul da Europa. O texto todo é dividido em oito capítulos pequenos (A Linha, Os Companheiros, O Avião, O Avião e o Planeta, Oásis, No Deserto, No Centro do Deserto e Os Homens), todos eles trazendo-nos pequenas e despretensiosas lições, lições estas tão despretensiosas que podemos dizer que o autor nem cogitou em denominá-las “lições”.

A verdade é que Terra dos Homens é um livro que fala diretamente às nossas partes mais sensíveis, mais poéticas. É com um estilo do tipo haicai que Exupèry narra as suas aventuras aéreas pelo mundo, contando-nos desde a sua relação com um escravo (o qual mais tarde comprou apenas para libertá-lo), até a queda do seu avião no deserto das Arábias, onde ficou com o companheiro Prévot durante vários dias, morrendo de sede e tendo alucinações, até ser encontrado por um beduíno.

Para ser sincero, tenho pouca coisa a falar sobre este livro, com a exceção de que gostei imensamente dele. É um relato simples, frugal e, ao mesmo tempo, ricamente poetizado, cheio de frases que nos põe a refletir bastante. É o tipo do livro que deixa uma impressão indelével em nossa mente. A propósito, adorei o capítulo Oásis, onde ele nos conta sobre uma noite em que se viu convidado por um casal de estancioneiros a jantar em sua casa; lá, Exupèry fica como que hipnotizado pelas duas moças filhas do patriarca e pelo “império” que elas exerciam sobre os elementos naturais da casa, como as víboras que surgiam debaixo da mesa da sala na hora do jantar.

Nota 10.

~~

O livro é cheio de partes muitíssimo interessantes, e todas elas teriam o direito de estar aqui, mas transfiro para cá apenas uma única dentre todas elas:

“A vida nos separa dos companheiros e nos impede de pensar muito nisso. Eles estão em algum lugar, não se sabe bem onde (…).

Mas pouco a pouco descobrimos que não ouviremos nunca mais o riso claro daquele companheiro; descobrimos que aquele jardim está fechado para sempre. Então começa o nosso verdadeiro luto, que não é desesperado, mas um pouco amargo. Nada, jamais, na verdade, substituirá o companheiro perdido. Ninguém pode criar velhos companheiros. Nada vale o tesouro de tantas recordações comuns, de tantas horas más vividas juntos, de tantas reconciliações, de tantos impulsos afetivos. Não se reconstroem essas amizades. Seria inútil plantar um carvalho na esperança de ter, em breve, o abrigo de suas folhas.” (p. 24)

08 novembro 2009

Cidade de Ladrões, de David Benioff

"Teria sido um gesto sem sentido, (...) mas gestos sem sentido pareciam ser tudo o que nos tinha restado. (p. 248)"

CidadedeLadres_thumb1  D.Benioff_thumb1

Pelo início da tarde de hoje, depois de assistir à última produção cinematográfica de O Grande Gatsby, finalizei a leitura do romance norte-americano Cidade de Ladrões (City of Thieves, 2008), escrito pelo jovem talentoso David Benioff.

~~

Sinopse (minha): 2ª Guerra Mundial. Rússia sendo atacada por nazistas. Lev Beniov, protagonista deste romance que tem como pano de fundo eventos marcantes da História contemporânea, é um jovem tímido e solitário. Preso pelos russos por não respeitar o toque de recolher, acaba por dividir a cela com Kolya, um rapaz carismático, acusado de abandonar a frente de batalha. Para que não sejam executados, os dois recebem de um coronel uma missão aparentemente impossível: encontrar, na cidade gelada e sem alimentos, uma dúzia de ovos para que a filha do oficial tenha um bolo de casamento.

Em uma cidade onde as pessoas viram canibais e devoram pombos da rua para não passar fome, a idéia de encontrar 12 ovos parece impossível. E é para realizar esta missão que Lev e Kolya cruzam a Rússia em uma aventura inesquecível, marcante, onde a tal missão do coronel é apenas o fio condutor.

~~

Já fazia algum tempo que eu não me empolgava tanto com uma leitura. A última vez que eu me empolguei de verdade - tirando os romances de Erico Verissimo, nos últimos meses -foi no início do ano, talvez, lendo Kafka à Beira-mar, livro cujas quase 600 páginas foram devoradas em um fôlego erótico. Os livros que eu vim lendo ultimamente (repito: com a exceção de Erico) foram apenas passatempos frugais e despercebíveis.

Novembro não parece ser um mês que prometerá muitas leituras para mim (ando meio ocupado), mas, de qualquer forma, prometendo ou não, na última sexta-feira que precedeu o feriado de Finados eu estava sem a mínima idéia de que livros poderia comprar para me divertir na longa folga. Mas uma coisa era certa: eu queria ler. Então, quase inconscientemente, passei pela livraria mais próxima e, ainda com a mochila nas costas (eu havia acabado de voltar da universidade), me pus a percorrer as estantes da loja.

Foi por puro acaso que encontrei Cidade de Ladrões. Ele estava ali sobre aquela prateleira abarrotada, fora do seu devido lugar, largado a esmo por algum cliente ou funcionário desleixado. É engraçado como estas coisas acontecem: peguei o livro, muito pouco interessado, abri-o na primeira página e, como sempre faço, comecei a lê-la.

A linguagem ágil, elegante e precisa de Benioff logo me chamou a atenção. Li o prólogo inteiro ali em pé mesmo, minhas costas protestando contra o peso da mochila. Animado, levei o livro para o segundo andar da livraria, sentei-me a uma cadeira extremamente confortável (gosto de lá por causa dessa cadeira) e comecei a devorar o exemplar que tinha nas mãos. Só mais tarde me dei conta de que já havia ido longe demais na leitura e que, assim, poderia levá-lo para casa sem hesitar.

Cidade de Ladrões prende a atenção do leitor logo no início. Depois que você acaba de ler o prólogo e o primeiro capítulo, fica quase impossível largar o livro. Atenção: apesar de se tratar de uma história sobre o cerco nazista na 2ª Guerra Mundial, não espere um melodrama choroso ou um retrato mórbido da sociedade russa naquela época. Cidade de Ladrões é, antes de tudo, uma aventura intensa, marcada por um humor um pouco pesado (em grandes doses, pornográfico) e por momentos de reflexão e graça literária. As palavras que eu usaria para qualificar o livro são: Inteligente, divertido, leve, emocionante e original.

