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29 dezembro 2009

O Prisioneiro, de Erico Verissimo

“No fundo, todos somos atores. Representamos vários papéis ao mesmo tempo. Uns mal, outros bem.” (p. 121)

O Prisioneiro Erico Verissimo

Hoje pela noite, depois de dar uma volta a pé pela cidade e voltar para casa com uma latinha de Pepsi na mão, eu finalizei a leitura da novela nacional O Prisioneiro (1967), escrita pelo romancista gaúcho Erico Verissimo durante a intervenção dos Estados Unidos da América na Guerra do Vietnã.

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Sinopse: Envolvido numa guerra fratricida em terra estrangeira, um tenente prestes a voltar a seu país presencia uma cena dramática: uma bomba destrói o bordel onde ele estava poucos momentos antes e mata a moça por quem se apaixonara. Um dos terroristas, capturado logo depois pelas forças aliadas, é um jovem de apenas dezenove anos cujas feições o remetem à amante morta. O coronel encarrega o oficial de interrogar o prisioneiro e descobrir o paradeiro de uma segunda bomba. Não há tempo a perder, e o tenente dispõe de duas horas para obter a verdade, por meios lícitos ou ilícitos de interrogatório.

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Como nos informa a sinopse da contracapa do livro, O Prisioneiro foi escrito para contestar e criticar a intervenção norte-americana na famosa guerra política (penso enquanto escrevo: Qual é a guerra que não é política?) do Vietnã, na qual o Vietnã do Norte (comunista) atacava violentamente o povo do Vietnã do Sul (capitalista), que se recusava a transformar-se em comunista após o conhecido plebiscito que obrigou o país a adotar a famosa Estrela Vermelha. Reconhecendo o perigo pelo qual seu sistema econômico passava, os EUA interviram na Guerra e tomaram partido do lado sulista.

O que está em jogo, percebe-se logo cedo, não é a vida dos milhares de civis e militares que estão entre o fogo cruzado, mas sim o destino do sistema político que seria adotado naquele país. Bombas de fabricação caseira são plantadas em hospitais, asilos, infantários e hotéis de luxo, e isso é interpretado pelos guerreiros apenas como uma espécie de sinal, como se o lado terrorista, autor desses atos macabros, simplesmente estivesse mostrando que possui mais poder.

Como ficção e entretenimento, O Prisioneiro é uma boa novela. Também elucida alguns detalhes e põe à mostra certas atrocidades que não podem ser esquecidas. Algumas passagens trazem à baila questões sobre o destino dos seres humanos em um mundo hostil, confuso e, em determinados momentos, acéfalo, burro.

No entanto, Erico Verissimo mexe em uma política delicada que, se analisada com certo levianismo, pode dar mal-entendidos. E foi isso o que aconteceu quando li O Prisioneiro; senti um certo desapontamento quando fechei o livro, lido em dois dias. Não é um desapontamento causado pela trama da história, nem pelo estilo de escrita do autor, e sim pelo ponto de vista que o escritor parece adotar e defender.

Fiquei com a desagradável sensação de que Erico Verissimo apoiou o lado comunista do Vietnã, que enfrentava os “brancos” norte-americanos com unhas e dentes para proteger o povo da sua terra contra os avanços do imperialismo estadunidense, mesmo que para isso se usasse meios nada decentes.

Só a título de ilustração: em certo momento da história, um guerrilheiro comunista é preso e interrogado por um sargento americano bruto e violento; o guerrilheiro é responsável pela implantação de uma bomba em um Bar/Café (que fez várias vítimas) e pela implantação de uma bomba cujo local ainda é ignorado. Ainda assim, mesmo com essa ficha criminal, Erico parece querer passar a mão sobre os cabelos do guerrilheiro e perdoá-lo, só porque ele “é um humano como todos nós.” Já o oficial norte-americano é narrado como um monstro. Não sei se isso encerra uma metáfora.

Mesmo assim, talvez Erico tenha querido transmitir a idéia de que somos todos humanos, sim, mas estamos inseridos nessa Engrenagem sistemática que nos disforma e suja. Mesmo assim: nenhum ato terrorista merece perdão, nem o de plantar bombas em bares nem o de ser violento para com um prisioneiro de guerra.

