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25 junho 2012

Leonid Afremov e suas cores

"O essencial da arte é exprimir; o que se exprime não interessa." (Fernando Pessoa)

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Através do meu amigo Marco Severo – mais precisamente, através de uma publicação sua nos murais do Facebook – entrei em contato com as obras de um pintor contemporâneo chamado Leonid Afremov, artista nascido em 1955 na extinta União Soviética. Dono de uma técnica peculiar e bastante original, Afremov, que se formou na Escola de Arte de Vitebsk, produz seus quadros usando não pincéis, mas espátulas – um instrumento utilizado usualmente para limpar os excessos das tintas nas paletas e telas. Além disso, Afremov serve-se das tintas a óleo.

A sua técnica excêntrica e ousada, somada à preferência por cores fortes e vibrantes, traz como resultado os incríveis quadros pelos quais ele se tornou famoso no mundo todo: telas vivas e incrivelmente atraentes, expressivas, que conseguem transmitir uma sensação sólida de "eu queria estar nesse lugar". Meio onírica, bem impressionista, a obra de Afremov me cativou assim que deitei os olhos nela, e a série de quadros que mostro aqui reflete o meu súbito apego pela arte deste pintor tão original.


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Enquanto esteve na União Soviética, Afremov trabalhava pintando cartazes de propaganda para o governo comunista. Decepcionado com a situação política do país e meio frustrado por ter que produzir a sua arte segundo os critérios das autoridades, ele partiu para Israel em 1990, onde começou a expor seus primeiros quadros de valor. Por retratar principalmente pessoas nuas e músicos de jazz negros, sua pintura foi mal recebida pelo público conservador – até que, em 2001, sentindo-se também discriminado por não ser um israelense de nascença, Afremov mudou-se para os Estados Unidos.


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Na América, morando em Nova Iorque, Leonid Afremov conquistou um rápido e grande sucesso, conseguindo ter suas telas expostas ao lado das de Rembrandt em galerias de arte renomadas. Atualmente, ele possui obras apresentadas em mais de 60 galerias em territórios como Nova Zelândia, Austrália, África, Israel e Estados Unidos. Vive hoje em Boca Raton, na Flórida, onde mora com sua esposa e seus dois filhos. Segundo Afremov, o frio o faz ficar melancólico e deprimido, o que o impede de pintar quadros mais vívidos e alegres, característica sua.


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Às vezes acho que certas pessoas nascem para fazer do mundo um lugar mais bonito, simpático e habitável, por assim dizer. É o caso dos músicos, dos pintores e dos literatos, só para ficar nas classes de artistas mais famosas. Não consigo visualizar, por exemplo, um Erico Verissimo trabalhando como operário em uma fábrica de sapatos; nem um David Gilmour como funcionário público; e nem Leonid Afremov como um bancário. Não: essas pessoas devem ter nascido com alguma espécie de predestinação do tipo "você tem a tarefa de embelezar um pouco mais a sociedade humana. Vá lá, faça quadros, escreva livros, componha músicas".

Certo, deixando de lado essa idéia de predestinação e agora falando mais sério, fico muito satisfeito em ver que determinadas pessoas conseguem transformar a vida banal e cotidiana em algo belo e meditativo. Melhor ainda quando consigo achar a obra dessas pessoas por aí, às vezes por acaso. Leonid Afremov, por exemplo: é uma delícia poder ficar contemplando durante dez minutos um de seus quadros, distinguir cada tinta utilizada, cada "pincelada" dada. A vida fica fazendo um pouco mais de sentido. Saímos para a rua e vemos que as pessoas de fato são pessoas, e não seres domesticados para se comportar de uma determinada forma. Vemos o céu e as nuvens pela primeira vez em muito tempo.

Não é incrível que, para poder ver as coisas com mais nitidez e clareza, seja preciso recorrer a quadros impressionistas e livros de ficção?


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18 junho 2012

As coisas da vida (60 crônicas), de António Lobo Antunes

"As ideias muito fortes desaguam nas certezas e onde estiverem certezas a arte é impossível." (p. 44)

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Quando faz parte de um laboratório de pesquisa e de um programa de monitoria na universidade, você precisa, ao mesmo tempo, estudar milhões de artigos científicos e redigir uma série de relatórios enfadonhos que só atrapalham aquilo que costumo chamar de "regime literário". É preciso sacrificar alguma dedicação à literatura para dar conta dos afazeres pragmáticos de um mundo que não tolera muito as meditações e reflexões ligadas à arte.

De todo modo, sempre tenho tempo para um livro de crônicas. Na última semana eu fiz uma coisa que nunca imaginei que faria um dia: li um livro do escritor português António Lobo Antunes, o silencioso rival do nobelizado José Saramago. Veio parar nas minhas mãos, como que por pura obra da Providência, o volume As coisas da vida – 60 crônicas (que reúne textos publicados em periódicos lusitanos entre 1998 e 2002). Confesso: atualmente não tenho coragem de encarar um romance de Antunes, mas, depois de ter lido uma das crônicas deste livro na própria loja, gostei de ver o autor se virando em textos de duas páginas e trouxe-o para casa.


