"Naquele trágico domingo, Niterói era uma cidade doída e confusa." (p. 200)
Nem uma febre e nem uma gripe das mais desagradáveis foram capazes de impedir que eu terminasse a leitura do livro O espetáculo mais triste da Terra – O incêndio do Gran Circo Norte-Americano (2011), escrito pelo jornalista carioca Mauro Ventura, filho do conhecido Zuenir Ventura. O resfriado consumiu todo o meu estoque de medicamentos, mas não conseguiu me deixar acamado a ponto de me separar da minha estante.
Ando me interessando bastante por obras de autores que lançam mão do chamado "jornalismo investigativo", gênero moderno provavelmente iniciado com Truman Capote, cuja linha principal mistura reportagem e veia crítica usando pinceladas de romance. Sem dúvida, é um gênero que possui um alto grau informativo e uma boa dose de entretenimento, a depender do autor em questão. Jon Krakauer, por exemplo, é um nome bem conceituado nessa área de não-ficção, e seus livros são tão empolgantes quanto críticos e socialmente engajados.
A leitura do livro de Ventura, excelente, me deixou a par de uma das piores tragédias brasileiras de todos os tempos.
Sinopse: Com base num minucioso trabalho de campo e de pesquisa, Mauro Ventura traz à tona um drama sem precedentes na história do Brasil: o incêndio no Gran Circo Norte-Americano, que tem entre seus heróis médicos, escoteiros, religiosos e até uma elefanta, que salvou dezenas de espectadores ao abrir um rasgo na lona. No dia 17 de dezembro de 1961 acontecia, em Niterói, a maior tragédia circense da história e o pior incêndio com vítimas do Brasil. Mais de 3 mil espectadores, a maioria crianças, lotavam a matinê do circo, anunciado como o mais famoso da América Latina, quando a trapezista Antonietta Stevanovich deu o alerta de fogo. Em menos de dez minutos, as chamas devoraram a lona, justamente no momento em que o principal hospital da região se encontrava fechado por falta de condições.
Cartaz anunciando o espetáculo do Gran Circo Norte-americano em Niterói
"O que eu acho impressionante", diz meu pai, que nasceu uma década antes da tragédia, "é que eu nunca tenha ouvido falar desse episódio. Só fiquei sabendo dele na semana passada, por conta do lançamento desse livro. Como um acontecimento tão dramático e cruel pode ter passado em branco, justamente para mim, que vivia no Rio de Janeiro?". Justamente pelo fato de ter sido dramático e cruel, o incêndio do Gran Circo Norte-Americano foi relegado ao esquecimento voluntário pelo povo da própria cidade.
Para reconstruir a catástrofe de Niterói, Mauro Ventura entrevistou mais de uma centena de pessoas (entre testemunhas, médicos e vítimas) e se valeu de uma miríade de documentos, vídeos e artigos publicados no país sobre o assunto. O resultado dessa pesquisa meticulosa pode ser observado no seu livro: um panorama detalhista que conta dramas familiares particulares (muitas pessoas perderam a família inteira no incêndio), atos de heroísmo e as operações do governo para lidar com a situação (verbas disponibilizadas, pedidos de ajuda a países vizinhos e assim por diante).
De um modo geral, como o próprio Mauro Ventura gosta de dizer, O espetáculo mais triste da Terra se propõe a dar rosto à tragédia, na medida em que oferece ao leitor um mar de histórias das pessoas afetadas pelo incêndio. Enquanto eu estava lendo o livro, não raro me assombrava e me compadecia de certos episódios, de certos personagens que acabam nos tocando, de uma maneira ou de outra. É o caso de Lenir Queiroz, da chefe de escotismo Maria Pérola, da menina Maria José, e de muitos outros.
O corredor da saída principal do circo, pelo qual centenas de pessoas tentaram passar ao mesmo tempo
A linguagem que Mauro Ventura utiliza para dar voz ao seu texto é a mesma de certas reportagens de revistas informativas. Isso não diminui o valor da obra, naturalmente. É uma narração corriqueira, ágil, sem deixar de lado a minúcia típica do jornalismo. Livre de excessos, Ventura destila os principais acontecimentos para o leitor, as principais informações e os personagens mais destacáveis. Se for para comparar o autor com Jon Krakauer (que é talvez o único que conheço do gênero), eu diria que Mauro Ventura é uma espécie de versão resumida do autor norte-americano, mas com qualidade semelhante. Enquanto Krakauer detalha demais os episódios que reconstrói, Mauro, no livro em questão, dá uma visão mais panorâmica do acontecimento, focando apenas as partes de maior importância.
