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05 janeiro 2022

Os amores difíceis, de Italo Calvino



É um dos melhores livros de contos que já tive o prazer de ler.

Calvino transforma a realidade cotidiana, em geral dura e difícil, em coisa suave, poética, reflexiva. Cada conto é uma verdadeira brisa fresca. Aqui não há grandes conflitos, tramas complexas, enredos surpreendentes: há a beleza e o mistério cotidianos, escondidos em cada pedaço de vida, nas relações banais, nos pensamentos, nos sonhos e receios de cada um. Nesse ponto, Calvino lembra um Erico Verissimo da década de 30.

Por baixo dessa superfície bonita e cândida das histórias, há o melhor de tudo: as ponderações filosóficas, as críticas sociais, a complexidade da língua escrita e falada, o medo da finitude, o estranhamento, o abismo entre o individual e o social.

A aventura de um soldado escancara o machismo e a violência à mulher que às vezes surge de uma aparente paquera casual: uma mulher senta ao lado de um soldado em um vagão de trem vazio, e ele considera isso um sinal de sedução; então o rapaz começa a encontrar artifícios para passar a mão nela discretamente, em incursões cada vez mais acintosas.

A aventura de uma esposa é um conto surpreendentemente feminista, em que a personagem principal, casada, passa uma noite divertida e casta com outro homem, e começa a refletir sobre ser mulher entre homens, e sobre seu papel e suas vontades no meio das convenções sociais que tolhem seu jeito de ser (é um dos contos mais belos do livro, na minha opinião).

A aventura de um fotógrafo, conto assustadoramente visionário, é uma mensagem crítica aos nossos dias atuais de Instagram, de obsessão por uma vida de registros, fotos, vídeos.

São 15 contos no total. Difícil eleger um favorito. Calvino é um verdadeiro alento na literatura. Seu livro de contos é um tesouro.

Trecho que destaquei:

Porque, uma vez que você começou, não há nenhuma razão para parar. O passo entre a realidade que é fotografada na medida em que nos parece bonita e a realidade que nos parece bonita na medida em que pode ser fotografada é curtíssimo. Se você fotografa Pierluca enquanto ele está fazendo um castelo de areia, não há razão para não fotografá-lo enquanto está chorando porque o castelo desmoronou, e depois enquanto a criada o consola fazendo-o encontrar no meio da areia uma casquinha de concha.

É só você começar a dizer a respeito de alguma coisa: "Ah, que bonito, tinha era que tirar uma foto!", e já está no terreno de quem pensa que tudo o que não é fotografado é perdido, que é como se não tivesse existido, e que então para viver de verdade é preciso fotografar o mais que se possa, e para fotografar o mais que se possa é preciso: 1) viver de um modo o mais fotografável possível, ou então 2) considerar fotografáveis todos os momentos da própria vida. O primeiro caminho leva à estupidez, e o segundo, à loucura.

24 maio 2021

O afinador de piano, de Daniel Mason




O afinador de piano (The piano tuner, 2002) foi um verdadeiro achado para mim. Uma dessas experiências de leitura que são puro deleite. Geralmente os leitores reconhecem esses livros especiais antes mesmo de passar das 30 primeiras páginas.

Eu já conhecia o autor através de Um país distante (A far country, 2006), que li há muitos anos e do qual lembro pouquíssima coisa. Mas lembro que a prosa bem cuidada, poética, e o olhar sensível do protagonista para o mundo já estavam lá. Reencontrei esses elementos aqui sem grande surpresa, portanto. Isabel, de Um país distante, e Edgar Drake, de O afinador de piano, são quase duas faces da mesma moeda.

Daniel Mason gosta de escrever sobre figuras que se encontram deslocadas de seu lugar de origem porque toparam embarcar em uma jornada de corpo e alma com caráter de "missão" - algo que deve ser feito quase que por um chamado ético, e deve ser feito apenas por elas, porque diz respeito a elas e a mais ninguém. Assim Isabel foi atrás do irmão na cidade grande, e assim Drake partiu para a Birmânia para afinar um piano no meio da selva. São destinos e objetivos que se revelam no final das contas muito maiores do que parecem à primeira vista, e esse sentido é construído no caminho, no deslocamento. E é por isso que, nos dois romances que li de Mason, a trajetória do herói se revela muito mais importante do que qualquer ponto de chegada.