A dupla de protagonistas (Kolya e Lev) é tão carismática que pertence àquele grupo de personagens que ficam na nossa mente por anos a fio, se não para sempre. Lev, pela sua ingenuidade, medo e paixão; Kolya, pelo seu humor extraordinário e pela altivez das ações, como se nada daquele mundo em guerra lhe pertencesse realmente.

É um livro que comove, sim, mas a dose forte de emoção foi adiada apenas para as últimas páginas, o que revelou-se ser uma decisão acertadíssima do autor. Sem mais palavras, eu compararia este romance com o romance histórico Sangue Asteca, de Gary Jennings. Por alguma razão acho que os dois se parecem. É exatamente o mesmo estilo de aventura, a mesma opção de história.

Benioff é capaz de brincar com uma trama que, através da aparente simplicidade e da carga de questionamentos, comovem o leitor naturalmente, sem que para isso haja a necessidade de passagens clichês.

Livro nota 10, enfim. Estou aguardando o próximo lançamento de Benioff, coisa que, infelizmente, pode demorar um pouco, visto que o autor trabalha mais para o cinema (escrevendo roteiros) do que para a literatura. (Traduzam logo o seu A 25ª Hora, por favor!)

~~

Abaixo, um trecho do texto.

"Em pouco tempo atingimos o limite da cidadezinha. Saímos da estrada e corremos através dos campos congelados das fazendas, passando por silhuetas de tratores abandonados. Lá em Krasnogvardeysk podíamos ouvir o barulho de motores de carro acelerando e pneus com corrente rodando sobre a neve. Na escura distância à nossa frente podíamos ver a margem escura da grande floresta esperando para nos receber, para nos ocultar dos olhos de nossos inimigos." (p. 260)

25 outubro 2009

O Escafandro e a Borboleta, de Jean-Dominique Bauby

"Longe desse escarcéu, no silêncio reconquistado, posso ouvir as borboletas voando pela minha cabeça." (p. 105)

O escafandro e a Borboleta Jean D. Bauby

Na minha cabeça existe uma lista de histórias que mais me impressionaram e mais me inspiraram a viver uma vida de dedicação, esforço e altruísmo. Essas histórias ainda fizeram com que eu visse que os meus problemas mundanos, perto dos problemas extraordinários retratados nessas histórias, não são absolutamente nada dignos de nota.

Senão, vejamos...

Nessa minha lista está o verídico drama do Milagre dos Andes, em que um time de rúgbi teve de enfrentar as cadeias geladas de montanhas dessa cordilheira latina, após o seu avião chocar-se contra uma delas. Depois de 72 dias na neve, os rapazes conseguiram voltar para casa, não sem antes passarem por uma sucursal do inferno, onde a força de vontade e a fé teve de atingir o seu grau máximo para que a sobrevivência fosse possível.

Na mesma lista está a história famosíssima de Anne Frank, a adolescente alemã que, durante o período em que se manteve escondida com a família e alguns "amigos" em um prédio na Holanda, escreveu um diário que mais tarde se tornaria símbolo do Holocausto e da luta pela justiça, além de ser "um dos livros mais importantes do século XX", segundo o New York Times.

Continuando a seqüência da minha lista de "histórias humanas incríveis", temos a surpreendente aventura do norte-americano Christopher Johnson McCandless, jovem de família abastada que, embora de maneira um pouco equivocada e egoísta, abandonou o conforto de sua vida para ir trilhar os caminhos áridos do país, numa jornada de puro auto-conhecimento e simplicidade, onde a busca pela felicidade frugal reinava.

Pois bem. Devo dizer que, com o término da leitura do livro O Escafandro e a Borboleta (Le Scaphandre et le Papillon, 1997), essa minha lista de admirações ganhou mais um item.

~~

Sinopse: No dia 8 de dezembro de 1995, o redator-chefe da revista francesa Elle, Jean-Dominique Bauby, sofreu um terrível derrame cerebral que lhe deu uma das mais terríveis conseqüências prognósticas clínicas: todos os músculos do seu corpo ficaram paralisados e não permitiam o menor movimento, com a exceção de um - a pálpebra do olho esquerdo. E é com esta pálpebra que Bauby aprendeu a se comunicar com o mundo externo e, por fim, por incrível que pareça, conseguiu escrever um livro sobre a sua rotina no Hospital Becker, à beira-mar.

~~

Um feito extraordinário. Essas três palavras são capazes de resumir, de forma simples e precisa, a imagem de O Escafandro e a Borboleta. É um livro em que os limites do possível - como em muitas outras ocasiões que se vê por aí - são colocados à prova. Afinal de contas, como alguém que só consegue mexer a pálpebra do olho esquerdo pode escrever um livro de memórias?

"Simples" assim: um alfabeto distinto (em que as letras mais usadas do idioma são as primeiras) é ditado em voz alta para Jean-Dominique. Quando a letra pretendida por ele é proferida, Dominique pisca o olho uma vez. A letra é escrita então em um caderno à parte e a pessoa volta a ditar o alfabeto conveniente, desde o início, letra por letra. De súbito Dominique pisca o olho outra vez. E assim vão-se formando as palavras. E as frases. E as páginas inteiras.

Parece propício para nós imaginar que, pelo fato de se tratar de um escritor enfermo por uma debilidade tão devastadora, o relato de O Escafandro e a Borboleta seja constituído por uma espécie de telegrama mórbido onde as palavras são jogadas a esmo e o leitor que se vire para decifrar as derradeiras impressões de um doente tetraplégico como Bauby. No entanto, é um engano pensar assim. Este é um livro lindo e, muito mais que um simples relato funesto das semanas no hospital, é também um verdadeiro haicai de parábolas e pensamentos metafóricos escritos em linguagem viva e penetrante. Por sinal, às vezes passava pela minha cabeça o seguinte pensamento: Como é que o cara consegue manter uma calma tão estóica assim diante de uma guinada avassaladora em sua vida? Parece realmente ser algo que de fato não pertence ao mundo das coisas normais.

É claro que, apesar da aparente descontração narrada naquelas páginas, Bauby passa por momentos de melancolia bem difíceis. São situações cujas implicações realmente nos devem pôr para pensar. Por exemplo, o que dizer do momento em que Bauby vai passear pela orla da praia, de cadeira de rodas, em um dia de sol, na companhia da ex-mulher e dos filhos pequenos? Theóphile, o rapazinho, o contempla num mutismo doloroso; Celéste, a mocinha (mais nova que o irmão), limpa a boca babante do pai e lhe sorri de modo afetado. E Bauby reflete que é mais que horrível não poder passar a mão pelos cabelos dos filhos. Deve ser, mesmo.