Por bem ou por mal… depois de ler este livro, cheguei à conclusão de que Erico Verissimo escreve melhor quando não toca em assuntos políticos delicados. A mensagem de O Prisioneiro para o leitor, por exemplo, é confusa.

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Talvez esta passagem da página 67 possa resolver tal questão que levantei acerca do lado que o autor apóia. (ou seja, nenhum)

É uma fala da professora, amiga do tenente:

“A idéia da existência de Deus não tem impedido que os homens, através de milênios, se tenham matado em guerras brutais. O importante, me parece, não é temer a Deus, mas amarem-se os homens uns aos outros… ou pelo menos não se odiarem tanto, a ponto de recorrerem à violência para resolverem problemas de coexistência.”

21 dezembro 2009

Incidente em Antares, de Erico Verissimo

"Há navios que andam por todos os mares da Terra, mas um dia encalham, enferrujam e se resignam a não continuar a viagem." (p. 164-5)

 Incidente em Antares Erico Verissimo

Ontem pela tarde, antes de trocar a água do aquário da Mila (meu peixe-espada), eu finalizei a leitura do romance nacional Incidente em Antares (1971), a última ficção escrita pelo gaúcho Erico Verissimo. Depois disso, o escritor apenas redigiu uma biografia (Um Certo Henrique Betarso) e as suas próprias memórias (Solo de Clarineta, Vol. 1 e 2), inacabadas.

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Sinopse: É 11 de dezembro de 1963. Há uma greve geral em Antares. O fornecimento de luz é interrompido, os telefones não funcionam mais, os coveiros encostam as pás. Dois dias depois, uma sexta-feira 13, sete pessoas morrem – entre elas, d. Quitéria, matriarca da cidadezinha.

Insepultos e indignados, os defuntos ganham vida e resolvem agir: querem ser enterrados. Reunidos no coreto principal da cidade, decidem empestear com sua podridão o ar da cidade. Enquanto ninguém os enterra, porém, resolvem acertar as contas com os vivos e passam a bisbilhotar e infernizar a vida dos familiares.

Como os personagens são cadáveres – livres, portanto, das pressões sociais – podem assim criticar violentamente a sociedade em que vivem e esfregar no rosto dos vivos todas as misérias humanas que os homens corruptos praticam.

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Confesso que, embora a sinopse supracitada sempre me parecesse interessante, não era a minha intenção ler este livro. Depois de me deliciar com todas aquelas aventuras humanas narradas no ciclo dos romances urbanos de Erico, Incidente em Antares – um romance político que critica a ditadura – me pareceu enfadonho e fora do círculo de coisas que eu chamo de empolgantes. Política nunca foi uma coisa que me chamou a atenção. A ditadura… muito menos.

Foi então que ganhei um cartão-presente da livraria que mais visito nos finais-de-semana. O valor do cartão era compatível com o valor do livro (edição de bolso, note-se bem). Pensei na possibilidade de adquiri-lo e finalmente decidi: Se eu não gostar do livro, pelo menos ele me saiu de graça.

Incidente em Antares é dividido em duas grandes partes. A primeira, “Antares”, narra os primordiais acontecimentos e circunstâncias que tornaram possível o surgimento da comunidade que dá nome à história. Nessa primeira parte é narrada toda a rivalidade que recai sobre as famílias Vacariano e Campolargo – a primeira, já fixada na região há muitas décadas, teve de enfrentar a segunda, que imigrou com pompa para Antares e pôs em risco a hegemonia vacariana. As duas famílias simplesmente se odeiam através de um ódio de morte, e isso gera pano de fundo para muitas situações engraçadas e, claro, terríveis assassinatos.

Até então, o livro é ótimo. Percebe-se que Erico não perdeu nunca a técnica do estilo que o consagrou na década de 30, e, embora entre o ciclo de romances e Incidente em Antares haja quase quarenta anos, as semelhanças entre as duas fases de sua obra são nítidas.

