"Em que momento exato você se desviou só um pouquinho da vida relativamente normal que vinha levando até então, em que momento ela se desalinhou de maneira infinitesimal para a esquerda ou para a direita, embarcando assim na trajetória que acabaria por levá-lo para onde se encontra agora?" (p. 169)
Alguns livros ficam empilhados sobre a minha mesa aguardando o momento adequado para serem lidos. Tenho aqui um exemplar de Amor líquido, do filósofo Zygmunt Bauman, As confissões, de Rousseau, Anna Karienina, do mestre Tolstói, e uma biografia completa da banda Pink Floyd. No meio desses livros, estava também A visita cruel do tempo (A visit from the goon squad, 2010), que peguei para ler no início da semana passada, quando julguei que o momento certo havia chegado finalmente. Eu tinha a certeza de que esse romance demandava do leitor um estado de espírito conveniente – como, no fundo, todos os livros demandam.
Terminei a leitura hoje, e posso dizer que toda a festa feita em cima da obra é justificada. Jennifer Egan escreveu um livro que é muitíssimo inventivo e original na forma, mas que possui uma temática extremamente clássica, que afeta todos os seres humanos desde que o mundo é mundo: a passagem do tempo e como isso afeta nossas vidas. Quando folheava o livro, antes mesmo de começar a lê-lo, eu encarava todas aquelas esquisitices da narrativa como uma mera tentativa de chocar o leitor, de chamar atenção, mas esse julgamento tive que abandonar assim que iniciei a leitura. Sim, existe um capítulo escrito em segunda pessoa, existe um capítulo escrito em forma de coluna de revista de fofoca, existe um capítulo escrito em forma de apresentação de PowerPoint, mas todos esses floreios se revelam como um recurso, uma técnica especial para dar conta de todo o universo proposto pelo romance.
Sinopse: Bennie Salazar é um executivo da indústria musical. Ex-integrante de uma banda de punk, ele foi o responsável pela descoberta e pelo sucesso dos Conduits, cujo guitarrista, Bosco, fazia com que Iggy Pop parecesse tranquilo no palco. Jules Jones é um repórter de celebridades preso por atacar uma atriz durante uma entrevista e vê na última — e suicida — turnê de Bosco a oportunidade de reerguer a própria carreira. Jules é irmão de Stephanie, casada com Bennie, que teve como mentor Lou, um produtor musical viciado em cocaína e mulheres. Sasha é a assistente cleptomaníaca de Bennie, e seu passado desregrado e seu futuro estruturado parecem tão desconexos quanto as tramas dos muitos personagens que compõem esta história sobre música, sobrevivência e a suscetibilidade humana sob as garras do tempo.
A edição da Intrínseca traz na capa de trás e na primeira página do volume uma série de elogios feitos por suplementos literários de jornais tais como The New York Times, The Guardian e The Washington Post. Como muitos leitores, não confio totalmente na opinião desses suplementos (geralmente trata-se de uma questão de puro marketing), mas dessa vez, após ler o livro, constatei que todas as opiniões colocadas ali têm seu fundamento. A maioria dos elogios se refere à criatividade de Jennifer, posta à prova neste romance, e à sensibilidade no trato com os personagens da história – todos inesquecíveis, diga-se de passagem.
O conceito de A visita cruel do tempo é o seguinte: uma série de histórias paralelas que se cruzam, uma a uma, em um espaço de tempo de aproximadamente 60 anos. Cada capítulo é narrado sob o ponto de vista de um personagem específico, situado em uma época específica; a cronologia é embaralhada e o ano propriamente dito nunca é mencionado – de modo que o resultado disso é uma espécie de caleidoscópio em que pequenas narrativas se entrechocam, se entrelaçam e se separam. Falando assim, fica a impressão de que o romance é uma confusão de tempos e que o leitor sofre amargurado na tentativa de acompanhar o fio da meada. Engano. Jennifer possui uma habilidade ímpar na hora de situar o que está escrevendo, e o leitor atento não tem a menor dificuldade em estabelecer ordem no aparente caos de todas aquelas 333 páginas. É muito fácil não se perder na narrativa.
