"A mãe sempre me despertava muitos pensamentos carinhosos, só que eu jamais conseguia exprimir tais pensamentos em palavras" (p. 248)
Não tenho o costume de ler auto-biografias. Embora eu saiba que esse seja um gênero literário riquíssimo e muito profundo do ponto de vista humano, são poucas as obras de memórias que tenho enfileiradas na minha estante. A que mais se aproxima do livro de Maksim Górki que terminei de ler ontem é Solo de clarineta (v.1), do meu ídolo Erico Verissimo: em tom sincero, despojado e cativante, ele narra os principais acontecimentos de sua vida, desde a época de criança até quando alcançou postos notáveis na condição de um dos mais populares escritores do Brasil.
Infância (Detstvo, 1914) é uma das obras mais significativas de Górki. Na verdade, como seus leitores sabem, este escritor russo dividiu suas memórias em três volumes, que muitos críticos consideram como sendo o ponto mais alto de sua produção. Os títulos são: Infância, Ganhando meu pão e Minhas universidades. Juntos, asseguro a vocês, esses livros constituem uma das melhores coisas que foram escritas na Rússia no século XX. Ainda não li o último capítulo da trilogia, mas a qualidade ímpar da auto-biografia como um todo eu posso garantir com segurança antecipada.
Sinopse: Saturada de afeto e violência, aqui está a vida do pequeno Górki, órfão de pai criado pelos avós no final do século XIX. Inédita no Brasil durante décadas, a publicação da íntegra da trilogia autobiográfica de Górki mostra que o escritor sobreviveu e chega aos nossos dias em sua plenitude: seco, mas sem conter a necessária emoção; refinado, mas sem renunciar à matriz popular de sua prosa.
Infância foi um dos livros mais bonitos, humanos e emocionantes que eu li até hoje. Acho necessário começar meus comentários com essa frase para que fique logo registrado o prazer absurdo que senti ao lê-lo. Chego até a pensar que, de todas as obras que já passaram pelas minhas mãos, poucas conseguiram me arrebatar tanto quanto esse capítulo inicial da trilogia auto-biográfica de Górki. Quanta ternura, quanta docilidade nas palavras, quanta emoção carregada em cada diálogo, em cada reflexão! E a própria escrita do autor, orgânica, viva, original, despejada em borbotões sem parecer desorganizada, lúcida, coerente! Sinceramente: tenho os mais rasgados elogios para fazer a esse livro.
Uma de suas qualidades que mais saltaram aos olhos, durante a leitura, foi a aparente organização dos fatos e a coerente apresentação das experiências do menino Górki ao longo da narrativa. E isso é diferente do que eu vi em Ganhando meu pão: neste, os fatos são mostrados como que em torrente, às vezes sem conexão entre si, às vezes com saltos temporais muito longos, o que causa uma certa confusão de cronologia na cabeça do leitor. Ganhando meu pão é um livro sensacional (que isso fique claro), mas tem esse pequeno defeito, na minha opinião; sobretudo em suas personagens, que são apresentadas de forma muito rápida, não dando o tempo necessário para que o leitor se apegue a elas.
"Na hora do recreio mais longo, dividi com os meninos o pão e o chouriço e começamos a ler o conto maravilhoso 'O rouxinol'" (p. 267)
Por sua vez, Infância segue um ritmo de romance pré-concebido e bem estruturado. Os acontecimentos – desde a morte do pai de Górki, na primeira página, até o fim – seguem uma tal lógica, um tal encadeamento que parecem ter sido feitos exatamente para se encaixarem num modelo de romance de ficção e fisgar a atenção do leitor. É como se Górki tivesse a perfeita noção do tempo de apresentar os fatos, para, lá na frente, surpreender o leitor com uma informação adicional. Com isso, a leitura ganha um prazer especial; estamos lendo um puro livro de memórias romanceado.
Outra qualidade significativa de Infância é, como eu já disse, a ternura e a beleza da história como um todo, além da profundidade inquestionável de suas personagens. A avó materna do menino Górki é um dos eixos centrais do livro: figura carismática e bondosa, é o porto-seguro do garoto, até mais importante para ele que sua própria mãe, ora presente, ora ausente. O avô, o carrasco de Górki em seus primeiros anos de vida, consolida a figura do grosseiro patriarca russo do século XIX, muito embora apresente lampejos de humanidade e alegria em várias ocasiões. E o pequeno Górki, tímido mas travesso, emocional, sensível, é curiosamente a figura mais oculta e esquiva da obra. Eis a genialidade do autor: usou a própria vida para explicar menos sobre ele mesmo e mais sobre as pessoas à sua volta. Ou melhor: para se explicar, bastou a Górki que ele explicasse como eram as pessoas que fizeram parte de seu desenvolvimento.
Tolstói e Górki: dois grandes nomes da literatura russa
Ao longo da leitura, me peguei enumerando todas as passagens memoráveis da história, aquelas que emocionalmente mais me tocavam, até descobrir que o livro todo havia tocado os pontos mais sensíveis de minhas emoções. A primeira cena que chama atenção por sua ternura é aquela que narra o avô de Górki tentando reconquistar a amizade do garoto após tê-lo surrado em um ímpeto de fúria desmedida, por alguma falta que Górki cometeu. O velho lhe traz, na cama, uvas, tortas e todo tipo de guloseimas, e se põe a contar, com brandura, como ele próprio havia apanhado na sua infância. Sem dúvida essa é uma das passagens que ficaram com força na minha memória – e ficará ainda por um longo, longo tempo – , mas posso afirmar com certeza que a obra toda é inesquecível.