Como muitas pessoas já devem saber, existe uma adaptação cinematográfica homônima deste livro. É uma produção francesa dirigida por Julian Schnabel (que foi indicado a melhor diretor pelo Cannes justamente por causa dessa obra) e produzida por Katheleen Kennedy (a mesma de Jurassic Park e O Curioso Caso de Benjamin Button).


Apesar de haver no filme muitos elementos largamente alterados ou fictícios - como naturalmente haveria de ser, já que seria uma história levada para os cinemas -, há também toda a gama de sensações que são encontradas no livro e que, de fato, são responsáveis por nos comover. Portanto, além do livro, recomendo o filme.

Em suma, como diria Elie Wiesel, O Escafandro e a Borboleta "conta como transformar dor em criatividade, sofrimento humano em milagre literário." Sem sombra de dúvidas, estamos diante de um livro incrível e altamente recomendado para aquelas pessoas que, sobretudo, amam a vida.

~~

Abaixo, segue-se uma passagem curta e aleatória do livro:

"É domingo. O sino badala gravemente as horas. Na parede, o pequeno calendário da Assistência Pública, cujas folhas vão sendo arrancadas dia após dia, já indica que é agosto. Por qual paradoxo o tempo, imóvel aqui, corre ali desenfreadamente? No meu universo encolhido as horas se espicham e os meses passam como relâmpagos. Não me conformo de estar em agosto. Amigos, mulheres, filhos se dispersaram no vento das férias." (p. 109)

A seguir, um pensamento muito interessante de Bauby, que (estranho) não se encontra no livro.

"Considero saudável estar só na maior parte do tempo. Estar acompanhado, mesmo pelos melhores, cedo se torna enfadonho e dispersivo. Adoro estar só. Nunca encontrei um companheiro tão sociável como a solidão. Estamos geralmente mais sós quando viajamos com outros homens do que quando permanecemos nos nossos aposentos. Um homem quando pensa ou trabalha está sempre só, deixai-o pois estar onde ele deseja; a solidão não é medida pelas milhas de espaço que separam um homem e os seus congêneres."

22 outubro 2009

Algumas palavras sobre o Twitter.

Twitter

Depois de uma longa conversa que tive hoje com alguns de meus amigos mais esclarecidos, e depois de ler um texto em um blog que elogiava copiosamente o Twitter, senti certo interesse -- e por que não dizer, certa necessidade -- em escrever algumas palavras sobre essa ferramenta da Internet que já rendeu milhões de usuários no mundo todo.

Antes de tudo, eu queria deixar bem clara a minha posição acerca do assunto. Porque às vezes eu falo quilos sobre uma coisa e, no final das contas, ninguém sabe se sou contra ou a favor da coisa em questão. Portanto, já vou logo adiantando que a minha posição sobre o Twitter é exatamente esta: não vejo criatividade nenhuma nesse sistema de "microblog" criado por um ex-funcionário do Google.

De qualquer forma, não estou aqui para bancar o céptico conservador extremista e criticar acidamente o passarinho azul só porque é algo novo a que as massas aderiram rapidamente, quase que sem refletir. Não quero, de modo algum (e que isso também fique bem claro), depredar o Twitter, nem criticar as pessoas que o utilizam, e nem criticar a necessidade que elas têm de se comunicar com outras pessoas. Não é esse o objetivo. Eu queria apenas dizer que, para mim -- e para muitas outras pessoas, sei bem -- o Twitter é um negócio inútil e nada criativo. Só isso.

Essa história de querer se comunicar virtualmente com outras pessoas, criando amigos à distância ou não, já é bem antiga. Na verdade, a sua origem se confunde com a da própria Internet. Desde os primórdios do "www" nós já tínhamos sites especializados em bate-papo e coisas parecidas, que, por sinal, arrecadavam milhões de usuários por aí (tudo bem, não tanto porque naquela época os que tinham acesso à internet ainda eram poucos), todos eles atravessando a madrugada nos chats porque, depois da meia-noite, a conexão com a Internet era de graça. Há lendas vivas sobre episódios no bate-papo UOL, no mIrc, no Encontros Amorosos do Yahoo! (sim, isso é muito antigo) e em outros serviços de relacionamento obsoletos.

Pois bem. Depois de algum tempo de especulação e tentativas, evoluímos para o MSN Messenger (o mensageiro instantâneo mais utilizado no planeta) e, anos depois, para o Orkut em sua forma mais decente -- aquela que permite a privacidade seletiva. Sim, repito, evoluímos. Não sou cínico absoluto a ponto de negar ou afrontar os avanços da Internet e as possibilidades de sociabilidade que daí surgem. Comunicar-se com outras pessoas é fundamental para qualquer um; até comunicar-se com quem não conhecemos. Quanto a isso, não tenho nada a falar.

Ainda seguindo a escala cronológica, temos, depois dos dois mais importantes supracitados, o serviço pioneiro sério em questão de redação e publicação de textos longos na web -- o blog. Esta é a ferramenta ideal para quem quer expor na Internet aquilo que pensa todos os dias, todas as horas e todos os minutos, se for o caso -- e, ainda, faz-se isso para o mundo inteiro, pois o blog é um site. A essência é parecida com a do Twitter, não? No blog as pessoas encontram um verdadeiro diário universal. Escreve-se sobre os filmes que se vê e os livros que se lê. E há a possibilidade, ainda, de "seguir" um blog de sua preferência, só para usar o termo mais freqüente do Twitter.

Portanto... Quer conversar com os amigos, a sós? MSN Messenger. Quer se relacionar com outras pessoas, desconhecidas, trocar idéias, se reunir em grupos de discussão e produção? Orkut. Quer publicar, sozinho, as suas idéias (textos) e as suas fotos na web? Faça um blog.

Tudo bem, não estou ganhando um centavo sequer nem da Microsoft nem do Google (seria tão bom se estivesse...), mas o que quero deixar claro aqui é que, depois que essa tríade de serviços virtuais foi inventada -- mensageiros instantâneos privados, Orkut e blog --, ainda há algo mais a se fazer? Pensem bem. Tudo o que se origina daí são derivados. Derivados... supérfluos. É o caso do Twitter.