O livro todo é excelente, e gostei particularmente dos capítulos que narram a crise no Hospital Antonio Pedro (o principal da cidade, que, desgraçadamente, encontrava-se em greve no dia do incidente), o gesto humanitário da escoteira Maria Pérola, as histórias de Marlene e Lenir e as investigações iniciadas depois da tragédia. Aliás, a causa do incêndio do Gran Circo Norte-americano continua um mistério até hoje, visto que há uma rede de informações desencontradas que ora apontam um culpado criminoso (Dequinha), ora apontam falhas no sistema de segurança da casa de espetáculo, e ora apontam fatores naturais. Nunca se chegou a uma conclusão racional baseada em provas, e se na época Dequinha e Bigode foram sentenciados à prisão, foi somente para dar uma satisfação imediata aos cidadãos de Niterói.
Ao entardecer, bombeiros tentam apagar o fogo que devorou a lona do circo
Recomendo O espetáculo mais triste da Terra para quem quiser conhecer o mais trágico acidente circense da História e o pior incêndio brasileiro. Embora o livro apresente uma grande dose de detalhes assombrosos e trágicos, vale a pela a leitura, não por conta do apelo ao drama, mas pela carga de informação referente ao episódio. Um livro excelente, sem dúvida.
Marlo eu tô DOIDO pra ler esse livro! Só não li ainda porque estou esperando o preço baixar. Coisa boa ver sua resenha por aqui, tão positiva. Estou na mesma expectativa, de um grande livro. Nessa linha investigativa, gosto muito da Ann Rule, pena que ela não é traduzida para o Português, já ouviu falar? Ela é fantástica. Logo mais espero ler este livro que me parece, de fato, fabuloso.
ResponderExcluirOlá, Marco!
ResponderExcluirDe fato, o preço do livro está meio caro por aqui. Na verdade só o comprei direto na loja - e não na Estante Virtual - porque tive um bom bônus na Saraiva. É doloroso demais esperar um livro baixar de preço; se eu fosse você, tentava procurá-lo nos sebos eletrônicos. Ontem mesmo realizei uma compra na internet cujo desconto beirou os R$ 50,00. É muito bom!
Ah, o livro é excelente, como você pode imaginar. Muito bem escrito, carrega muita informação interessante. Li tudo, de cabo a rabo, com um deleite que eu reservo apenas aos livros realmente bons. Você não vai se arrepender. :)
Não conheço Ann Rule. Ela já escreveu sobre o quê? Fiquei curioso...
Grande abraço!
Não tenho boas lembranças desse tipo de livro. Li 'A Sangue Frio' do Truman Capote e não gostei... Mas normalmente suas recomendações batem com meu gosto, quem sabe no futuro? :)
ResponderExcluirOlá, Farley! :)
ResponderExcluirFelizmente no seu caso, Truman Capote tinha um estilo narrativo muito próprio. Portanto, será difícil encontrar outro escritor do mesmo modelo que ele. Nem precisa se preocupar. Dizer que alguns autores contemporâneos seguem a mesma linha de jornalismo livre (como Krakauer e Mauro Ventura) não significa dizer que eles têm o mesmo estilo de Capote: apenas se baseiam naquilo que foi inaugurado pelo escritor de 'A sangue frio'. Mas são livros totalmente diferentes, todos eles. Aliás, Truman Capote era conhecido por transformar, totalmente, uma reportagem em um romance. Os autores atuais que eu citei apenas escrevem grandes reportagens com pinceladas de entretenimento e olhar crítico, o que faz com que suas obras se assemelhem a romances, em alguns aspectos.
Em suma, vale a pena conferir. Aposto que você verá algo inteiramente diferente de Capote, e vai deixar o receio de lado. :)
Recomendo, por sinal, 'Na natureza selvagem', cujo filme você assistiu e gostou, pelo que me lembro!
Abraços, e obrigado pela visita!