Devo começar esta resenha dizendo: é um livro impressionante. Maravilhosamente bem escrito, maravilhosamente bem narrado, perturbador, instigante e sugestivo. Conseguiu me fisgar desde as primeiras páginas. Margaret Atwood tem um talento ímpar para confeccionar uma prosa elegante e precisa que nos captura e nos deixa completamente à mercê do que ela tem para contar. Os seus melhores livros são assim, uma verdadeira arapuca, no melhor sentido do termo, porque você entra neles e não consegue mais sair, tamanha é a sedução dos mundos fantasiados por essa autora canadense.
E, bem, é sempre importante ouvir o que ela tem a nos dizer. Atwood faz parte daquele grupo de escritores cuja mensagem é sempre urgente.
Ilustração de Sam Chivers
Oryx e Crake tem como personagem principal um sujeito autointitulado “Homem das Neves”. Ele é basicamente o último representante do Homo sapiens na Terra e passa os seus dias empoleirado no alto de uma árvore, à beira-mar, sobrevivendo como pode e contemplando melancolicamente o que sobrou da civilização como a conhecemos – ele encontra destroços que chegam até a praia e vê prédios abandonados ao longe, caindo aos pedaços, ao pôr-do-sol. Nessa vida reduzida a pó que parece muito a de um náufrago sem ilha, o Homem das Neves cuida de uma tribo humana evoluída que mora próximo a ele, na praia: são homens, mulheres e crianças perfeitas, produzidas para serem perfeitas, inocentes e bondosas, uma espécie de versão 2.0 da humanidade, com atributos corporais e comportamentais ligeiramente alterados. Mas, o leitor logo se pergunta, como as coisas chegaram até esse ponto? Quem é o Homem das Neves e por que ele se dedica a passar seus dias cuidando desses estranhos vizinhos?
À medida que avança na narrativa, o leitor ou a leitora vai conhecendo as respostas para essas perguntas, porque o eixo principal da história é uma narração em retrospecto. É quando passamos a saber que o Homem das Neves na verdade se chamava Jimmy e vivia uma vida muito parecida com a nossa – a minha e a sua. Ele ia à escola, seus pais trabalhavam, ele gostava do seu bicho de estimação (não vamos entrar aqui no mérito de que bicho de estimação era esse) e tinha fama de ser alguém engraçado entre os colegas da mesma idade. O que muda completamente o seu destino (e o de toda a civilização humana) é o fato de Jimmy ter conhecido Crake e Oryx na adolescência, cada um a seu modo, cada um no seu tempo; e de, já adulto, ter aceitado embarcar em um projeto ambicioso capaz de colocar de cabeça para baixo todo o planeta.
Contar mais do que isso pode estragar a experiência da leitura; e se tem uma coisa que eu de fato não gostaria de fazer é estragar a experiência de quem pretende ler esse livro. Porque se trata de uma obra-prima. Estamos falando de um romance Sci-Fi/distópico que seguramente está no mesmo patamar de Admirável Mundo Novo e Fahrenheit 451.
A quem não pretende entrar na piscina sem antes checar a temperatura, porém, aqui vai uma informação útil: Oryx e Crake (2003) é o primeiro volume de uma trilogia. O segundo é O ano do dilúvio (2011), e o terceiro, Maddadão (2013).
Ilustração de Jason Courtney
O fato é que Oryx e Crake é uma porta aberta para reflexões profundas sobre o limite ético das pesquisas científicas (ou, melhor, sobre a falta desse limite) e sobre o uso que nós fazemos das tecnologias que somos capazes de criar coletivamente com base nessas mesmas ciências. De modo geral, é um livro que nos mostra que de fato é possível subjugar a natureza a nosso bel-prazer, mas que isso nos leva a todas as consequências previsíveis e imprevisíveis dessa ambição, e que o perigo reside aí, no caminho ético degradante que vamos trilhando sem perceber. É também um convite à crítica sobre como o sistema neoliberal pode cooptar as universidades e os institutos científicos para os seus domínios e transformá-los em verdadeiras indústrias especializadas, aprofundando desigualdades sociais e criando um mundo instrumentalizado para o lucro, em prol dos que podem pagar pelos seus luxos, e onde as liberdades individuais parecem estar sempre um passo à frente da moral.