Indico Infância para todas as pessoas que sabem o que é o prazer das palavras simples e o poder das relações humanas, principalmente em uma família como a do pequeno Górki, onde transbordam amor, violência e indiferença entre os membros. Sem dúvida nenhuma, um livro a ser descoberto ainda por muitos bons leitores. Porque esta é uma das obras de arte mais autênticas que conheço: consegue dizer um mundo de coisas com muito pouco, consegue reinventar a realidade, transformá-la, criticá-la, criando um sentimento vivo de universalidade – por isso, tão humana e emocionante.
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Retomando um hábito antigo (que infelizmente larguei nos últimos meses), deixo aqui no final da postagem um pequeno trecho do livro:
"Nossa vida não é só espantosa por haver nela uma camada tão fecunda e gorda de toda sorte de canalhice bestial, mas por, mesmo assim, conseguir germinar através dessa camada algo claro, saudável e criador – fazer crescer o bem, o humano, que desperta uma esperança invencível em nossa regeneração para uma vida clara e positiva." (p. 270)
Só uma coisa a dizer após ler o seu post: preciso ler Gorki. Infância entrou para minha lista de "vou ler".
ResponderExcluirEliana! Prazer tê-la aqui outra vez.
ResponderExcluirLeia Górki, por favor. De preferência, comece mesmo com 'Infância'. Tenho certeza de que você não vai sair a mesma pessoa após a leitura.
Grande abraço!
Amigo, se você ainda tiver este livro, estaria interessado em vendê-lo? Gostaria muito de lê-lo mas não encontro em lugar algum!
ResponderExcluirOlá Igor, td bem?
ExcluirVc consegue encontrar este livro no site https://www.estantevirtual.com.br, lá já encontrei diversos livros que haviam "saído de linha", incluindo este. Vc paga um valor bem em conta e o frete, que costuma ser barato tbm! É bem seguro, usa-se o PayPal para efetuar os pagamentos. Espero que tenha sorte. Abçs
Olá Leidiana, obrigado pela dica mas eu já conheço o Estante Virtual e na verdade dou uma olhada lá quase todo dia em busca deste livro, por enquanto sem sorte.
ExcluirIgor, eu nem sabia que este livro estava esgotado nas livrarias. Infelizmente não tenho a intenção de vendê-lo porque, como deve ter ficado claro na resenha, eu me afeiçoei muito a ele.
ExcluirMas a boa notícia é que ele está à venda na Estante Virtual, sim. A edição é de uma coleção de clássicos lançada pela Abril (muito bonita, por sinal). Caso não tenha encontrado, segue o link abaixo. Há vários exemplares.
http://www.estantevirtual.com.br/b/maksim-gorki/infancia/2523075090?q=g%F3rki&qt=Inf%E2ncia
Abraços!
Olá Marlo,
ExcluirObrigado pela resposta mas eu estou procurando por esta edição em especial, porque ela faz parte de uma trilogia e eu já tenho os outros 2 livros desta trilogia e apenas este me falta. Se para você não importa a edição, não estaria interessado em trocar? Eu compro uma edição desta e mando entregar na tua casa e você me envia a sua? Numa dessa posso incluir algum outro livro pela gentileza. :)
Olá!
ExcluirIgor, mais uma vez, infelizmente, não vou poder negociá-lo... pois minha edição também faz parte da trilogia lançada pela CosacNaify, e possuo os outros dois volumes. Realmente lamento muito! E agradeço pela oferta mais que generosa.
Mas não se preocupe, você vai encontrá-lo. E quando o encontrar, ele terá mais valor ainda. Um abraço, amigo!
Este comentário foi removido pelo autor.
ResponderExcluirLendo esse post em 2021. Sua resenha está maravilhosa! Não estou conseguindo encontrar essa edição da cosac, então comecei a ler uma tradução em espanhol que achei no site docero (tem 136 páginas o pdf). A escrita do autor é realmente simples e incrível de ler. Eu estou no início do livro ainda, mas achei bem parecido com a novela "Campo geral" do João Guimarães Rosa. Se vc já leu, achou parecido? Se não, talvez seja uma dica de futura leitura comparada. hehe
ResponderExcluirJoranny, foi um prazer imenso ler seu comentário! Muito obrigado pela visita. É tão legal saber que os textos antigos do blog ainda captam a atenção de leitores espalhados pela internet. Realmente sinto como se esses textos fossem mensagens dentro de garrafas jogadas no oceano - de vez em quando alguém as captura e lê, depois de tantos anos à deriva.
ExcluirNão sabia que a edição da Cosac estava esgotada aqui no Brasil, mas não surpreende, já que a editora infelizmente fechou as portas há algum tempo. Eram excelentes as suas edições dos livros russos. Não sei como está a tradução da edição castelhana que você está lendo, mas espero que a pessoa que traduziu tenha tido a mesma sensibilidade com as palavras que o Rubens Figueiredo teve - Rubens, um dos maiores, se não o maior, tradutor do russo no Brasil. Seu texto é fluído, lírico, profundo, sempre fiel ao original. Você já procurou essa edição da Cosac em algum sebo virtual?
Anotada sua indicação de leitura! Do Guimarães só li o 'Primeiras Estórias', excelente ('A terceira margem do rio', o clássico, é um dos meus contos preferidos).
Um grande abraço!
Sim! Eu também tenho um blog literário e experimento a mesma sensação de "garrafas ao oceano". hehe Mas é porque o retorno na plataforma não é tão imediatista mesmo; as visitas são contabilizadas mais claramente nos canais literários no youtube. Porque nos blogs não tem a ferramenta do like. Ainda não encontrei a edição física da cosac mas quem sabe no futuro, né? >.< Na verdade eu tenho uma história bem engraçada com esse autor. Obrigada por responder meu comentário, assim que eu ler mais coisas venho visitar suas resenhas. Vi que vc leu Nietochka Niezvanovna (um dos meus favoritos do Dosto)!
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