"Os resultados de tudo o que iniciava eram belos e autênticos, mas à custa de erros e desvios incessantes." (p. 116)
Decidi usar os cinco dias de feriado do Carnaval para pôr em dia a leitura de um dos livros mais distintos do russo Fiódor Dostoiévski, famoso autor dos clássicos e monumentais Crime e Castigo e Os irmãos Karamázov. Conheci o romance Niétotchka Niezvânova (Niétotchka Niezvânova, 1849) a partir da indicação de uma professora minha. No momento em que ela me disse que este livro é um verdadeiro estudo psicológico do desenvolvimento e uma espécie de documento histórico onde podíamos encontrar muitas idéias que Sigmund Freud abordaria depois, pensei: "Tenho que lê-lo".
Vale lembrar que a verdadeira intenção de Dostoiévski era escrever um grande romance que abarcasse toda a vida de sua personagem principal, Ana, desde a infância até a maturidade; mas, pelo fato de ter sido preso, quase morto e enviado à Sibéria (onde permaneceu uma década), o autor abandonou o ambicioso projeto inicial e fez de seu Niétotchka Niezvânova um pequeno romance de 200 páginas. Acredito que essa informação seja importante antes de iniciarmos a leitura do livro.
Sinopse: 'Niétotchka Niezvânova' narra os primeiros passos de Ana, que, desde muito cedo, convive no mundo com os problemas éticos e emocionais dos adultos. Precocemente órfã, é transferida para o lar de um distinto príncipe, onde trava contato com Kátia, a filha do nobre. Uma relação conturbada e pontuada de ambigüidade se instala entre as duas, até que ambas se declaram perdidamente apaixonadas uma pela outra.
Se há uma coisa que caracteriza todos os romances russos do século 19, sem distinção de autor, é o fato de que eles constituem verdadeiros tratados psicológicos sobre a condição humana e as relações estabelecidas entre as pessoas, guiadas, invariavelmente, pelos preceitos morais e culturais da época. A lista de livros russos que gira em torno dessa idéia é imensa: Anna Karênina, Crime e castigo, Pais e filhos, Almas mortas, e assim por diante. Os autores russos desse período pareciam estar unanimemente ligados a esse tipo de tema, e a maioria deles escreve visando o mesmo ponto, por assim dizer.
Com Niétotchka Niezvânova acontece o mesmo, embora o romance seja bem curto e econômico. A personagem que dá título ao livro (e que narra a história) é hipersensível e extremamente atenta a tudo o que a rodeia, incluindo as relações familiares a que ela se sujeita em diferentes momentos da sua vida. Assim, a pequena garota, que se vale de uma visão retrospectiva para narrar a história, esmiúça suas pequenas tormentas, seus pequenos "delírios", e tudo aquilo que foi responsável pela sua "maturidade precoce".
Confesso que, entre a escrita de Tolstói e a de Dostoiévski, prefiro a do primeiro. Mas não se pode negar que o autor de Crime e castigo escreve com vontade, com sede de desnudar suas personagens e com uma avidez que demonstra seu talento em criticar a sociedade e as convenções sociais, além de expor tudo aquilo que atormenta o íntimo dos indivíduos. Repleto de ponto-e-vírgulas e outras pontuações de pausa abrupta, seu texto é às vezes bastante truncado – mas não perde a beleza excêntrica típica dos russos.
Num primeiro momento, Dostoiévski dividiu Niétotchka Niezvânova em três partes muito bem delineadas: Infância, Vida nova e O mistério – que, embora não estejam mais oficialmente nomeadas, podem muito bem ser percebidas pelo leitor. A primeira delas, Infância, é o testemunho de Niétotchka sobre o começo da sua vida, sobre os seus primeiros passos como pessoa: vivia em um casebre rústico e se relacionava basicamente com o padrasto (um violinista fracassado que jurava ser o único músico talentoso do mundo) e com a mãe (que misturava severidade, amor e disciplina na educação da filha).
Com a morte de ambos, Niétotchka passa a residir na casa do príncipe K., na condição de órfã, onde conhece a pequena e bela princesinha Kátia, com a qual mantém relações declaradamente homoeróticas. Inicia-se Vida nova. Essa é uma das partes mais brilhantes do romance, na minha opinião, pois ainda é difícil para mim imaginar um livro da metade do século 19 discorrendo sobre um ingênuo relacionamento homossexual – entre crianças, ainda por cima. Palmas para Dostoiévski, e palmas para todos os outros autores que, desde muito cedo, buscavam convencer a sociedade da ignorância dos seus preconceitos.
Depois de um imprevisto na casa do príncipe, a protagonista passa a residir na mansão da irmã mais velha de Kátia, Aleksandra, onde começa a desconfiar de algo no relacionamento tortuoso desta com seu marido, Piotr. Essa parte, O mistério, é destinada a mostrar ao leitor a maturidade de Niétotchka, que passa a ler livros com voracidade e a se dar conta do mundo à sua volta, sobre o qual começa a emitir suas opiniões – até que se envolve em um turbulento problema conjugal entre Aleksandra e seu rude esposo.
Em suma, Niétotchka Niezvânova é um livro recomendado para quem quer entrar no universo de Dostoiévski pela primeira vez e sentir, na ponta dos dedos, toda a profundidade do autor, toda a sua preocupação com o destino de suas personagens e toda a gama de sentimentos que elas externalizam.
Bahhh! Tão gratificante quando ler Dostoiévski, é constatar que o Marlo Renan (meu sobrinho) escreve muitíssimo bem! Dá gosto ler seus textos! Claros e objetivos! Torcendo aqui por esse talento nato na difícil arte de escrever! Bola pra frente, Marlo! Um abração do tio Nirlando!
ResponderExcluir"Se há uma coisa que caracteriza todos os romances russos do século 19, sem distinção de autor, é o fato de que eles constituem verdadeiros tratados psicológicos sobre a condição humana e as relações estabelecidas entre as pessoas, guiadas, invariavelmente, pelos preceitos morais e culturais da época."
ResponderExcluirAponte-me um clássico que não tenha esta característica.
Olá!
ResponderExcluirDe fato, nesse trecho eu acabei apontando a característica que faz os clássicos serem clássicos, independentemente da nacionalidade do romance ou do autor! Obrigado por ter indicado esse detalhe!
Grande abraço, e seja sempre bem-vindo!
Acabou de chegar do correio esse livro, que já há muito queria ler.
ResponderExcluirDostoiévski escreve num ritmo gostoso de ler e vê-lo escrevendo do ponto de vista feminino, será dos mais interessantes...
Olá, Elson!
ResponderExcluirTenha uma boa leitura! Sobre escritores russos escrevendo do ponto de vista feminino, recomendo também 'A Felicidade Conjugal', do grande Tolstoi.
Abraços, volte sempre e obrigado pelo comentário!