Entretanto, o momento enfadonho do livro começa cedo. Para ser mais preciso, eu diria que começa na página 46, capítulo 22. É aí que Erico Verissimo começa a traçar todo um panorama da vida política brasileira, desde a ascensão de Getúlio Vargas, passando pelos feitos de Juscelino até a tomada do poder por João Goulart. Embora haja uma trama ficcional por trás disso tudo – protagonizada por Tibério Vacariano –, a narrativa não me empolgou devidamente.

Pensei: Erico é Erico. Vou fazer um esforço.

Valeu a pena. Depois de algum tempo e várias páginas, a empolgação de novo bate à porta e o livro toma um rumo incrível, fantástico, em todos os sentidos desta última palavra. Naturalmente, como não é do feitio do Artigos Efêmeros (nem do meu feitio), não vou contar nenhuma revelação de enredo. Mas uma coisa é certa: o leitor volta a se empolgar com a narrativa antes mesmo da metade do livro. A segunda parte, “O Incidente”, é maravilhosamente ácida e cômica, sem nunca perder o bom-senso.

Quanto à crítica à ditadura… acho que não posso falar muita coisa a respeito. Não vivi naquela época. Não sei muito bem que tipo de coisas ocorriam naqueles tempos. Não posso saber se realmente eram tempos tão terríveis como dizem os mais velhos. Mas uma coisa é certa: é uma boa crítica, essa feita em Incidente em Antares.

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Abaixo, um dos muitos trechos interessantes de Incidente em Antares, que trata de forma metafórica o surgimento de uma mentira.

“Nasciam em Antares os boatos mais desencontrados. Ora, um boato é uma espécie de enjeitadinho que aparece à soleira duma porta, num canto de muro ou mesmo no meio duma rua ou duma calçada, ali abandonado não se sabe por quem; em suma, um recém-nascido de genitores ignorados. Um popular acha-o engraçadinho ou monstruoso, toma-o nos braços, nina-o, passa-o depois ao primeiro conhecido que encontra, o qual por sua vez entrega o inocente ao cuidado de outro ou outros, e assim o bastardinho vai sendo amamentado de seio em seio ou, melhor, de imaginação em imaginação, e em poucos minutos cresce, fica adulto – tão substancial e dramático é o leite da fantasia popular –, começa a caminhar com as próprias pernas, a falar com a própria voz e, perdida a inocência, a pensar com a própria cabeça desvairada, e há um momento em que se transforma num gigante, maior que os mais altos edifícios da cidade, causando temores e até pânico entre a população, apavorando até mesmo aquele que inadvertidamente o gerou.” (p. 127-8)

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edição:

VERISSIMO, Erico. Incidente em Antares. São Paulo: Cia. das Letras. (2006)

16 dezembro 2009

A Última Estação, de Jay Parini

“Tentou localizar o seu costumeiro medo da morte e não conseguiu. Onde estava a morte? (…) Não sentiu medo algum, porque a morte não existia.” (p. 397)

A Última Estação Jay Parini

Hoje, pelo final da tarde, finalizei a leitura do segundo livro da minha lista de férias: A Última Estação (The Last Station, 1991), escrito pelo norte-americano Jay Parini. Recorrendo aos diários de Tolstói, de sua família e de seus amigos, Parini remonta, na forma de romance, os últimos e conturbados acontecimentos na vida do célebre escritor russo.

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Sinopse: O ano é 1910. Liev Tolstói é o escritor mais famoso de toda a Rússia e um dos mais lidos em todo o mundo. Mas, quase a chegar aos 82 anos, o autor de “Guerra e Paz” almeja apenas um pouco de sossego, longe dos repórteres e fotógrafos e dos conflitos no lar. Baseado nos diários daqueles que integraram o seu círculo mais próximo e também no legado do próprio Tolstói, este livro recria o último ano da vida do grande vulto das letras russas até aos derradeiros momentos que se seguem à sua dramática e desesperada fuga de casa, em outubro de 1910.