No blog que eu citei no primeiro parágrafo deste artigo, a dona do texto disse que houve inúmeros mitos criados em torno do Twitter, desde a sua criação, e que esses mitos pejorativos foram responsáveis pelo fato de o Twitter ser tão duramente criticado por alguns hoje em dia. Por exemplo, lá ela diz que o Twitter não deve servir de modo algum para responder à pergunta inicial "O que você está fazendo?", proposta pelo próprio Twitter.

Cá penso eu: Graças a Deus ele não foi feito para responder a essa pergunta. Imagina-se a torrente de coisas inúteis que se seguiriam daí. Aliás, essa não foi a idéia original?

É, na verdade, um bar -- diz o blog em questão. O Twitter é um bar, aquele seu barzinho preferido da esquina, aonde você vai todas as noites para se reunir com os amigos, tomar aquele chope e conversar abobrinhas. Tudo bem, penso eu, gostei muito da analogia. Na verdade, ela esclarece bastante as coisas. No bar, naturalmente, existem aquelas pessoas que aparecem só para brigar, só para criar confusão e denegrir a imagem dos outros. Existem também, no bar, os momentos de solidão, os momentos em que você se encontra numa roda que não é a sua e o momento em que você gostaria de sair porta afora, mas não consegue.

Essa relação com o bar é a imagem perfeita de alguns sites de relacionamento comunitário; inclusive, claro, o Orkut. No entanto, o ponto positivo do Orkut é que você pode se esquivar das coisas desagradáveis, ignorando-as completamente, até banindo-as, e se dedicar a outras coisas de seu interesse. A área lá dentro é muito mais ampla. O Twitter, por seu lado, é exclusivamente voltado para uma única atividade: escrever, em um espaço limitado por 140 caracteres, alguma coisa relacionada à sua vida -- ou, como diria alguém, "dar voz ao lado sombrio da sua personalidade".

Se eu, particularmente, fosse dar voz ao lado sombrio da minha personalidade, diria apenas uma única coisa de antemão para os que se apresentam: que saiam todos da frente.

Já ouvi alguém falando que o Twitter serve também, e especialmente, para ver o que as pessoas famosas fazem em suas vidas. Acho que sei o que responder a essa observação: elas tomam banho, escovam os dentes e levam as crianças à escola. Não, não, diriam os mais radicais, o Twitter não serve para ver o que as outras pessoas estão fazendo: serve para ver o que elas estão pensando. E respondo: elas pensam as mesmas coisas que você. As celebridades que são inteligentes pensam coisas inteligentes; se você é inteligente que nem elas, não precisa do Twitter para lê-las. Quanto às celebridades desprovidas de cérebro... melhor nem comentar.

Aliás, o Twitter serve mais para criar problemas que antes não existiam. O próprio criador da ferramenta disse que a idéia do Twitter não era necessária até ser inventada. Quanto aos escândalos que são criados a partir de coisas que antes não eram necessárias, basta lembrar do "Caso Sasha". Cena com S.

