"As ideias muito fortes desaguam nas certezas e onde estiverem certezas a arte é impossível." (p. 44)
Quando faz parte de um laboratório de pesquisa e de um programa de monitoria na universidade, você precisa, ao mesmo tempo, estudar milhões de artigos científicos e redigir uma série de relatórios enfadonhos que só atrapalham aquilo que costumo chamar de "regime literário". É preciso sacrificar alguma dedicação à literatura para dar conta dos afazeres pragmáticos de um mundo que não tolera muito as meditações e reflexões ligadas à arte.
De todo modo, sempre tenho tempo para um livro de crônicas. Na última semana eu fiz uma coisa que nunca imaginei que faria um dia: li um livro do escritor português António Lobo Antunes, o silencioso rival do nobelizado José Saramago. Veio parar nas minhas mãos, como que por pura obra da Providência, o volume As coisas da vida – 60 crônicas (que reúne textos publicados em periódicos lusitanos entre 1998 e 2002). Confesso: atualmente não tenho coragem de encarar um romance de Antunes, mas, depois de ter lido uma das crônicas deste livro na própria loja, gostei de ver o autor se virando em textos de duas páginas e trouxe-o para casa.
Sinopse: Lobo Antunes consagrou-se como um dos mais importantes autores da língua portuguesa por meio de romances marcantes, em que ele subverte a narrativa para criar algo absolutamente novo. Mas há uma faceta menos conhecida do autor, que também merece destaque: Lobo Antunes como cronista. É justamente este o enfoque do livro As Coisas da Vida que a Alfaguara acaba de lançar no Brasil.
Ele fala de si, de relacionamentos e despedidas, num completo entrelaçamento entre realidade e ficção. Como resultado, cria textos onde pequenas passagens da vida ganham dimensão universal.
Como eu disse antes, não tenho coragem de encarar um romance de António Lobo Antunes (nem o mais curto), e todas as pessoas que já ao menos folhearam um de seus livros entende o medo a que me refiro. Este português é dono de uma estética e uma estrutura narrativa que acabrunham qualquer leitor; é preciso ter fôlego de alpinista para ler, por exemplo, Ontem não te vi em Babilónia. Frases longas, entrecortadas por diálogos soltos, geralmente desconexos, linguagem floreada e outras coisas do tipo são a característica mais marcante dele. Como é muito difícil saber exatamente do que estou falando aqui, convido-os a abrir despretensiosamente um de seus romances. Aí verão.
Talvez por tratarem de assuntos mais cotidianos, menos abstratos, mais práticos e menos extensos, as crônicas de António Lobo Antunes são o que um leitor medroso como eu chamaria de "prato de entrada": ou seja, se quer entrar em contato com o autor mas acha que ele é denso demais, sirva-se de suas crônicas. E, neste caso, Antunes justifica sua fama, sua badalação na Europa, justifica por que é comparado com Saramago e por que é classificado como um dos maiores autores contemporâneos. Textos belíssimos povoam esta coletânea – inclusive, um dos que mais gostei leva o nome do álbum, As coisas da vida, sobre um escritor que lamenta o término do namoro ao mesmo tempo em que tenta fazer pouco caso de sua separação, num misto perfeito de comédia e drama.
Uma das coisas que mais me chamaram a atenção na escrita de Antunes é a mescla que ele consegue fazer de realidade e ficção, concreto e abstrato, de tal modo que às vezes, no mesmo texto, parece que você lê uma crônica, às vezes parece que você lê um conto, às vezes parece mesmo que lê uma poesia em prosa – e assim caminha o livro, levando o leitor a trilhar uma estrada em que emerge o inconsciente do autor, sua vida, tão universal e tão identificável. Não há gêneros definitivos, não há estrutura definitiva: há, isso sim, um borbotão de palavras e idéias, fatos e experiências que prendem o leitor e não fazem com que ele solte o livro, tamanha é a delícia de viver esse cotidiano aparentemente banal transformado em pura arte.
A coletânea é dividida a partir de sete grandes temas: infância, literatura, relacionamentos amorosos, humor, cenas do cotidiano, guerra em Angola – da qual Antunes participou, na década de 70 – e memórias. Mesmo assim, mesmo com essa aparente cisão entre os assuntos, eu diria que todas as experiências do autor se encontram impregnadas nos seus textos de tal modo que nem sempre temos uma crônica apenas cômica, nem outra que fale apenas sobre amor, nem outra somente sobre memórias: antes disso, todos os temas se encontram confundidos na literatura de António Lobo Antunes, e tomar parte nesse caleidoscópio de vivências é o maior barato deste livro.
Seria um esforço inútil citar aqui todas as crônicas que adorei ler (foram inúmeras, tanto que sou capaz de enumerar nos dedos as que me foram indiferentes), mas posso dar o título de algumas das melhores, só para que você, futuro leitor, possa se situar e lembrar de mim quando tiver o livro nas mãos: O paraíso, A Feira do Livro, Retrato do artista quando jovem (as duas), A compaixão pelo fogo, Em caso de acidente, Uma gota de chuva na cara, Como se o orvalho te houvesse beijado, O amor conjugal, Saudades de Ireneia, Os Lusíadas contados às crianças… Ah, sinceramente, desisto! Eu passaria o resto da noite a escrever os títulos das crônicas aqui!
Portanto, fica a minha sugestão de leitura para esse início de férias: As coisas da vida (60 crônicas), do lusitano António Lobo Antunes. Livro excelente, coletânea de ótima qualidade, textos que põem o leitor para refletir pelo resto do mês, embalsamado por aquilo que eu chamo de literatura de ponta: orgânica, viva, expressiva, pronta para ruir por terra seus preconceitos e suas ilusões. Quanto ao estilo do autor, nada convencional, não há por que se preocupar: é só uma questão de costume e estar pronto para recebê-la. Quando essa abertura se dá, pode apostar que o resultado será no mínimo gratificante – e, no máximo, arrebatador.
Este comentário foi removido pelo autor.
ResponderExcluirSendo você o excelente leitor que é, não entendo seu medo de pegar um romance do Lobo Antunes pra ler, mas tudo bem, deixo isso pra Freud resolver hehe :P
ResponderExcluirClaro que começar a lê-lo pelas crônicas é realmente uma excelente porta de entrada, e este livro é absurdamente fantástico, e demonstra pra mim que, se ele é incapaz de atingir minha mente e meu coração como o Saramago, porque gosto mais da forma narrativa deste último, sem dúvida ele consegue me arrebatar enquanto leitor.
Parabéns pela resenha desse excelente livro!