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Aclamado pela crítica e pelo público (elogiado inclusive por Gore Vidal como “um dos melhores romances históricos escritos nos últimos vinte anos”), A Última Estação ganhou recentemente uma adaptação aos cinemas, estrelada por Paul Giamatti (A Dama na Água) e Helen Mirren (A Rainha). Além disso, venceu o prêmio George Washington Kidd Award e foi editado em mais de 20 países.

Deve-se admitir: o livro merece essa pompa toda. Jay Parini reconta, com uma grande fidelidade aos fatos e com uma notável força narrativa, um dos mais intrigantes e surpreendentes episódios da vida literária: Liev Tolstói, de Janeiro de 1910 a Dezembro do mesmo ano, sofreu uma pressão psicológica fortíssima, proveniente de todos os lados – de sua irascível e implacável esposa, Sofia; de seu discípulo mais devoto e exigente, Tchertkov; de seu frágil estado de saúde; dos controversos filhos, Tânia, Sacha e Andrei, e de todas as outras pessoas que esperavam dele mais do que um homem aos 82 anos pode fornecer.

O livro prende tanto a atenção do leitor que, por incrível que pareça, consegui ler em um único dia nada menos que 185 páginas, o que é o meu recorde atual. Normalmente sou uma pessoa que lê 60, 70 páginas (no máximo) em um mesmo dia.

A intriga fundamental de A Última Estação é a seguinte: com a notável chegada de Tolstói aos seus últimos dias de vida, Sofia Andreiêvna, esposa do escritor, quer assegurar-se de que terá, para ela e para os filhos, todos os direitos autorais do marido, o que garantirá a vida econômica da família para sempre (para se ter uma idéia do que está em jogo: uma poderosa editora da época ofereceu a quantia de um milhão de rublos pelos direitos literários de Tolstói. Um milhão de rublos é mais do que podemos imaginar.) Sofia sente que merece tal recompensa do marido porque, nos seus primeiros anos de casados, era ela a pessoa que dedicadamente ajudava Tolstói a transcrever e a alterar seus manuscritos de, por exemplo, Guerra e Paz.

Mas Sofia Andreiêvna não está lutando à toa. Também com a intenção de pôr a mão no testamento de Tolstói está o dedicado e controverso discípulo Tchertkov, que alega que o maior gesto que o escritor poderá fazer para a humanidade é o de colocar todos os seus livros ao alcance do povo, transformando-os em total domínio público; e, conseqüentemente, não deixando um vintém para a esposa e para os filhos. Naturalmente, com este rumo de acontecimentos, Tchertkov sairá ganhando: terá a oportunidade de reeditar as obras do famoso escritor russo a seu bel-prazer.

Uma das características marcantes do livro é a narrativa polifônica, em que as várias personagens narram as suas impressões em capítulos diferentes, numa espécie de diário, fazendo o leitor oscilar entre aceitar os seus motivos particulares ou não. Essa é, mais ou menos, a mesma técnica utilizada em clássicos como Drácula, de Bram Stoker, e Frankstein, de Mary Shelley.

Em suma, A Última Estação fornece um entretenimento garantido e empolgante, além de encerrar uma série de informações valiosas sobre os derradeiros momentos de Liev Tolstói.

Especialmente recomendado aos fãs de romances históricos.

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Abaixo, dois dos trechos que achei mais interessantes.

“A maioria dos dias lembra outros dias. Vão-se enfileirando, ceifados pelo tempo. Não se lamenta muito sua perda. Mas alguns dias gloriosos se destacam na memória, dias em que cada momento brilha isoladamente, como seixos numa praia. Anseia-se para tornar a possuí-los e se lamenta a sua distância.” (p. 63)

“Em minha adolescência fui atraído para imagens e pensamentos indecentes. Percebo, agora, que a questão da decência é fictícia. É decente o tsar forçar jovens russos a matar jovens de outros países, das maneiras mais brutais? É decente a sociedade permitir que as pessoas morram de fome nas ruas, morram sozinhas, em miseráveis isbás, que vivam como ratos (…)? Mas a atividade sexual, a forma como homens e mulheres decidem combinar suas partes físicas, é completamente neutra. É, simplesmente, a energia empregada nisso – o tempo roubado do trabalho mental e espiritual adequado – que a torna vil.” (p. 121)