Bem, é isso. Eu não gostaria de deixar este texto mais longo do que ele já está. Aliás, nem queria que ele tivesse ficado tão longo, por que sei que muitas pessoas não o lerão, e aí eu terei perdido 20 minutos da minha vida trabalhando nele. Mas, bem, estamos na Internet, e perder tempo é uma das suas maiores virtudes, não?

~~~~

Falando sobre esse negócio do Twitter e de relacionamentos abertos, eu lembrei de uma das primeiras frases ditas no filme O Show de Truman (The Truman Show, 1998). Seria conveniente citar aqui essa passagem, em que uma das personagens diz o seguinte: "Hoje em dia praticamente não existe diferença entre a vida pública e a privada. Isto é, não se sabe onde termina uma e onde começa a outra."

17 outubro 2009

A Dama das Camélias, de Alexandre Dumas (filho)

"A história de Marguerite é uma exceção, repito, mas se fosse uma generalidade, não teria valido a pena escrevê-la." (p. 203)

A Dama das Camélias A. Dumas Filho

Hoje pela tarde eu finalizei a leitura do romance A Dama das Camélias (La Dame Aux Camélias, 1848), escrito pelo francês Alexandre Dumas (filho), cuja ascendência, como podemos ver, já está evidente no próprio nome do rapaz.

O que esperar de um escritor que é filho do autor de O Conde de Monte Cristo e de Os Três Mosqueteiros? Essa foi uma das razões que me fizeram levar A Dama das Camélias da livraria.

~~

Sinopse: O romance, escrito em 1848, teve pouca repercussão em seu lançamento. (...) A obra é um documento social, mas sobretudo um hino ao Amor, escrita em linguagem forte, com admiráveis diálogos; narra a comovente história da cortesã Marguerite Gautier e Armand Duval, jovem estudante de Direito em Paris.

~~

Acima de tudo, A Dama das Camélias é um ótimo livro. Gostei bastante. Tem o caráter e a forma de uma obra de Machado de Assis - intrigas amorosas em primeiro plano - e, como todo romance europeu da primeira metade do século XIX, tem também passagens de declaração de amor efusivas e exasperadas, quase irreais. Isso sem contar com as cordialidades entre as personagens masculinas e femininas, que são coisas dignas de nota e que, hoje, julgamos risíveis.

Bem, o livro é narrado em primeira pessoa, só que por várias pessoas diferentes: começa com um personagem sem nome, que se encarrega das primeiras páginas e articula a história; passa então pelo relato longuíssimo de Armand Duval - que é, na verdade, o miolo do romance - e acaba com a narração da própria Marguerite, nas últimas páginas, através de uma extensa carta. Não vou, claro, me alongar nesses detalhes porque aí acabaria com a graça do enredo, e acabar com a graça de qualquer coisa é uma das atitudes que mais detesto.

Confesso que o livro demora um pouco a engatilhar. As primeiras dez ou vinte páginas são interessantes, mas é aí que começa o relato de Armand Duval e, então, os acontecimentos seguem um ritmo de madorna. No entanto, logo depois da metade - estamos falando de um livro de 205 páginas, note-se bem - a trama dá uma reviravolta que impressiona e que faz com que o leitor não largue o livro até que o fim seja alcançado.

O que mais me chamou a atenção em A Dama das Camélias é que, apesar da vontade que se tem, não podemos julgar nenhuma das personagens pelas atitudes que tomaram ao longo da história. Por quê? Porque todas elas seguiram o contexto social no qual se encontravam, e fugir desse contexto para tomar outras decisões soaria algo falso, tanto no caso de Marguerite como no caso de Duval e mesmo de Prudence. Portanto, no romance não há aquele que procedeu mal, aquele que procedeu certo, aquele coitado que sofreu pelas decisões do outro e aquele que tudo manipulou; não. Todos eles agiram de acordo com as suas inclinações, e isso afetou as pessoas circundantes de modo especial em cada caso. Desse modo, não há julgamento moral possível para ninguém ali.

Indico o livro para quem quiser uma boa leitura de final de semana e peço desculpas pela resenha simples.

~~

Eu poderia deixar como trecho especial a seguinte passagem:

"Não se trata simplesmente de colocar duas colunas na entrada da vida, uma delas sustentando esta inscrição: Caminho do Bem, e a outra este aviso: Caminho do Mal, e de dizer aos que se apresentam: 'Escolham'. É preciso (...) mostrar os caminhos que conduzem da segunda via à primeira para aqueles que se deixarem tentar pelos desvios e, principalmente, é preciso que o início desses caminhos não seja demasiado doloroso, nem pareça demasiado impenetrável."

(DUMAS, Alexandre; A Dama das Camélias, p. 28, editora Martin Claret)

08 outubro 2009

Saga, de Erico Verissimo

"(...) Que fazemos todos nós, senão viver numa constante renúncia das coisas que mais amamos?" (p. 289)

Saga0001 Erico Verissimo3

Hoje pela noite - depois de experimentar uma espécie de pimenta no jantar que só faltou pôr as minhas tripas para fora - eu finalizei a leitura do romance nacional Saga (1940), escrito pelo gaúcho Erico Lopes Verissimo durante o momento de eclosão da 2ª Guerra Mundial na Europa.

Saga é o livro que conclui o que o próprio autor denominou de Ciclo de Romances - que é o conjunto de seus seis romances urbanos ambientados em Porto Alegre, cujas histórias se entrelaçam, formando assim um tipo singular de trilogia.

~~

Sinopse: Nos campos de batalha da Guerra Civil Espanhola, Vasco Bruno presencia atrocidades de toda sorte. Quando volta a Porto Alegre, os horrores da batalha dão lugar às dificuldades cotidianas: em vez de fuzilamentos e bombardeios, os golpes baixos da sociedade burguesa. (...) Saga é um libelo humanista, um romance que denuncia a miséria social e ao mesmo tempo aponta uma luz de esperança em meio às nuvens escuras que chegam da Europa.

~~

Assim como aconteceu com os meus oito livros anteriores de Erico Verissimo, não me arrependi, de modo algum, de ter comprado este. Levei o único exemplar da livraria, quase que na impulsividade, mesmo lendo no prefácio que o autor considera Saga o seu pior romance (chamou-o inclusive de "monstro" e "medíocre"). Não me abalei com este julgamento e pensei: Um livro de Erico Verissimo falando sobre a guerra e sobre as torpezas do cotidiano não pode ser menos que interessante. Sem mais, irei levar.

E não me arrependi.

Posso dizer que o livro Saga (narrado em primeira pessoa por Vasco Bruno) é dividido em dois momentos muito distintos: o primeiro recebe o título de "O Círculo de Giz" e mostra as aventuras de Vasco durante a sua estada na Espanha, aventuras estas oriundas da sua decisão de entrar no exército da Brigada Internacional e lutar na Guerra Civil Espanhola; o segundo momento do livro intitula-se "O Destino Bate à Porta" e discorre sobre a volta de Vasco ao Brasil e a Porto Alegre, onde ele reencontra seus velhos amigos (Fernanda, Noel e a prima Clarissa) lutando pela sobrevivência cotidiana na cidade grande.