O livro retrata uma realidade onde, por exemplo, as academias de arte estão em franca decadência, onde a competição entre os grandes conglomerados farmacêuticos prospera como fungo no pântano, e onde as pessoas podem assistir com relativa facilidade a qualquer coisa na internet (qualquer coisa mesmo, desde noticiários com jornalistas sem roupa até suicídios ao vivo e abusos sexuais de todo tipo. Sim, pense em uma deepweb que aos poucos vai alcançando a superfície da internet, porque qualquer tipo de regulação é impensável nessa sociedade de liberdades irrestritas).
Mas este é um mundo que prospera (ou decai, depende do ponto de vista) pela ordem da biomedicina atrelada ao sistema capitalista. As pessoas pagam caro pelos produtos farmacêuticos alcançados graças à ciência, e é isso que mantém o mercado ativo – um mercado desnaturalizante, porque busca reverter e corrigir todas as pequenas e grandes falhas do nosso corpo, sem ligar para as consequências a longo prazo envolvidas nessa empreitada. Toda a fragilidade humana que vem com o nosso medo de morrer é explorada pelo mercado em Oryx e Crake. Será este sistema muito diferente no nosso mundo real?
Ilustração de Jason Courtney
Além de crítica social, o livro é uma digressão filosófica sobre as bases da ciência biológica. No meu mundo idealizado, Oryx e Crake deveria ser leitura obrigatória em qualquer curso que envolvesse os estudos de bioética. Um dos questionamentos que saltam das páginas é, por exemplo: uma vida criada artificialmente, em condições ambientais artificiais e invariáveis, é vida, no sentido biológico da palavra? Ou é simplesmente um produto? Ou, ainda: a partir de que ponto podemos deixar o corpo padecer de males naturais, sem a intervenção imperiosa e intrusiva da tecnologia? Trata-se do mesmo velho enigma que nos assombra desde os primeiros passos do Iluminismo: “Pode o ser humano ocupar o lugar de Deus?”
O livro chega a dar medo em alguns momentos. Porque tudo o que Margaret Atwood faz – e não é pouca coisa – é juntar os elementos que nós temos agora e projetá-los no futuro, quando estarão mais desenvolvidos. É algo do tipo: “Se nós continuarmos por aqui, as consequências serão essas, o mundo que teremos será esse”.
E o resultado dessa “ficção especulativa” (como ela mesma gosta de chamar) é perturbador. Porque é muito familiar. Impossível não identificar o nosso mundo naquelas páginas que mostram um mundo tão submisso ao dinheiro, ao poder, aos poderosos, à tecnologia usada arbitrariamente. Bairros de luxo projetados como autossuficientes e isolados do resto da cidade? Já temos. Manipulação genética praticamente sem freios? Logo ali. Desprezo pelo conhecimento “inútil” da arte? Galgando espaço a cada dia. Transformação da educação em uma fábrica de alunos que possa atender ao mercado produtivista? Prática em ascensão agora mesmo. (A propósito, a ideia do “Leilão de Alunos” é de um sarcasmo atroz.)
O enredo que embala todas essas críticas e ponderações filosóficas é atraente e prende a atenção. Muito cedo você se vê envolvido na trajetória de Jimmy, o personagem principal, e no enigma que as duas pessoas mais próximas a ele representam – as que dão nome ao livro.
Oryx e Crake é para ser lido com calma, porque exige um leitor paciente e atento. É como um baú de tesouro, que você encontra escondido e sente que deve passar horas e horas manuseando e apreciando o que está lá dentro.
E, sim, o livro precisa de um leitor disposto a dar de cara com o que podemos estar fazendo de pior neste século XXI.