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PARINI, Jay. A Última Estação. Rio de Janeiro / São Paulo: Record. (1991)

Postado ao som de: Heat of the Moment, by Asia

09 dezembro 2009

Ganhando Meu Pão, de Maksim Górki

"(…) expliquei a ela que viver era muito difícil e aborrecido e que, lendo, se esquecia isso." (p. 213)

Ganhando Meu Pão Górki

Dando oficialmente início ao Projeto Leitura de Férias (PLF) deste fim de ano de 2009, li o livro russo Ganhando Meu Pão (V Liúdiakh, 1916), em que o escritor Maksim Górki narra as memórias de sua pitoresca adolescência no final do século retrasado.

Este livro já estava em minhas mãos há muito tempo (muito tempo mesmo! Comprei-o há quase seis meses), mas só agora, com o advento das férias e o conseqüente esmoreciemento das atividades acadêmicas, tive uma oportunidade de lê-lo em paz.

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Sinopse (Cosac Naify): Neste segundo volume de sua trilogia autobiográfica, Górki narra os seus anos de formação, os primeiros trabalhos, leituras e experiências sexuais, a vida em meio à brutalidade e à penúria de uma Rússia ainda patriarcal. Entre as lendas e histórias do folclore, contadas com talento literário pela avó analfabeta, e a prosa dos grandes autores do país, que o menino descobre com fascínio, Górki forjou um estilo único.

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Ganhando Meu Pão é um livro que, antes de tudo, deve ser lido com atenção. Não é como ler um Haruki Murakami, por exemplo, ou um Júlio Verne, ou ainda um Michael Crichton, em que a narrativa é tecnicamente fácil de ser digerida e não é necessário recorrer a inúmeras notas de rodapé. Neste romance de Górki, desfila por nós (brasileiros do século XXI) um mundo totalmente diferente do que estamos acostumados: vê-se uma Rússia do século XIX onde homens espancam esposas com naturalidade, batem em criados e apostam brigas no meio da rua, além de terem também outras atitudes que não condizem exatamente com aquilo que chamamos de congruente.

É difícil imaginar, por exemplo, alguém dormindo em cima de um fogão. Digo isso porque há umas passagens em que Górki diz que determinada patroa sua dormia sobre o fogão da cozinha – e eu não cansava de tentar imaginar algo viável, possível, como alguém dormindo sobre um forno ou algo parecido. Às vezes é difícil encarar certas passagens de textos com uma idade já bem avançada por causa disso: não temos uma idéia muito precisa dos costumes da época em que o livro se passa, e é comum ficarmos perdidos no meio da narrativa, sem saber o que imaginar de um mundo para o qual não fomos apresentados.

Sem contar com os nomes em russo, com os quais não estamos acostumados e que nos fazem confundir personagens ou até mesmo esquecê-los, o que é ruim. De qualquer modo, apesar de todos esses empecilhos (que não são culpa do livro, naturalmente) a linguagem ágil e fácil de Górki nos chama a atenção e não deixa que nos percamos. Isto é, vale a pela ler o livro. Quem tiver cogitando a idéia de comprá-lo, compre.

Maksim Górki teve uma adolescência bem intensa, podemos dizer; ele passou uma boa parte da sua vida alternando entre estar na casa dos avós, estar na casa dos patrões (servindo como empregado doméstico) e estar prestando serviços em navios que cruzavam o rio Volga. E é nesses três ambientes que a narrativa do livro se espalha.

Na sua primeira viagem de navio (que ocorreu depois de ter abandonado a faina na casa dos patrões), Górki conhece um tipo interessante chamado Smúri, que lhe ensina algumas lições sobre a vida e lhe incute o hábito da leitura, muito importante para o futuro do jovem Maksim. De volta à terra firme, ele vai outra vez trabalhar na casa dos patrões, que lhe reprimem o ato de ler e lhe dão cada vez mais trabalhos domésticos, na tentativa de tomar o seu tempo. No entanto, nessa época, Maksim Górki conhece duas mulheres interessantes (Rainha Margot e a esposa do contramestre), que emprestam a ele livros de toda sorte e, conseqüentemente, despertam nele ainda mais o gosto pela leitura. Mais tarde, Górki viria novamente a ingressar em um navio – e, novamente, voltar para a casa dos patrões. (Detalhe: isso não é spoiler.)