Sinopse: Lobo Antunes consagrou-se como um dos mais importantes autores da língua portuguesa por meio de romances marcantes, em que ele subverte a narrativa para criar algo absolutamente novo. Mas há uma faceta menos conhecida do autor, que também merece destaque: Lobo Antunes como cronista. É justamente este o enfoque do livro As Coisas da Vida que a Alfaguara acaba de lançar no Brasil.

Ele fala de si, de relacionamentos e despedidas, num completo entrelaçamento entre realidade e ficção. Como resultado, cria textos onde pequenas passagens da vida ganham dimensão universal.


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Como eu disse antes, não tenho coragem de encarar um romance de António Lobo Antunes (nem o mais curto), e todas as pessoas que já ao menos folhearam um de seus livros entende o medo a que me refiro. Este português é dono de uma estética e uma estrutura narrativa que acabrunham qualquer leitor; é preciso ter fôlego de alpinista para ler, por exemplo, Ontem não te vi em Babilónia. Frases longas, entrecortadas por diálogos soltos, geralmente desconexos, linguagem floreada e outras coisas do tipo são a característica mais marcante dele. Como é muito difícil saber exatamente do que estou falando aqui, convido-os a abrir despretensiosamente um de seus romances. Aí verão.

Talvez por tratarem de assuntos mais cotidianos, menos abstratos, mais práticos e menos extensos, as crônicas de António Lobo Antunes são o que um leitor medroso como eu chamaria de "prato de entrada": ou seja, se quer entrar em contato com o autor mas acha que ele é denso demais, sirva-se de suas crônicas. E, neste caso, Antunes justifica sua fama, sua badalação na Europa, justifica por que é comparado com Saramago e por que é classificado como um dos maiores autores contemporâneos. Textos belíssimos povoam esta coletânea – inclusive, um dos que mais gostei leva o nome do álbum, As coisas da vida, sobre um escritor que lamenta o término do namoro ao mesmo tempo em que tenta fazer pouco caso de sua separação, num misto perfeito de comédia e drama.

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Uma das coisas que mais me chamaram a atenção na escrita de Antunes é a mescla que ele consegue fazer de realidade e ficção, concreto e abstrato, de tal modo que às vezes, no mesmo texto, parece que você lê uma crônica, às vezes parece que você lê um conto, às vezes parece mesmo que lê uma poesia em prosa – e assim caminha o livro, levando o leitor a trilhar uma estrada em que emerge o inconsciente do autor, sua vida, tão universal e tão identificável. Não há gêneros definitivos, não há estrutura definitiva: há, isso sim, um borbotão de palavras e idéias, fatos e experiências que prendem o leitor e não fazem com que ele solte o livro, tamanha é a delícia de viver esse cotidiano aparentemente banal transformado em pura arte.

A coletânea é dividida a partir de sete grandes temas: infância, literatura, relacionamentos amorosos, humor, cenas do cotidiano, guerra em Angola – da qual Antunes participou, na década de 70 – e memórias. Mesmo assim, mesmo com essa aparente cisão entre os assuntos, eu diria que todas as experiências do autor se encontram impregnadas nos seus textos de tal modo que nem sempre temos uma crônica apenas cômica, nem outra que fale apenas sobre amor, nem outra somente sobre memórias: antes disso, todos os temas se encontram confundidos na literatura de António Lobo Antunes, e tomar parte nesse caleidoscópio de vivências é o maior barato deste livro.

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Seria um esforço inútil citar aqui todas as crônicas que adorei ler (foram inúmeras, tanto que sou capaz de enumerar nos dedos as que me foram indiferentes), mas posso dar o título de algumas das melhores, só para que você, futuro leitor, possa se situar e lembrar de mim quando tiver o livro nas mãos: O paraíso, A Feira do Livro, Retrato do artista quando jovem (as duas), A compaixão pelo fogo, Em caso de acidente, Uma gota de chuva na cara, Como se o orvalho te houvesse beijado, O amor conjugal, Saudades de Ireneia, Os Lusíadas contados às crianças… Ah, sinceramente, desisto! Eu passaria o resto da noite a escrever os títulos das crônicas aqui!

Portanto, fica a minha sugestão de leitura para esse início de férias: As coisas da vida (60 crônicas), do lusitano António Lobo Antunes. Livro excelente, coletânea de ótima qualidade, textos que põem o leitor para refletir pelo resto do mês, embalsamado por aquilo que eu chamo de literatura de ponta: orgânica, viva, expressiva, pronta para ruir por terra seus preconceitos e suas ilusões. Quanto ao estilo do autor, nada convencional, não há por que se preocupar: é só uma questão de costume e estar pronto para recebê-la. Quando essa abertura se dá, pode apostar que o resultado será no mínimo gratificante – e, no máximo, arrebatador.