Li pela internet a resenha de um leitor que, desapontado, disse ter achado ruim o fato de que Edgar Drake demore metade do romance para chegar até o forte de Mae Lwin, onde deve cumprir a missão de afinar o piano de cauda Érard do Exército britânico, a pedido do major Anthony Carroll (nada disso é spoiler, a propósito). Me surpreendeu a falta de sensibilidade de alguém que não pôde perceber que a riqueza da história está justamente - como eu disse - na travessia, na jornada até esse objetivo final inusitado. Seria um descuido achar que um livro sobre um personagem do século XIX, que sai da Inglaterra para ir à Birmânia consertar um piano a pedido da Coroa, fosse eleger o mero destino final como o ponto mais valioso da trama inteira.

Ocorre que O afinador de piano é um livro de rara beleza. Embora tenha muita aventura e muita ação (se engana quem acha que não tem), a prosa do autor é quase meditativa, muito contemplativa. É uma escrita poética essencialmente visual, que convida o leitor a mergulhar de cabeça nas florestas birmanesas - sentir os cheiros do lugar, ouvir os sons, apreciar o exotismo da paisagem. Há quem ache esse estilo de escrita maçante, mas para mim foi um bálsamo. É um troço muito imersivo, não tem como negar. 

Daniel Mason escreveu este livro com 26 anos de idade, enquanto estava morando no lugar para onde seu protagonista viaja, mais de um século antes. Seu trabalho é um feito impressionante, considerando que estamos falando de um romance de estreia com um volume de pesquisa assombroso e uma história coerente e original. Há veteranos que não alcançam o que Mason alcançou aqui.

26 abril 2021

Auto-engano, de Eduardo Giannetti




A escrita de Eduardo Giannetti é clara e envolvente, talento que eu já havia constatado no seu ótimo Felicidade (2002) e no seu maravilhoso Trópicos utópicos (2016). Aqui, o autor se propõe a investigar ("por conta própria", como ele mesmo enfatiza no prefácio, um salvo-conduto que vem a calhar) um conceito aparentemente paradoxal no estudo da psicologia humana: o auto-engano, ou a ideia de que alguém, ou algum grupo, pode acreditar em uma coisa mesmo sabendo que essa coisa não corresponde à realidade.

A excelente introdução me induziu a acreditar que o tema seria tratado como deve: como fenômeno complexo em que estão envolvidas diversas variáveis de diferentes níveis de determinação do comportamento humano, sejam elas biológicas (filogenéticas), ontogenéticas (da vida de cada pessoa em particular) e culturais (das crenças e dos valores sociais que aprendemos a cultivar com os outros). Na introdução, Giannetti esclarece que o que chamamos de "engano" está presente não apenas na vida humana, mas na própria natureza, como aspecto central da luta pela sobrevivência e da reprodução das espécies. Obviamente, o ser humano é um ser social, porque capaz de linguagem, e isso adicionaria elementos novos ao problema do engano inter e intrapessoal. Até aqui, portanto, um olhar tão original quanto complexo sobre o tema. De quebra, imaginei, a reflexão sobre os processos concernentes ao auto-engano seria regada à boa atitude filosófica de que o autor é capaz.

Muito cedo, porém, Auto-engano (1997) começa a patinar. E patina até cair. Dois pecados capitais nos argumentos de Giannetti ficam logo evidentes para quem não é leigo no assunto: tratar subjetividade como sinônimo de mente (ou, o que é pior, de "vida interior psíquica" apartada do corpo) e confundir a ciência e o saber científico com os seus instrumentos tecnológicos. São dois erros fundamentais porque, infelizmente, o autor os repete à exaustão, o que leva ao abalo de toda a estrutura argumentativa do livro.

Se tivesse recorrido a leituras de psicologia comportamental enquanto escrevia, ou mesmo da psicogenética de Lev Vygotsky, Giannetti descobriria que é possível falar de subjetividade - do que nos torna sujeitos únicos dotados de história pessoal - como tudo aquilo que deriva de nossas experiências diretas ou indiretas com o ambiente ao nosso redor, a partir do que aprendemos a nos relacionar com o mundo, seja ele natural ou social, constituindo o que somos no momento presente. Subjetividade, por assim dizer, é todo o nosso repertório comportamental único, aprendido na vida, que sublinha nossa individualidade - e não uma instância mental autônoma situada no "interior" do ser humano. Inclusive, a noção de subjetividade como repertório comportamental aprendido no contato do sujeito com o seu ambiente único é uma das chaves para o conceito de autoconhecimento, sobre o qual o autor se debruça demoradamente em certo ponto.

No texto, o excesso de mentalismo (o entendimento de que um suposto mundo interior psíquico determinaria sobremaneira nossas condutas) descamba para os chavões da literatura de auto-ajuda: "palco da mente", "cada pessoa é protagonista de sua vida interior", "a vida de cada um é vivida de dentro", "cada um é autor de seu próprio enredo" etc. E a consequência desse tipo de pensamento, tão pouco científico quanto filosófico, é uma só, e ela não tarda a chegar: o autor diz que, assim sendo, a subjetividade não se presta de jeito nenhum a um estudo científico. Bem, felizmente há toda uma literatura especializada que o contradiz.