Bem feitas as contas, eu diria que Ganhando Meu Pão é um livro interessantíssimo, além de muito bem desenvolvido. As passagens poéticas também são dignas de nota. Não é à toa que transformou-se em um clássico do gênero. Aliás, é impressionante também a memória de Górki, fotográfica: ele conseguiu narrar com uma total precisão de detalhes algo que já estava em um passado bem distante!

Pude me identificar enormemente com algumas partes da vida do autor. Gostei de quando ele partia em suas viagens de navio, as conversas que tratava com as pessoas mais velhas e o discreto desprezo que tinha para com os adolescentes acéfalos da sua idade (tal como eu). Sem contar com a cena final, que achei muito bonita e interessante.

É provável que um dia eu ainda leia o primeiro livro da série, Infância. Dizem que é o melhor dos três. Quanto ao Minhas Universidades, não tenho tanto a intenção de lê-lo.

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Abaixo, alguns trechos que achei bem interessantes. Valeu a pena transcrevê-los.

“Duas pessoas viviam dentro de mim: uma delas, tendo conhecido demasiada imundície e ignomínia, assustara-se um tanto com isso e, acabrunhada com o conhecimento terrível das coisas de cada dia, passava a tratar com desconfiança, com suspeita, a vida, os homens, com uma piedade impotente em relação a tudo, inclusive a si mesma. (…) Esse homem sonhava uma vida quieta, solitária, com livros, sem gente perto (…).

O outro, batizado com o espírito santo dos livros honestos e sábios, observando a força triunfal do terrível cotidiano, sentia com que facilidade essa força podia arrancar a cabeça dele, esmagar o seu coração com o pé imundo, e defendia-se com esforço, cerrando os dentes, apertando os punhos, sempre pronto a qualquer discussão ou combate.” (p. 425)

Lindo trecho. Este também é ótimo:

“E tem-se tanta vontade de dar um bom pontapé em toda a terra e em si mesmo, para que tudo, inclusive eu, passe a girar num alegre turbilhão, na dança festiva de pessoas apaixonadas uma pela outra, por essa vida, iniciada em prol de uma outra, bonita, animosa, honesta…

Pensava: Tenho que fazer alguma coisa comigo mesmo, senão estou perdido…” (p. 436)

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GÓRKI, Maksim. Ganhando Meu Pão. São Paulo: Cosac Naify. (1916)

Postado ao som de: Sailing to Philadelphia, by Mark Knopfler

02 dezembro 2009

Os Aparados, de Leticia Wierzchowski

“Deus salvou o homem uma vez, mas a descendência de Noé não fez valer tal honra. Agora Deus perdeu a paciência.”

Os Aparados  Leticia W.

Hoje pela manhã, antes de começar a estudar alguns pontos de Análise do Comportamento que ficaram faltando, finalizei a leitura do romance nacional Os Aparados (2009), escrito pela gaúcha Leticia Wierzchowski, autora também do tão famigerado A Casa das Sete Mulheres.

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Sinopse (Record): Em um tempo não identificado, num mundo em agonia e totalmente alagado, personagens inesquecíveis vivem uma trama inquietante – e cheia de surpresas. Para proteger a neta adolescente – grávida de 7 meses – das catástrofes naturais que assolam a cidade grande, Marcus decide levá-la para um lugar afastado, no alto das serras gaúchas. Lá, o frágil relacionamento de avô e neta será testado, e os dois terão que aprender a ceder para sobreviver em um mundo à beira do caos.