04 junho 2012

Estado de medo, de Michael Crichton

"É claro, sabemos que o controle social é mais bem exercido através do medo." (p. 471)

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Na falta de um livro inédito sobre o qual comentar esta semana, resolvi escolher aleatoriamente da minha estante um romance que eu já tivesse lido há algum tempo, a fim de escrever sobre ele e, em suma, revisitá-lo. É sempre bom, se não reler, pelo menos revisitar os bons livros de nossa coleção; assim, impedimos que eles caiam no esquecimento e fiquem apenas acumulando poeira. Emprestá-los também é uma excelente opção para evitar isso.

Hoje, venho aqui compartilhar com vocês minhas idéias acerca de um dos mais polêmicos romances do escritor norte-americano Michael Crichton (que, como seus leitores sabem, escreveu algumas obras belicosas no fim de sua carreira). Estado de medo (State of fear, 2004) é um desses romances controversos, tendo lhe rendido muitas críticas negativas por parte de grupos ambientalistas, uma vez que, na sua análise de dados, a existência do aquecimento global é mais pautada em exagero do que em provas concretas. Uma afirmação ácida, sem dúvida.


Sinopse: A história do livro gira em torno de uma ação contra a Agência de Proteção Ambiental dos Estados Unidos. Os habitantes da ilha Vanutu, localizada no Pacífico, corriam o risco de ter de evacuar o país por causa da elevação do nível do mar, resultado do aquecimento global provocado pelo maior e mais descuidado emissor de dióxido de carbono do mundo, os EUA. Os moradores da ilha tinham grandes chances de ganhar o caso, especialmente depois que o Fundo Nacional de Recursos Ambientais se ofereceu para ajudá-los. No entanto, o processo jurídico nunca foi levado a cabo, e as circunstâncias da ação processual foram encobertas por uma rede de mistérios e assassinatos calculados.

Para uma resenha bem mais completa (site da Rocco), clique aqui.


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Estado de medo é um dos muitos livros de Michael Crichton que eu senti prazer em reler: não só porque alguns detalhes do enredo ficaram mais claros na segunda leitura, mas também porque pude curtir outra vez a intrincada e emocionante trama do livro, que inclui excursões à Antártica, cenas na França, na Malásia e em uma remota ilha insular do Oceano Pacífico, a nação fictícia de Vanutu. Outra obra de Crichton que gostei muito de reler foi Next (o último e mais irônico livro do autor), que oferece um panorama sombrio de como as coisas podem ficar no mundo caso a engenharia genética continue seguindo os caminhos inescrupulosos que parece estar tomando.

Eu diria que a leitura de Estado de medo não fica nem um pouco comprometida se você abrir mão de suas visões pré-formadas e se deixar espantar com algumas das informações divulgadas no livro –receptividade esta que nem todos tiveram, já que a principal crítica dirigida à obra diz respeito à reação furiosa das pessoas diante da negação do aquecimento global. Embora o romance seja de ficção, todos os dados apresentados nele são verídicos e comprovados em agências de investigação climática – como, por exemplo, o fato de a Antártica vir esfriando paulatinamente nas últimas duas décadas.

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A opinião de Michael Crichton (que, verdade seja dita, não pode ser considerado um homem conservador) é bem embasada e interessante se for analisada sem estarmos antes com pedras nas mãos, apenas esperando o livro terminar para arremessá-las. Receptividade e abertura à opinião do autor é a chave para o bom aproveitamento da leitura desse romance.

Mesmo assim, ler o livro sem um julgamento prévio na cabeça não implica necessariamente concordar com tudo o que o autor afirma. Em certo momento, por exemplo, Crichton parece ser simpático à idéia absurda de que a Natureza não está sofrendo tanto com o processo de industrialização como se costuma supor. Essa hipótese é facilmente subjugada pelos argumentos da teoria sistêmica capriana, que enfatiza claramente e comprovadamente a influência maléfica do ser humano no meio natural nesta virada de século.

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De um modo mais amplo, a mensagem fundamental que Estado de medo traz ao leitor é a de que muitos dispositivos sociais maquiam e enfeitam a realidade cotidiana para deixar a população em um perpétuo "estado de medo", que garante a docilidade e a cooperação das pessoas no mundo todo. Cita-se a Guerra Fria, o medo da poluição ambiental e alguns aspectos do medo do terrorismo; de fato, realmente há o que temer nesses assuntos, mas as agências de maior relevância que operam no Sistema (mídia em especial) manipulam os dados a fim de obter aquilo que se quer. É um discurso maquiavélico meio batido que, aqui, adquire uma roupagem nova e interessante quando aplicado às questões climáticas.

Costumo dizer que eu recomendo Estado de medo para as pessoas que gostam de debater sobre assuntos polêmicos de maior importância nesse nosso início de século. Em meio a essa reflexão bem-vinda, somos mergulhados em uma trama que mistura ciência, suspense e ação, bem ao estilo dos melhores livros do autor, tais como Jurassic Park e Linha do tempo. O entretenimento sem dúvida é garantido. Estar de acordo com o que Crichton apresenta, talvez não. Mas o que importa é o percurso: os debates, os pontos de vista e, sobretudo, a reflexão levantada sobre o tema. É melhor do que ficar calado e aceitar tudo o que vem da televisão como verdade.