O mentalismo atravessa de forma tão contundente as ideias do livro que não é raro encontrar inferências curiosas como esta: "Nossas conclusões sobre nós mesmos, não importa quais sejam, são o produto de uma parte de nossa mente interagindo com outras partes dela por caminhos e de maneiras que pouco compreendemos." Ou seja, nossa avaliação de nós mesmos não vem do repertório verbal que nos é ensinado, nem dos padrões morais a que estamos submetidos: é uma luta entre partes hipotéticas de uma instância hipotética situada em lugar nenhum. Esse raciocínio solipsista, do sujeito soberano autodeterminado, ficou para trás no saber psicológico há muito tempo.

Mas o livro tem seus bons momentos, apesar de tudo. Principalmente quando Giannetti se propõe a fazer um inventário comentado das proposições filosóficas sobre o tema. O mesmo ponto forte havia sido notado por mim nas duas obras anteriores que mencionei no início. Ele sabe expor as ideias dos filósofos de modo claro e inspirador, com citações diretas e proposições próprias, e isso é vital no trabalho que ele se propõe a fazer. É pena, no entanto, que isso não sustente o edifício todo.

 

07 outubro 2020

Oryx e Crake, de Margaret Atwood

Devo começar esta resenha dizendo: é um livro impressionante. Maravilhosamente bem escrito, maravilhosamente bem narrado, perturbador, instigante e sugestivo. Conseguiu me fisgar desde as primeiras páginas. Margaret Atwood tem um talento ímpar para confeccionar uma prosa elegante e precisa que nos captura e nos deixa completamente à mercê do que ela tem para contar. Os seus melhores livros são assim, uma verdadeira arapuca, no melhor sentido do termo, porque você entra neles e não consegue mais sair, tamanha é a sedução dos mundos fantasiados por essa autora canadense.

E, bem, é sempre importante ouvir o que ela tem a nos dizer. Atwood faz parte daquele grupo de escritores cuja mensagem é sempre urgente.


Ilustração de Sam Chivers


Oryx e Crake tem como personagem principal um sujeito autointitulado “Homem das Neves”. Ele é basicamente o último representante do Homo sapiens na Terra e passa os seus dias empoleirado no alto de uma árvore, à beira-mar, sobrevivendo como pode e contemplando melancolicamente o que sobrou da civilização como a conhecemos – ele encontra destroços que chegam até a praia e vê prédios abandonados ao longe, caindo aos pedaços, ao pôr-do-sol. Nessa vida reduzida a pó que parece muito a de um náufrago sem ilha, o Homem das Neves cuida de uma tribo humana evoluída que mora próximo a ele, na praia: são homens, mulheres e crianças perfeitas, produzidas para serem perfeitas, inocentes e bondosas, uma espécie de versão 2.0 da humanidade, com atributos corporais e comportamentais ligeiramente alterados. Mas, o leitor logo se pergunta, como as coisas chegaram até esse ponto? Quem é o Homem das Neves e por que ele se dedica a passar seus dias cuidando desses estranhos vizinhos?

À medida que avança na narrativa, o leitor ou a leitora vai conhecendo as respostas para essas perguntas, porque o eixo principal da história é uma narração em retrospecto. É quando passamos a saber que o Homem das Neves na verdade se chamava Jimmy e vivia uma vida muito parecida com a nossa – a minha e a sua. Ele ia à escola, seus pais trabalhavam, ele gostava do seu bicho de estimação (não vamos entrar aqui no mérito de que bicho de estimação era esse) e tinha fama de ser alguém engraçado entre os colegas da mesma idade. O que muda completamente o seu destino (e o de toda a civilização humana) é o fato de Jimmy ter conhecido Crake e Oryx na adolescência, cada um a seu modo, cada um no seu tempo; e de, já adulto, ter aceitado embarcar em um projeto ambicioso capaz de colocar de cabeça para baixo todo o planeta.

Contar mais do que isso pode estragar a experiência da leitura; e se tem uma coisa que eu de fato não gostaria de fazer é estragar a experiência de quem pretende ler esse livro. Porque se trata de uma obra-prima. Estamos falando de um romance Sci-Fi/distópico que seguramente está no mesmo patamar de Admirável Mundo Novo e Fahrenheit 451.

A quem não pretende entrar na piscina sem antes checar a temperatura, porém, aqui vai uma informação útil: Oryx e Crake (2003) é o primeiro volume de uma trilogia. O segundo é O ano do dilúvio (2011), e o terceiro, Maddadão (2013).