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O livro possui 240 páginas e eu as li em três dias, o que é um grande feito. E poderia tê-las lido em menos tempo ainda, dois dias talvez, mas acabei estendendo em três mesmo por causa de uma esquisita e inesperada visita que recebi aqui em casa. De qualquer modo, quero dizer que, quando é lido em um fôlego só, Os Aparados fornece um excelente e empolgante entretenimento, tão empolgante que faz você virar página depois de página em um ritmo que nem percebe.

Os Aparados é tratado, desde o início, como uma história de fim de mundo. Mesmo assim, o leitor não pode se precipitar e esperar encontrar um livro em que catástrofes naturais medonhas são narradas, como ondas imensas inundando cidades inteiras, carros sendo arrastados pelas ruas e gente morrendo sem parar, à la 2012. Não. Se fosse para relacioná-lo com algum tipo de filme, eu diria que Os Aparados se parece bastante com Sinais, de M. Night Shyamalan. Os personagens são pouquíssimos, a trama é linear e – o que torna o livro original – o teor dramático, humano, é bem acentuado e restringido, ocupando o lugar da tragédia coletiva, tão comum nas histórias do gênero. Além de tudo, tal como em Sinais, em Os Aparados os personagens só têm contato com as catástrofes que acontecem lá fora através de noticiários dados na televisão.

No mundo lá em cima, nas serras gaúchas, enquanto Porto Alegre submerge lentamente nas águas do Guaíba, Marcus e Débora (os dois protagonistas) vivem seu drama dentro das quatro paredes do sítio isolado. Lá, embora o efeito das catástrofes quase não se faça notar, o que está em jogo é a relação avô/neta, uma relação frágil que revela um abismo entre os dois.

Uma das coisas que chamam a atenção em Os Aparados é a quantidade de elementos tecnológicos/modernos na história. Aliás, a tecnologia lá assume um papel crucial, principalmente para o personagem Arthur Medelli. Não se vê muito isso nos livros, essa coisa de colocar as pessoas usando laptops toda hora, iPods, sites de busca e até mesmo Orkut (ele é rapidamente mencionado em uma das páginas). Antes eu era um pouco avesso a essa idéia, mas agora vi que essa inserção de tecnologia popular na literatura pode ser bem aproveitada.

Bem, posso dizer que gostei muito do livro. Muito, mesmo. É um romance de história fácil, frugal, mas que faz o leitor pensar nas conseqüências do enredo. Os personagens ficam na mente por alguns dias, o que é agradável. E o suspense é sempre levado com habilidade através das páginas.

Os Aparados não é um livro pretensioso, mas eu já soube que em breve vai virar filme (aliás, ele já foi escrito com base no pedido de uma produtora de marketing). Tudo bem. A história tem um excelente potencial para o cinema. Se cair nas mãos de um diretor e de um roteirista competentes, pode se transformar em um muito agradável longa-metragem.

P.S.: A primeira coisa que eu me perguntei quando vi a capa do livro, ainda empoleirado na estante da livraria, foi: O que essa chave tem a ver com a história? Terminei a leitura e até agora não sei. A única explicação que tenho, e que acho mais coerente, é a de que a silhueta do corte da chave remete à silhueta das montanhas gaúchas. E, ainda, que o nome aparados, que remete ao nome das serras, lembra o modo como as chaves são feitas.

Aceito mais sugestões.

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Abaixo, um trecho interessante que destaquei.

“Ele se afasta pensando que tem que fazer alguma coisa. Sem saber para onde ir, segue no rumo do pomar. (…) Ele caminha pelo terreno íngreme, afundando os pés na terra fofa e úmida. Está nervoso. Não pode simplesmente ficar ali parado à espera de que os acontecimentos sigam seu rumo. Vai chover outra vez. Mais terra vai cair, isolando o alto da montanha: ele e a neta ficarão separados do mundo. É engraçado, foi isso o que sempre quis, sair do mundo. (…) Aquele mundo lá de baixo não serve mais, está podre, doente, exaurido. E, agora que aconteceu, sente medo. Este pequeno universo que criou é tão frágil quanto todo o resto.” (p.159)

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WIERZCHOWSKI, Leticia. Os Aparados. Rio de Janeiro/São Paulo: Record. (2009)