O tom que perpassa a narrativa de A visita cruel do tempo é carregado de uma atmosfera que eu não saberia definir ao certo. Há algo de nostálgico, determinista, inexorável, fazendo-nos pensar que nossa linha do tempo já está fixada de uma maneira que, independentemente do que você faça, ela não se alterará; ainda assim, é uma narrativa que traz consigo um clima de mundo repleto de possibilidades. Seria mais ou menos como se alguém o abordasse, o sacudisse e dissesse: "Você tem o tempo da sua vida para fazer alguma coisa que valha a pena… E as lembranças dos seus feitos ecoarão por toda a eternidade, e suas atitudes afetarão a vida de outras pessoas." Eu senti uma frase como essa zunir na minha cabeça ao virar a última página.
Aliás, este é um livro que fala diretamente com o leitor, e essa é uma característica que me chamou muito a atenção. Não importa o personagem do capítulo que está lendo, não importa se ele é narrado em primeira ou terceira pessoa: você, como leitor, toma parte na história e sente as angústias e os dilemas retratados lá, pelo simples fato de que também é capaz de sentir na pele o efeito do tempo passando e das coisas ao seu redor mudando.
No fundo, A visita cruel do tempo fala sobre como nós podemos perceber (ou não perceber) a passagem do tempo e o impacto que isso traz para as nossas vidas. Pessoas que conhecemos no passado, foram grandes amigas nossas, mas que agora no presente sequer nos reconhecem; experiências e eventos que antes pareciam gloriosos, juventude que se esvai como a água que desce pelo ralo do banheiro; sonhos e expectativas que não encontraram o caminho certo. Tudo isto está presente no livro de um jeito desconcertante, que nos abala, mas que ao mesmo tempo nos faz adquirir uma certa maturidade no final da leitura.
Na esquerda, página 274 de A visita cruel do tempo
Recomendo A visita cruel do tempo especialmente aos meus amigos que cursam Psicologia. A Literatura e a Psicologia sempre foram coisas indissociáveis para mim, e 'A visita cruel do tempo' é uma prova de que podemos ter o privilégio de estudar nos livros de ficção as coisas que vemos na faculdade. Leiam. Aliás, o tema central desta obra é aquilo que mais leva as pessoas à terapia: a constatação de que o tempo passou e alguma coisa irrecuperável se perdeu lá atrás.
Nota solta: dentre todos os prêmios importantes que o livro de Jennifer recebeu, o Pulitzer de Ficção (2011) certamente é o mais icônico.
Uma dica: se você tiver tempo, paciência e disposição, leia A visita cruel do tempo duas vezes seguidas. Assim como o filme Cloud Atlas, dos irmãos Wachowski, esta é uma obra que pede uma repetição instantânea, o que ajuda o leitor a encaixar melhor toda a cronologia da história e seus detalhes.
Desde que você comentou que estava lendo esse livro eu fiquei curioso. Adoro esse tipo de história fragmentada, cujo os pedaços vão fazendo sentido aos poucos, com certeza vou atrás.
ResponderExcluirO curioso é que já li algo da Jennifer Egan. Li "O Torreão" e não vi nada de mais nele. Diria até que é bem ordinário... Entretanto esse parece bem mais interessante.
Mais um fato inusitado é você citar Cloud Atlas, estou lendo o livro nesse exato momento e estou gostando muitíssimo. Vou deixar para ver o filme somente depois de terminar a leitura, mas já adianto que a trama não é impossível de acompanhar... O que será que os irmãos Wachowski fizeram no filme? E não sei o motivo de nenhuma editora aproveitar o lançamento da adaptação cinematográfica para traduzir o livro.
T+!
Farley,
ResponderExcluirO livro realmente é muito bom. Foi uma leitura bem marcante no começo do ano. Comecei a lê-lo sem expectativa nenhuma, estava até um pouco receoso com todos esses pós-modernismo da narrativa, mas acabei vendo que tudo tem um objetivo. Recomendo demais.
Ouvi mesmo dizer que os outros títulos de Egan não se comparam com 'A visita cruel do tempo', mas talvez eu aposte em mais uma leitura dela neste ano. Tem um conto dela, 'Caixa Preta', que acho que vale a pena.
Gostei muitíssimo de 'Cloud Atlas'! Vi o filme na época em que estava lendo o livro da Jennifer, e achei que as duas obras tinham muito em comum, a começar pela trama fragmentada e a abordagem sobre o tempo. O filme ficou bem legal. Acho que é muito diferente do livro. Também acho que seria interessante traduzir 'Cloud Atlas' para o português.
Até! (:
Parabéns pelo blog!
ResponderExcluirObrigado! Volte sempre! :)
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