Ilustração de Jason Courtney


O fato é que Oryx e Crake é uma porta aberta para reflexões profundas sobre o limite ético das pesquisas científicas (ou, melhor, sobre a falta desse limite) e sobre o uso que nós fazemos das tecnologias que somos capazes de criar coletivamente com base nessas mesmas ciências. De modo geral, é um livro que nos mostra que de fato é possível subjugar a natureza a nosso bel-prazer, mas que isso nos leva a todas as consequências previsíveis e imprevisíveis dessa ambição, e que o perigo reside aí, no caminho ético degradante que vamos trilhando sem perceber. É também um convite à crítica sobre como o sistema neoliberal pode cooptar as universidades e os institutos científicos para os seus domínios e transformá-los em verdadeiras indústrias especializadas, aprofundando desigualdades sociais e criando um mundo instrumentalizado para o lucro, em prol dos que podem pagar pelos seus luxos, e onde as liberdades individuais parecem estar sempre um passo à frente da moral.

O livro retrata uma realidade onde, por exemplo, as academias de arte estão em franca decadência, onde a competição entre os grandes conglomerados farmacêuticos prospera como fungo no pântano, e onde as pessoas podem assistir com relativa facilidade a qualquer coisa na internet (qualquer coisa mesmo, desde noticiários com jornalistas sem roupa até suicídios ao vivo e abusos sexuais de todo tipo. Sim, pense em uma deepweb que aos poucos vai alcançando a superfície da internet, porque qualquer tipo de regulação é impensável nessa sociedade de liberdades irrestritas).

Mas este é um mundo que prospera (ou decai, depende do ponto de vista) pela ordem da biomedicina atrelada ao sistema capitalista. As pessoas pagam caro pelos produtos farmacêuticos alcançados graças à ciência, e é isso que mantém o mercado ativo – um mercado desnaturalizante, porque busca reverter e corrigir todas as pequenas e grandes falhas do nosso corpo, sem ligar para as consequências a longo prazo envolvidas nessa empreitada. Toda a fragilidade humana que vem com o nosso medo de morrer é explorada pelo mercado em Oryx e Crake. Será este sistema muito diferente no nosso mundo real?


Ilustração de Jason Courtney


Além de crítica social, o livro é uma digressão filosófica sobre as bases da ciência biológica. No meu mundo idealizado, Oryx e Crake deveria ser leitura obrigatória em qualquer curso que envolvesse os estudos de bioética. Um dos questionamentos que saltam das páginas é, por exemplo: uma vida criada artificialmente, em condições ambientais artificiais e invariáveis, é vida, no sentido biológico da palavra? Ou é simplesmente um produto? Ou, ainda: a partir de que ponto podemos deixar o corpo padecer de males naturais, sem a intervenção imperiosa e intrusiva da tecnologia? Trata-se do mesmo velho enigma que nos assombra desde os primeiros passos do Iluminismo: “Pode o ser humano ocupar o lugar de Deus?”

O livro chega a dar medo em alguns momentos. Porque tudo o que Margaret Atwood faz – e não é pouca coisa – é juntar os elementos que nós temos agora e projetá-los no futuro, quando estarão mais desenvolvidos. É algo do tipo: “Se nós continuarmos por aqui, as consequências serão essas, o mundo que teremos será esse”.

E o resultado dessa “ficção especulativa” (como ela mesma gosta de chamar) é perturbador. Porque é muito familiar. Impossível não identificar o nosso mundo naquelas páginas que mostram um mundo tão submisso ao dinheiro, ao poder, aos poderosos, à tecnologia usada arbitrariamente. Bairros de luxo projetados como autossuficientes e isolados do resto da cidade? Já temos. Manipulação genética praticamente sem freios? Logo ali. Desprezo pelo conhecimento “inútil” da arte? Galgando espaço a cada dia. Transformação da educação em uma fábrica de alunos que possa atender ao mercado produtivista? Prática em ascensão agora mesmo. (A propósito, a ideia do “Leilão de Alunos” é de um sarcasmo atroz.)

O enredo que embala todas essas críticas e ponderações filosóficas é atraente e prende a atenção. Muito cedo você se vê envolvido na trajetória de Jimmy, o personagem principal, e no enigma que as duas pessoas mais próximas a ele representam – as que dão nome ao livro.

Oryx e Crake é para ser lido com calma, porque exige um leitor paciente e atento. É como um baú de tesouro, que você encontra escondido e sente que deve passar horas e horas manuseando e apreciando o que está lá dentro.

E, sim, o livro precisa de um leitor disposto a dar de cara com o que podemos estar fazendo de pior neste século XXI.