É interessante notar que todos os enredos dos romances anteriores de Erico convergem para este último: revemos Eugênio Fontes, de Olhai os Lírios do Campo; Chinita e Manuel Pedrosa, de Caminhos Cruzados; doutor Seixas, de Um Lugar ao Sol, e assim sucessivamente. Todas as tramas não-resolvidas dos livros anteriores têm a sua conclusão traçada em Saga. Só por isso, eu diria, o livro já vale a pena.

Apenas não entendi muito bem por que Erico Verissimo foi tão severo no seu julgamento quanto a este livro. É um romance absolutamente normal - ou melhor, "normal" em termos, porque o livro é maravilhoso, na minha opinião de fã. É um romance que pode muito bem ser acolhido com efusividade elogiosa pela crítica e pelo público. Por que então ser tão auto-crítico? Saga é um romance extraordinário! Não se deixem levar por comentários!

Como sempre, os personagens de Erico estão às voltas com questões existencialistas, sentindo-se deslocados em um mundo de tanta miséria moral e de tantas injustiças. Como conseqüência disso, temos diálogos belíssimos sobre viver uma vida justa e simples, sobre a doença mental da humanidade, sobre questionamentos de natureza ética e etc., sobre sonhos e amor ao próximo - isso tudo passando longe da pieguice, note-se bem. O autor é simplesmente especialista em diálogos, e, especialmente neste caso, nada deixa a desejar.

É com um prazer quase sobrenatural que eu leio essas passagens filosóficas de Erico. Chamo isso de "orgasmo literário". Por mais que o termo pareça chulo, não vejo outro que se aproxime mais do que se sente lendo essas páginas. O que dizer da conversa entre Vasco e o dr. Abel, em que este último explica por que o mundo está totalmente voltado para o consumismo imediato e frenético? O que dizer da filosofia maldita do dr. Seixas? Ou do altruísmo doloroso de Fernanda? Ou do mundo utópico de Noel? Nossa! São trechos que de fato tiram o fôlego de qualquer leitor apreciador da boa literatura.

Portanto, leiam Saga! É um livro excepcional, ainda mais se o leitor já tiver tido contato com os outros romances anteriores do Ciclo de Romances.

"Mais um do Erico Verissimo, heim?", disse-me Natália, minha amiga da universidade, ao ver debaixo de meu braço o volume Saga. "Qualquer dia desses você vai me emprestar os livros dele, todos de uma vez só".

"Com todo o prazer, ora", respondi. "Talvez assim você dê o braço a torcer."

~~

Abaixo, segue-se um dos trechos do livro que mais achei interessantes. Naturalmente não é o melhor de todos os trechos; selecionei-o por ser pequeno.

"Eu estive pensando numa coisa, Fernanda..."

"Sim?..."

"Em não voltar. Ficar junto da terra, numa vida mais simples..." Ela me olha com a testa franzida e eu prossigo. "Eu já lhe disse uma vez... Aquela aventura na Espanha serviu para que eu me conhecesse melhor, para que eu visse o que tenho de bom e de mau dentro de mim."

"E que é que isso tem a ver com a sua ida para a terra?"

"É que eu cheguei à compreensão de que a vida na cidade, com as suas complicações, faz que a todo momento esteja subindo à tona esse lodo que dorme no fundo de cada um de nós, ao passo que numa vida simples e natural eu poderei conservar em estado de pureza as qualidades boas que sinto existirem em mim."

Fernanda me escuta em silêncio. Entramos na rua da Independência. A garoa cessou. (...)

24 setembro 2009

A Felicidade Conjugal / O Diabo, de Leon Tolstói

"Queria emoções, perigo e auto-sacrifício. Havia em mim excesso de energia que não encontrava escoadouro naquela nossa vida tranqüila."

Livro0001 Tolstói

Hoje pela manhã -- antes de assistir ao ótimo filme A Testemunha, do mesmo diretor de Sociedade dos Poetas Mortos --, eu finalizei a leitura da edição dupla de A Felicidade Conjugal (Semeynoye Schast'ye, 1859)  e O Diabo (Dyavol, 1916). As duas, publicadas pela L&PM Pocket, são novelas do renomadíssimo escritor russo Leon Tolstói (ou seria Liev? Liv? Leão Tolstói?)

~~

Sinopse: Em "A Felicidade Conjugal", Tolstói demonstra sua habilidade ao retratar a meninice despreocupada da princesinha Macha, sua aproximação e o posterior relacionamento com Serguêi Mikháilovitch. Em "O Diabo", Evguêni, um bacharel em Direito, se envolve com uma bela camponesa da região, num caso que teria tudo para ser esquecido e relegado às loucuras de juventude -- mas Evguêni é jovem, e não percebe que está criando armadilhas para si mesmo.

~~

Foram 12 reais muitíssimo bem gastos. Livro comprado na impulsividade (como geralmente acontece comigo), mas não sem antes de eu ter feito as contas e me certificado de que poderia terminar de lê-lo ainda no final de semana, para assim poder dedicar os próximos dias úteis às provas da universidade.

Achei as duas histórias fascinantes. No entanto, senti uma afeição muito maior pela primeira, A Felicidade Conjugal, não apenas por ser a que aparece citada no filme Na Natureza Selvagem, mas por ser aquela com a qual eu mais me identifiquei. E é por isso que eu vou me dedicar somente a ela nesta resenha.

(De qualquer modo, a história O Diabo também é digna de apreço, e vale a pena ser lida juntamente com a primeira e logo após esta.)

A idéia que Tolstói procura transmitir em A Felicidade Conjugal é justamente aquela que ele tanto prezava e sobre a qual ele tanto refletia: o papel do homem e da mulher em uma vida matrimonial. Não sei se ele levaria esse assunto às últimas conseqüências no seu livro Anna Kariênina (que possui mais de 1.000 páginas e o qual estou pensando em comprar), ou se a temática do amor e das obrigações morais entre marido e mulher se limitou somente à esta história do início de sua carreira.

Algumas pessoas podem achar que a novela seja enfadonha por, talvez, tratar de um assunto meio maçante. Afinal de contas, convenhamos, uma novela russa do século XIX discorrendo sobre a vida e os conflitos de um casal soa desagradável aos olhos de gente ávida por leituras profundas. Mas a verdade é que a história cativa qualquer leitor -- seja ele ávido por leituras profundas ou não -- logo na primeira página, quando a personagem Macha fala sobre a solidão que ela, Kátia e Sônia passavam nos dias de inverno da aldeia de Pokróvskoie.

É tudo muito interessante também porque Tolstói narra em primeira pessoa sob o ponto de vista de uma personagem feminina, coisa que não acontece assim com freqüência na literatura. Sequer me lembro da última vez que li um livro que possuía um escritor de determinado sexo falando por uma personagem do sexo oposto.

Quanto à história propriamente dita de A Felicidade Conjugal: trata-se basicamente da vida de uma camponesinha que se casa com um amigo da família, Serguêi, e decide doravante construir uma vida de alegria plena, apesar dos pesares. A partir daí, Tolstói tece toda uma filosofia que ele defendia sobre o papel do homem e da mulher enquanto cônjugues. É realmente cativante.

