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29 julho 2013

O oceano no fim do caminho, de Neil Gaiman

Uma confissão sobre mim: quando era bem pequeno, aos três ou quatro anos, talvez, eu podia ser um monstro. (p. 64)

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Existe uma vertente da literatura que eu costumo chamar, normalmente, de "literatura onírica". Nesse gênero, elementos fantásticos se reúnem e se mesclam com uma trama aparentemente banal, realista, muito próxima ao cotidiano ao qual estamos habituados. Não me refiro à conhecida veia do realismo fantástico, porque o que destaca o gênero da literatura onírica é justamente essa atmosfera especial de sonho, de irrealidade, de coisas não-palpáveis e não-percebíveis pelos sentidos. Uma atmosfera que parece estar sempre, do início ao fim, diluída em fumaça, em neblina, sem que possamos definir de modo nítido o que é desenhado no livro.

No sábado da última semana, finalizei a leitura de um livro que se encaixa muito bem nesse gênero específico. Trata-se de O oceano no fim do caminho (The ocean at the end of the lane, 2013), escrito pelo famoso Neil Gaiman, que conquistou uma enorme popularidade ao lançar a monumental HQ Sandman, história em quadrinhos seriada que reflete todo o costumeiro universo do autor: sonhos, ilusões, bruxas, mitos, seres estranhos, e assim por diante.

O oceano no fim do caminho é o primeiro romance adulto de Neil Gaiman desde Os filhos de Anansi, lançado em 2005. Neste novo título, Gaiman procura levar o leitor a refletir sobre o peso das lembranças infantis e sobre como podemos, até certo ponto, ser reféns delas. Além disso, à maneira de O labirinto do fauno (filme de Guillermo del Toro), o livro de Gaiman sugere que a fantasia pode ser algo não oposto à realidade, mas, pelo contrário, complementar a ela.


Sinopse: Um homem de meia-idade volta à casa onde passou a infância. Embora a construção não seja mais a mesma, ele é atraído para a fazenda no fim da estrada, onde, aos sete anos, conheceu uma garota extraordinária, Lettie Hempstock, que morava com a mãe e a avó. Naquela época, um homem cometeu suicídio dentro de um carro roubado no fim da estrada que dava na fazenda. Sua morte foi o estopim, com consequências inimagináveis. A escuridão foi despertada, algo estranho e incompreensível para uma criança. E Lettie prometeu protegê-lo, não importava o que acontecesse.


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Diferentes capas da série Sandman, criação de Neil Gaiman


O oceano no fim do caminho é um livro que certamente irá conquistar o coração de muitos fãs do autor, em particular, e da fantasia, em geral. Digo isso porque é muito fácil se deixar levar pela narrativa agradável do protagonista – que, perto dos 40 anos de idade, volta para a província rural onde viveu sua infância e, depois de se sentar à beira de um lago que sua antiga amiga chamava de oceano, rememora todos os estranhos acontecimentos de três décadas atrás. O próprio ambiente em que se passa a história é particularmente aconchegante: um pequeno vilarejo rural de Sussex, Inglaterra, no final dos anos 60.

Muitos elementos caros à literatura de Gaiman estão presentes neste seu novo romance, a começar pela família Hempstock, que, aqui, é composta por três mulheres que moram sozinhas em uma casa próxima à residência do protagonista: uma garota de 11 anos, sua mãe e sua avó (que jura ter estado presente durante a criação do Universo). Além disso, encontramos um protagonista criança, que inadvertidamente é tragado para um mundo surreal cuja fantasia irá testar a capacidade de resistência do menino – o que não deixa de ser uma sutil forma de ilustrar o amadurecimento pelo qual todos nós passamos em determinada época de nossa infância.


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Detalhe da edição do livro, lançado no Brasil, pela editora Intrínseca


O oceano no fim do caminho é uma excelente fábula sobre as maneiras pelas quais podemos estar atrelados ao nosso passado, e sobre o que uma criança de sete anos de idade é capaz de fazer para tomar as rédeas da situação em que se encontra inserida – mesmo que ela própria não tenha consciência dessa situação. No fundo, é o que todos nós fazemos, em maior ou menor grau: tentamos tomar as rédeas da situação em que nos encontramos e, se isso estiver fora das nossas capacidades, inventamos meios de burlá-la e procuramos algo para justificar esses subterfúgios. Como diria o grande Tolstói, "metade de nossa capacidade é destinada a nos iludir e a outra metade, a justificar essa ilusão".

A atmosfera de sonho presente em O oceano no fim do caminho se deve à constante incerteza de saber se os fatos que se apresentam na trama são reais ou produtos de um imaginário construído pelos próprios personagens. Graças a essa indecisão, a esse impasse, o leitor saboreia a condição de estar sempre andando sobre a tênue linha que separa o concreto do fictício, e o resultado não poderia deixar de ser uma primorosa reflexão acerca daquilo que forma o estofo de nossas recordações mais remotas – quando tudo era uma novidade assustadora, quando nossas vizinhas cozinhavam guloseimas para nós, quando fazíamos algo proibido, quando inventávamos uma brincadeira na qual imergíamos ou quando nos decepcionávamos com alguém de nossa família.

Leve, agradável, aparentemente despretensioso (mas de uma profundidade que só se percebe quando entramos em contato direto com a obra), o novo título de Neil Gaiman é a leitura que recomendo para os apreciadores da boa literatura de mistério – esse mistério típico dos livros que não entregam todos os pontos e que confiam na inteligência e na imaginação do próprio leitor.

2 comentários:

  1. queria dizer apenas que achei muito interessante o seu blog, até porque sou uma grande fã dos livros de Neil Gaiman, entre outros escritores.
    ^^
    BY: Natalia Rodrigues

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  2. Oi, Natália!

    Muito obrigado pelo seu comentário. Fico feliz em saber que você gostou.

    Abraço! (:

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