Enfim, foi com boa surpresa que li o famoso trecho do texto que fala "Eu já vivi o bastante e agora sei o que é necessário para ser feliz..." Aquela mesma que aparece no filme Na Natureza Selvagem.

~~

Abaixo segue-se uma das passagens mais bonitas que encontrei em A Felicidade Familiar. Eu poderia ter transcrito várias outras do texto, mas esta realmente chamou a minha atenção; não por ser filosófica ou logosófica, mas por ter me transmitido uma sensação agradável na hora em que a li:

"Naquele verão, muitas vezes eu ia para cima, para o meu quarto, deitava na cama e, em lugar da melancolia da primavera, de desejos e esperanças para o futuro, a ansiedade pela felicidade no presente tomava conta de mim. Não conseguia dormir, ia me sentar na cama de Kátia, dizia que estava completamente feliz e lembro que isso era inteiramente desnecessário, pois ela mesma podia vê-lo. Ela falava que também era muito feliz e que nada lhe faltava e me beijava. Eu acreditava e achava necessário e justo que todos estivessem felizes. Kátia às vezes dizia que estava com sono, fingia estar zangada e me mandava embora de sua cama, adormecendo em seguida; eu ficava ainda ali durante muito tempo, repassando na mente tudo o que me fazia alegre. (...)

(...) O que eu achava pior era a sensação de que a cada dia os hábitos aprisionavam nossa vida de uma determinada forma, e que nossos sentimentos já não eram livres, estavam subordinados ao curso monótono e impassível do tempo."

(TOLSTÓI, Leon. A Felicidade Conjugal, págs. 40 e 125; editora L&PM)

17 setembro 2009

Quando Nietzsche Chorou, de Irvin D. Yalom

"Agora sei o que é assumir o controle de meu destino. É terrível e maravilhoso."

Quando Nietzsche Chorou Irvin D. Yalom

Hoje pelo início da tarde, após um grande debate que tive com o meu pai sobre a origem do Universo, eu finalizei a leitura do romance Quando Nietzsche Chorou (When Nietzsche Wept, 1992), escrito pelo eminente psiquiatra Irvin D. Yalom, norte-americano filho de imigrantes russos.

O livro foi o presente de aniversário que recebi do meu amigo Alfred, o padre alemão que estuda Psicanálise comigo na universidade.

~~

Sinopse: De férias em Veneza, o clínico-geral Josef Breuer encontra a jovem russa Lou Salomé, que lhe pede um favor excêntrico: tratar da depressão suicida de seu amigo Friedrich Nietzsche.

O que se estabelece entre ambos é uma relação na qual as funções de médico e paciente se confundem, pois Breuer encontra na filosofia de Nietzsche algumas respostas para suas próprias dores existenciais.

~~

As primeiras vinte ou trinta páginas do livro me empolgaram de verdade. "Parece ser realmente uma história muito boa", eu disse para a Natália, uma amiga minha que, assim como eu, é absolutamente aficcionada por literatura. "É mesmo?", ela retorquiu. "Sim", respondi, "pode ser uma boa maneira de mergulhar na filosofia de Fritz Nietzsche e na psicoterapia. Estou gostando do começo: há uma espécie de mistério envolvente."

Porém, quando cheguei à primeira centena de páginas, confesso que não me motivava mais tanto a idéia de pegar o livro novamente e lê-lo. Acho que o tempo escasso proveniente do absurdo de trabalhos na universidade atrapalhou muito a leitura, sim, mas a verdade é que perdi a empolgação subitamente. A trama do livro não conseguia mais despertar o meu interesse; o enredo, para mim, se tornou muito linear, pouco complexo, baseado apenas em extensos e por vezes enfadonhos diálogos entre Breuer e Nietzsche.

Além disso, o estilo narrativo da linhagem "best-seller" me desgostou um pouco. O ritmo da leitura então começou a se arrastar.

No entanto, outra guinada ocorreu de repente, desta vez para cima de novo, como no começo. À altura da página 200, mais ou menos, a trama começou a se intrincar e os personagens começaram a ganhar uma importância maior na história; de modo que a falta de ânimo que eu sentira no desenvolvimento foi compensada pelos momentos agitados do final do livro. E o resultado absoluto foi este: gostei muito, e o recomendo para qualquer pessoa que se interesse pelo assunto.

Tecnicamente, o que temos aqui é um romance que mistura realidade e ficção de uma maneira tal que, se não fosse pela nota do autor nas últimas páginas, não saberíamos precisar onde termina o fato e onde começa a imaginação. Lou Salomé, por exemplo, foi uma jovem que realmente existiu e que realmente se envolveu com Nietzsche, ao passo que o cunhado de Breuer, Max - que eu imaginava ter existido na realidade -, era fruto da criação do autor. Tendo essa confusão em vista, pode-se muito bem abandonar a tentativa de dizer o que é real e o que não é, e simplesmente curtir a história.

Uma coisa que eu achei bem interessante no livro foi ver o papel totalmente secundário de Sigmund Freud, o próprio fundador da Psicanálise. Os únicos momentos em que ele aparece são nas rápidas lições médicas com Breuer, dentro da biblioteca da mansão deste. No restante do enredo, o grande Freud praticamente não dá as caras, mas ainda é curioso ver que as formulações que ele tem com Breuer são a base do que mais tarde viria a ser seu estudo dos sonhos e do inconsciente.

Enfim, Quando Nietzsche Chorou é um ótimo romance. Apesar de ter me faltado ânimo no miolo do livro, devo dizer que isso não se deveu a alguma qualidade ruim da história, mas antes a uma exigência meio elevada da minha parte. É um livro bem didático, também: a explanação da Teoria do Eterno Retorno, por exemplo, é bastante clara e provocadora, e me fez pensar muito sobre as coisas.

~~

A seguir, um dos trechos do livro que têm relação com a Teoria do Eterno Retorno. Não sei se esta passagem surte o mesmo efeito tanto nas pessoas que não leram o livro, quanto nas que o leram.

"Cada vez que você escolhe uma ação, deve estar disposto a escolhê-la por toda a eternidade. O mesmo se dá com cada ação não realizada, cada pensamento natimorto, cada escolha evitada. Toda a vida não vivida ficará latejando dentro de você, invivida por toda a eternidade. A voz ignorada de sua consciência continuará clamando para sempre. (...) Este momento existe para sempre e você sozinho é a sua platéia."

(YALOM, Irvin D. Quando Nietzsche Chorou, página 306, editora Agir; 35ª edição.)

10 setembro 2009

Sociedade dos Poetas Mortos (1989)

"Poesia, romance, imaginação... É para isso que o homem verdadeiramente vive".

dead p. s.

Estados Unidos, 1959. Uma escola preparatória reconhecida pela disciplina ortodoxa e rígida admite um novo professor para lecionar literatura naquela temporada: John Keating, cuja imaginação, humor e sabedoria nada convencionais irão abalar o sistema estabelecido e inspirar os jovens alunos a transformarem suas vidas em algo extraordinário.

Ontem pela noite - após uma tentativa frustrada de assistir ao filme Up em uma sessão 3D -, passei pelo shopping center e, na seção de DVDs de uma determinada loja popular, deparei-me com nada mais nada menos que Sociedade dos Poetas Mortos (Dead Poets Society) por uma soma irrisória de 13 reais. Sem hesitar, enfrentei uma fila quilométrica e o levei para casa.

É um filme magnífico, e eu afirmo isso com toda a categoria possível. Sem correr o risco de parecer exagerado, posso dizer que este filme é o tipo do filme que mexe profundamente com as pessoas que sempre, por algum motivo, questionaram o poder das ordens pré-estabelecidas e se enlevaram com a carga emocional da linguagem poética.

Nem sempre é fácil falar sobre um filme - ou um livro - de que gostamos tanto. Porém, quanto a Sociedade dos Poetas Mortos, digo somente que ele entrou para a minha Lista dos Filmes que Mudaram a Minha Vida e que realmente vale a pena assisti-lo. Não deixe de vê-lo sob nenhum pretexto.

~~

A seguir, disponibilizo o trailer:


Direção: Peter Weir / Roteiro: Tom Schulman / Elenco: Robin Williams, Ethan Hawke, Robert Sean Leonard.

04 setembro 2009

Clarissa, de Erico Verissimo

"Onde estará então a menina em flor que corria no pátio atrás das borboletas?" (página 132)

Clarissa Erico Verissimo

Hoje pela manhã - antes de receber a notícia de que os estúdios Disney compraram a Marvel Comics - finalizei a leitura do livro nacional Clarissa (1933), que é o primeiro romance de Erico Verissimo e, conseqüentemente, o ponto de partida para a sua carreira literária meteórica.

~~

Sinopse: Clarissa é uma jovem de 13 anos que mora na pensão da tia enquanto estuda  em  Porto Alegre.  Curiosa, procura descobrir o mundo e a vida.  Observa com meticulosa atenção as pessoas que moram no pensionato e  na  vizinhança: Ondina, a  infiel  esposa  de Barata; Amaro, o músico triste e contemplativo; o distraído major Pombo; a conservadora tia Zina e seu desempregado marido;  a família rica que mora ao lado; e a viúva com o filho mutilado na casa à direita.

"Clarissa" mostra o despertar de uma adolescente para o mundo. No pequeno universo da pensão onde mora na capital gaúcha, a jovem entra em contato com realidades densas e misteriosas que seu otimismo juvenil não imaginava que existissem. (...)

~~

Eu acompanho a obra de Erico Verissimo desde o início de junho deste ano. Os seus primeiros livros constituem aquilo a que os críticos mais entendidos chamam de "Ciclo de Romances", que são vários livros com histórias diferentes, mas que, por se passarem no mesmo lugar (Porto Alegre) e no mesmo período (década de 30), acabam tendo os seus enredos entrelaçados.

Desse modo, por exemplo, a personagem Fernanda - do livro Caminhos Cruzados - esbarra com Amaro Terra - de Clarissa - e com Vasco Bruno - de Música ao Longe - no livro Um Lugar ao Sol, que por sua vez nos apresenta o velho doutor Seixas, que aparecerá mais tarde em Olhai os Lírios do Campo e Saga.

Esse embaralhamento de enredos e personagens é uma das coisas que mais me chamam atenção na obra do escritor gaúcho. De qualquer forma, vou me ater aqui ao romance em questão, isto é, ao primeiro do Ciclo de Romances: Clarissa.

Clarissa é uma história extremamente lírica, poética e romântica, coisa de que antes eu não gostava muito, mas que agora passei a apreciar. (Por que não um pouco de lirismo para nos fazer sonhar neste mundo tão grotesco?) O livro nos fala sobre a construção da personalidade de uma garota ingênua de 13 anos que, em contato com as pessoas e coisas da sociedade, começa a montar a sua impressão e o seu caráter diante do mundo.

Como resumiu muito bem um estudioso da obra:

"Na monotonia cotidiana da pensão de sua tia Zina, Clarissa é um raio de sol, uma mancha rutilante de alegria. É a poesia da vida no meio do realismo mesquinho. Nela, tudo encanta porque tem a inocência que a angeliza, e o sabor das coisas naturais que ainda não sofreram as deformações da sociedade... Clarissa é qualquer coisa de agreste e puro. Clarissa é música e é poesia. Menina e moça - olhos abertos para o mistério da vida. Alma que amanhece."

Confesso que não tenho muito o que dizer a respeito deste romance, a não ser o fato de que adorei e o recomendo aos demais fãs de Erico. Isso basta?

Naturalmente, Clarissa está abaixo dos romances posteriores do autor (?), mas esse detalhe não deve ser justificativa para tirar o seu brilho e a sua mensagem fundamental, que tanto inspiraram gerações e gerações ao longo dos anos.

A única imperfeição do livro - que sinceramente não chega a ser uma imperfeição - talvez seja aquela que o próprio Erico - sábio, como sempre - menciona em um prefácio de 1961:

"Como conjunto, talvez o principal defeito dessa novela seja o seu excesso, não de beleza - o que não seria para lamentar - mas de 'boniteza', de joliesse, de prettiness. Eu como que me esmerei em focar instantes pictóricos e poéticos, numa sucessão de haicais e aquarelas."

Com efeito, a linguagem do livro é laureada, dourada, extremamente poética e espichada; e isso confere à obra um caráter romântico quase irreal, o que muito provavelmente desagrada certos leitores contemporâneos. Talvez Clarissa seja uma grande poesia em forma de prosa, ou uma grande suíte sinfônica escrita em caracteres literários, caracteres esses que apenas os olhos de um leitor sensível conseguem captar.

"Céus, como você lê esse homem!", exclamou Natália, minha amiga de universidade, após eu lhe contar que estivera lendo o sétimo livro de Erico Verissimo.

"Ora... Ele é bom!", justifiquei. "Suas histórias impressionam pela narrativa poética e pelas tramas surpreendentes. É um grande escritor brasileiro, sem dúvida. Foi ele que me incitou a fazer as pazes com a literatura nacional. Sério mesmo!"

~~

Abaixo, uma das bonitas passagens de Clarissa que sublinhei. Aliás, esta é uma mensagem que está constantemente presente em seus livros: a busca pela liberdade, o sonho incansável de percorrer o mundo e se livrar da modorrenta, pragmática, claustrofóbica e enfadonha rotina da cidade:

"Uma vez, há muitos, muitos anos, um menino olhou o mundo com olhos interrogadores. Tudo era mistério em torno dele. Era numa casa grande. O arvoredo que a cercava amanhecia sempre cheio de cantos de pássaros. O mundo não terminava ali no fim daquela rua quieta, que tinha um cego que tocava concertina, um cachorro sem dono que se refestelava ao sol, um português que pelas tardinhas se sentava à frente de sua casa e desejava boa tarde a toda a gente. Não. O mundo ia além. Além do horizonte havia mais terras, e campos, e montanhas, e cidades, e rios e mares sem fim. Dava em nós vontade de correr mundo, andar nos trens que atravessavam as terras, nos vapores que cortam os mares. Nos olhos do menino havia uma saudade impossível, a saudade de uma terra nunca vista."

(VERISSIMO, Erico. Clarissa; páginas 34-5, editora Cia. das Letras, 5ª edição.)